30/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 7



No Raul Brandão, isto:

(…) atrás de esmolas, vivendo uma prodigiosa vida interior, assistindo na sua alma a um espectáculo sem par.

*

Perfis das pessoas, como se elas foram (pretérito mais-que-perfeito de ser, não pretérito perfeito de ir) moedas. Efígies. Esfinges. Este homem de olhar dentro do cigarro esquecido. Aquela mulher de casaca verde-muco, absorta noutra-casa-noutro-ano-em-outra-vida-dela. A pele depois do banho, na cama, flanela de flanela. O ímpeto das crianças salteando as barreiras, potros livres, até mais ver, por extensos relvados não murados. Os livros esperando-nos, sábios, rumorosos, na estante ao lado da portinhola que guarda a ginja, o capilé, a aguardente de abrunhos, os copos de colecção. A Checoslováquia em 1968. O imperador de pobres, Maximiliano, austríaco entre cactos e sombreros. A choldra ante D. Carlos I e último. Perfis das pessoas deste milénio-século-década-ano-mês-dia-hora-instante-agora-já-foi-já-não-é. Sempre vi pessoas, gostando mais do que via do que quem via. Casais também, gosto de ver casais – mais agora, que já não sou metade de um.

27/08/2010

Há instantes matinais, esta quadra me surgiu para a entrada 63 do Ideário de Coimbra

Assim pois me vem vindo e indo a manhã.
Sobe, alto sempre, o meridiano do dia.
Pois assim me tenho, vão na jornada vã:
'inda entanto de mim cheio - mas ela, vazia.

26/08/2010

Rosário Breve nº 169 - www.oribatejo.pt - 27 de Agosto de 2010

© Tina Modotti - Hands of the Puppeteer (1929)



QUE O AMOR É TRISTE EM PESSOA

Que o amor é triste em pessoa, um amor de pessoa, como se diz na aldeia.
Que é um acontecimento sem tempo, rosa todo e sem água.
Que embate nas oliveiras, treme e teme as mãos escuramente.
Que não basta estar morto para não ser dele.
Que é como em aldeia seca sofrer o mar, um rio sendo tudo, imitação possível de mar, de amar, de ser amado em árvore dentro como estrela.
O casebre pessoal que cerca o amor, em pó.
Que à terra torna o céu e suas coisas: ovelhas-nuvens, rosa-sol, mortos-vivos, senhor meu e minha senhora.
Na aldeia o amor é como o domingo em cheio no coração.
E um domingo de aldeia é a tristeza em pessoa, que muito equivale à deseternidade de Deus, ao fulgor da febre, à propedêutica passagem, ou seja, a solidão a vau, o pensamento.
Que o amor é aonde não chegámos, que é de onde não chegámos a partir.
Estão aí os apeadeiros ferroviários para no-lo mostrar, de passagem quieta são o motor e a desolação.
Que ninguém vem nem sai daqui, um, da aldeia, mesmo.
Em alternativa, amar o natural, dele o xadrez de troncos, ramos, seixos, sombras de aves, espasmos em cor da tempestade que queima o ar da respiração e o amor que sitiou o coração.
Amar a fadiga humana das ovelhas que tornam, delas a cabisbaixa maternidade, os cordeiros que lobos sonham em sombra.
Uma vez na vida, não pode ser igual o amor ao amor de que nascemos, nós o cão, nós as hortênsias, nós as casas em estrelas, nós as aves pintalgadas em paleta, nós em magia, nós cada um só, mesmo.



25/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 6


© Roy DeCarava - Man coming up subway stairs (1952)


Tenho ainda tempo para fruir o que, brisa, lambe de ar quase frio a pele exposta. Entre comedores de farinha cozida e sacarose, derivo sem sair do sítio por territórios de todo mentais. Penso numa locução que me dirigiu, uma vez, o GFM:

– Faz como gostas, gosta mesmo que não faças.

Feito, não feito, gostado, degustado, desgostado – tanta coisas por um corpo, por uma doença de sentimento, por uma exasperada (e exasperante, reconheço-o) sensibilidade. Agora eu já não faço mal. Já não causo.

20/08/2010

Rosário Breve nº 168 - www.oribatejo.pt



Fecha os braços, ó parolo!

