Marsupial e amor
O verdadeiro inimigo está em ti. O teu verdadeiro, o mais tenaz de todos os teus inimigos, é em ti que mora. A diferença está em que, ao contrário de todos os outros, ele é o único que te presta lealdade. O teu verdadeiro inimigo é-te leal, acredita. Leva-lo contigo, alojado no ventre, pelo deserto, o que faz de ti um caso marsupial. Dás-lhe quarto, comida e roupa lavada, o que faz dele mais teu filho que teu mero hóspede. Acabas por gostar dele, a ponto de não seres alguém sem que ele te ajude a ser. Isso é engraçado: por se parecer tanto com o amor.
Limão e açúcar
E há os outros inimigos. São aqueles que, verdadeiramente, não podes amar com a indulgência triste dos amores resignados. Os que invejas ou te invejam. Os que desprezas ou te desprezam. Os que sabes que te ignoram e os que ignoram o que sabes. Os que te negariam uma casca de limão durante um ataque de escorbuto. Aqueles a quem negarias um punhado de açúcar numa chuvada de sal. Esses não estão em ti: não são verdadeiros. Estão, porém, sempre perto de ti: para que melhor saibas quanto ignoram. Isso também é engraçado, mas não tem nada parecido com o amor. Só com a decepção dele.
Laranjeiras e guarda-chuvas
Olha, faz desta maneira: percorre as tuas vielas noctâmbulas contando gatos, matrículas de carros, contentores de lixo, janelas ainda acesas. Olha, faz assim: observa como as laranjeiras parecem fechadas como guarda-chuvas. Não é curioso as coisas parecerem o que não são? E as pessoas, vê bem: guarda-chuvas disfarçados de laranjeiras: os inimigos.
Boa noite
E amigos, onde anda essa gente? E amores? São duas perguntas.
Dos amigos, responderás que andam em vielas só deles, contando outros gatos. De vez em quando, surgem do nada para te darem tudo e para tudo te levarem, abandonando-te exausto e quase feliz numa orla de praia, na mão esquerda uma casca de limão, na direita uma mínima duna de açúcar.
Dos amores, dirás que não podem ser plurais, que só o singular se aplica a tão solitária ocupação.
Se responderes isto assim como está escrito, pode bem ser que o teu verdadeiro inimigo se compadeça por instantes de ti, a ponto de, por uma noite, te não deixar ir por vielas contando o incontável, de, por uma noite, te deixar até dormir.
E dormir com o inimigo não é má ideia, desde que ele adormeça primeiro.
Dito e (des)Feito, Pombal, 2004
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