27/06/2005

Viv’ó’nião!

Desde sempre, a Humanidade tem feito gala de atribuir a responsabilidade dos eus princípios a dois conceitos mutuamente adversos. Esses conceitos são sempre os mesmos. Mudam os nomes, mas a base é constante. Exemplos: o Bem e o Mal, o Céu e a Terra, o Fogo e a Água, o Pão e o Vinho, o Ouro e a Lama. As regiões assentam, todas elas, na oposição entre o Corpo e o Espírito. A cultura resulta, quase sempre, daquilo que lhe permitem o comércio e a indústria.
A Criança sofre o conforto entre o Papá e a Mamã. Até há pouco tempo, dizer América e Rússia era o mesmo que dizer Deus e Diabo. Exemplos não faltam.
O poeta Eugénio de Andrade embirrou sempre com estas “dualidades que dividem todo um ser”. Tem razão, naturalmente, o poeta. Mas que as duas dualidades persistem e persistirão, também não tenho dúvida.
Tanto assim é, que Coimbra não escapa ao exemplo. Todos sabemos que Coimbra se divide em duas partes essenciais: a Académica e o União.
A Académica é associada aos doutores. Coisa normal, se atendermos a que o próprio nome da Associação é adjectivo parente do substantivo academia e que uma academia é mundo de doutores, com consultório ou sem ele. O União de Coimbra é outra coisa. O União é dos operários, com trabalho ou sem ele.
Neste ponto do assunto, esclareço desde já duas coisas: uma, é haver doutores que, por serem filhos de operários, são do União; outra, é haver operários que, por terem os filhos na universidade, se passaram para a Académica. Mas são acidentes de percurso. Continua a contar aquilo que se disse: União é União, Académica é Académica.
Os anos passam e, com eles, as pessoas. Para a glória dos dois clubes conimbricenses, muito contribuíram algumas vidas entretanto apagadas. Do lado academista, não será de mais lembrar o dr. José Maria Antunes, capitão da Taça de 1939. Nome honrado, público, histórico. Entre os unionistas falecidos, escolho (perdoem-me os leitores) o de um ilustre desconhecido do grande público. Falo do sr. Augusto Gonçalves. Que tinha ele assim tão especial para merecer esta evocação? Eu vo-lo digo: era do União, era mesmo do União, era mais do União do que dele próprio. E basta.
Naturalmente, o mais fácil seria, para mim, desfiar aqui o rosário das glórias e das misérias, dos altos e dos baixos dos clubes da nossa cidade. Para tanto, bastar-me-ia falar da grande Académica dos anos 60 e do União primodivisionário de inícios de 70. Mas não é preciso. Os clubes não são amados apenas pela História que fizeram. Amamos um clube apenas porque sim. É a melhor das razões. Quando dizemos “sim” no dia do casamento, alguém nos pergunta “porquê”? Então...
Aquilo de que gosto na Académica é indefinível. Sei lá, é a cor do equipamento, é o cheiro a tradição, é o não ter fronteiras (nem regionais, nem internacionais), não sei, não sei, não sei.
Agora, outra coisa é o União. Do azul-vermelho, sei. Joguei lá, em criança. Era o número 6. No primeiro jogo, atrasei-me. O meu Pai meteu-se comigo num táxi, mas já só consegui equipar-me com o número 13. Azar. De qualquer maneira, o União era aquilo: a geada das nove da manhã tornava ardentes as chuteiras, tremiam as franzinas pernas daquele plantel de crianças fascinadas pelo amor dos sócios, que tanto gritavam em manhãs de iniciados como em tardes de seniores. Azul-vermelho, azul-vermelho, azul-vermelho! Ónião, Ónião, Ónião!
Na época de que falo, eu era apenas iniciado. Fabulosa mesmo, era a equipa de juvenis: Bonacho, Quim Jorge, Lobo, Rebelo, Pires, Marroni... E a dos juniores? Moinhos, Isidoro, Castanho, Peres... E, nos seniores, Toninho, Coelho, Ribeiro...
Grande gente, grandes manhãs. Vivi lá um ano. Nunca fui campeão do mundo. Não passei ao lado de uma grande carreira. Basta-me a lucidez de recordar com calma a cor da luz das manhãs da Arregaça.
Nessa tal manhã de estreia, entrei na segunda parte. Empatámos 1-1. Com a Académica.


Diário de Coimbra, 6 de Dezembro de 1996

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