Determinado banco da nossa praça comercial e financeira garante receber-nos de braços abertos. E determinado homenzinho abre os braços no cartaz para ilustrar o chamariz. O homenzinho é o Tony Carreira. A isto chegámos. Caramba, a isto chegámos.
Antigamente, ainda tínhamos o Tony de Matos. Com o descalabro galopante do 25 de Abril de 1974 e com a selvajaria também galopante do capitalismo, a pimbalhada parece ter-se tornado obrigatória.
Digo-vos, e garanto-vo-lo por minha honra, que nada me move contra o tal homenzinho. Até o acho simpático, coitado. Mas é que gosto mais do Tony de Matos, que sabia cantar. Este banco e este Tony não sabem nada. Este País também não sabe nada. Não sabe nem quer saber. Saber faz doer, parece.
Mas ainda não perdi de todo a esperança. Quero dizer, do 25 de Abril espero nada. Desse e dos outros dias todos do ano, todos os anos. Mas pergunto-vos isto: não seria absolutamente encantador que o Tony Carreira, pago à fartazana pelo tal banco, começasse a trovar cançonetas baseadas em poemas de, digamos, Keats, Marcial, Eurípedes, Safo, Tasso, Wordsworth, Petrarca, Catulo, Lorca, Blake, Ronsard, Colonna, Píndaro ou Thomas? Hm?
Que me diríeis?
Penso que ele não irá por aqui. Porquê? Porque nem ele nem o País conhecem Jorge de Sena, nem José Régio, nem Bernardo Santareno, nem o matemático Pedro Nunes, nem a revolução neurocientífica desbravada por Egas Moniz (não é o da corda ao pescoço, é o médico e biógrafo de Júlio Diniz), nem quem foi Ana de Castro Osório, nem Maria Amália Vaz de Carvalho, nem ninguém que valha a pena.
E eu já nem pena tenho. Nem do Tony de agora, nem do País de antigamente, que por acaso era um sítio com futuro antes da selvajaria da ignorância obrigatória. Era, era. Mas já foi.




19/08/2010

Quadra que ontem me aconteceu no Ideário de Coimbra (III, 18 de Agosto de 2010)

Não fustiga porém as dores o Tempo,
a alegria sim, que Ele insensato pune.
Da vida mesma semelha ter ciúme
Ele, que mortal é cada momento.

17/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 5




De vez em quando, topo uma palmeira e seu ar triste de árvore exilada (Eça, de cor). De quando em vez, coo aspectos tumulares: vivendas encerradas. Titubeiam mentes avariadas pelos jardins. Crocitam patinhando níqueis os arrumadores. Tossem nas farmácias pulmões amestrados a borato. Cismam e cisnam a negro as viúvas agarradas como lapas à Igreja de S. José. Rondo as ruínas, quais fracturas expostas, da Residencial Larbelo, onde o Tó L.S. teve quarto nos idos de 70/XX e onde o vi com um livro de banda desenhada com as aventuras do polícia de fronteira Jim Canadá. Pugno por ir devagar – para chegar jamais. Cato muito os corpúsculos miniaturais do olvido que resiste à voragem dos anos: a Casa do Fotógrafo na Mesura, o filho do Rui P.M. afogado num tanque da Escola Agrícola, a caneca de vinho do ti’ Henrique Cuco no Marco dos Pereiros, metade exacta da minha vida por bandas de S. Martinho do Bispo/Fala, essa exacta metade chamar-se Teresa, uma noite sentado na amurada do Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova com um amigo de que entretanto me desavim: de um olvido apesar de tudo não esquecido nem rendido – perdido apenas.
Estamos vivos, vamos ser soro. Despertamos do sono da cortiça uma garrafa de vinho, celebramos a mansidão agra da nossa contemporaneidade. Somos, sim somo-lo, contemporâneos deste chão de mortos, daí que chã nos resulte a vida. Conhecemos aquele que abriu uma pequena sapataria para a mulher ter com que se entreter, só que depois desataram a florescer, como metástases, os antros hipershoppings, a sapataria rende menos do que obriga, ela olha de lado para o homem, faz-lhe sopa e lava-lhe as cuecas mas não lhe dá ginástica de tálamo nem um beijo de cuspo d’açúcar ao deitar. Como antes da sapataria tiv-fiz-eram uma filha, agora têm de s’aguentar. Sabemos que isto se chama Felicidade, sabemo-lo tão bem.
Acabou-se-me quanta manhã tinha. Faltam sete para as duas da tarde. A minha sopa, faço-a eu, algures na Cidade, em prédio algures.

