Faleceu e foi sepultada, por estes tristes dias de Outubro, uma rapariga chamada Filomena. Estava em coma há onze anos e cinco meses. Na Queima das Fitas de 1986, estava completamente viva, preparava-se para terminar Letras. Namorava, tinha família, semeava amigos. Um acidente de viação atirou-a para o poço sem regresso do coma vegetativo. Na longa noite destes onze anos, a Filomena foi-se fazendo sombra nas conversas de reencontro dos antigos colegas. Hoje, escrevo isto para que, de algum modo ou por algum deus, ela volte a ser a luz que nos tem feito tanta falta.
Do outro lado do rio que o Tempo é, que fazem aqueles que amámos, aqueles que tivemos de sepultar, aqueles que, no escuro de pensarmos neles, nos deixam sem morada e sem caminho? Eu não sei.
Sei que me acontece muito pensar no Guilherme Pais. Parava no café Santa Cruz. Tinha família, semeava amigos. Vestia-se bem, ia a Paris e voltava. Ria-se muito, disfarçava-se de mauzão de Chicago. Aos trinta e tal anos, a vida lembrou-se de matá-lo. Que fará ele agora, do lado de lá do rio?
Todos temos os nossos mortos. Como flores secretas, guardamo-los no avesso da pele. Preocupa-nos o modo como emagrecem, como passaram a vestir mal, como mal suportam a humidade da memória, do mármore, do mau vinho com que, em vão, tentamos matá-los de vez. Aflige-nos que só saiam à noite. Eu tenho os meus, tu tens os teus, aquele tem alguns que também são nossos.
Mas: no outro dia, a filha de um amigo fez anos. Treze. Treze anos. Fez-se a festa num pátio acimentado. Houve doces, presunto, refrigerantes e uma bicicleta nova. Foram impressionados dois rolos de fotografias. As crianças bateram muitas palmas. Um cão ladrou imenso. Todos temos, também, os nossos vivos. Um rio tem sempre duas margens.
Diário de Coimbra, 28 de Outubro de 1997
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