15/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 58

58. SEMPRE DE FORA E PARA SEMPRE

Coimbra, domingo, 15 de Agosto de 2010


Corpos que são homens, corpos que são mulheres.
Muito leite em fúria às vezes gentil, mas fúria.
Queimados os homens, queimadas as mulheres
de leite negro, de coisas todas lunares



no equinócio das vidas, das economias emaranhadas,
dos corações expostos ao não brando churrasco
das idades. Eu agora também exponho: esta mão,
esta roupa encarnada sangrando à varanda.



Dias e dias sem uma luz de presença: sabes tu?
Casamentos como a evisceração de coelhos.
Viúvas que corvonizam as ruas brancas,
sinos que latem uivos de bronze, brancos também.



Eu latejo ante a senhoril procissão de fiambres.
Remedeio-me, enfim, estiolado todo embora.
E no meu corpo bate a água da mulher,
a que aceitou duas horas, uma cerveja, uma frase.



Roseiras púbicas, punidas, vergastadas.
Palavras como algas pelas areias, tantas.
Quietação de domingo num centro comercial,
nenhum pranto, muita tinta permanente.



Meto-me num autocarro sem rota certa,
miro de fora (sempre de fora e para sempre)
os quintais bem cuidados, as filhas dos outros,
as cervejarias onde anoitecer é para consumo da casa.



Eu vou, estou indo, sou o que nem sempre volta.
Corpos esguichados pelos interstícios das morgues
e das maternidades, soro, colostro, imundícies
consagradas pela moral dos padres.

Hordas comedoras de peixes & e de aves, baías
onde o azul é um lapso atlântico, veredas
que a sombra veste de panos frios, mães
tranquilas na antecâmara vestibular da morte.



Então: corpos que são homens, que são mulheres,
e aves & peixes e ventos soprados na boca
dos rios, entre distância e telefonema, e rito
e grito, e eu, agora, bem, a roupa que sangra.

12/08/2010

Rosário Breve nº 167 - www.oribatejo.pt (abertura de entrada de 11 de Agosto de 2010 de Ideário de Coimbra, já aviso)

© Roy DeCarava - Romare Bearden (1951)



Cores ardendo dentro



Como homens sós nos campos, os incêndios lavram também.
São ouro vivo, mortífero, os incêndios. Não tem clemência, o Estio, o largo Verão. O mundo estiola, sedentíssimo. Tenho ido ao Lar ver a minha Mãe. Ela está a passar o último Rio, o Derradeiro Rito, o Final Ritmo. Já não sei se me reconhece. Olho-a. As palavras dela são para dentro. É um incêndio quase acabado, a minha Mãe. O Tempo faz dela o que quer. Não posso estancar essa onda que aí vem. Eu e ela na praia, como antigamente, mas agora estamos sós um de cada vez. Vou ter de nascer pela segunda e última vez, quando me telefonarem a dizer assim:

– A Mãe morreu, filho.

Vou ter de fazer isso, enquanto espero o Inverno. Agora tenho muita idade. Agora sou uma porta de madeira de carvalho. Colecciono visões de pássaros, mas não lecciono voos. Muitas coisas (cada vez mais coisas) me comovem: digo: o vaso da flor vermelha que aquela senhora nutre de água e de frases sós; o caixilho amarelo que estabelece a janela; a caixa de sapatos aos pés do contentor do lixo; os incêndios que ardem mães. Tiro e ponho os óculos, canso-me mais, não sei porquê. Em Lisboa, uma vez, pedestrei o meu coração rente ao Tejo. Outra ocasião, chorei à chuva, ninguém topou o que sucedia. Outra ainda, fechei-me num canavial, fiquei ali horas e horas sem precisar de nada, muito menos de viver. Agora, olho o meu telefone e espero.
E no Inverno a flor vermelha e o caixilho amarelo, cores de incêndio.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 4


© Roy DeCarava Graduation (1949)

Sou a Cidade no homem. Visto-me de prédios, porto colinas como ancas ou mamilos, uso árvores na pele, tenho contentores como furúnculos. À noite, exibo as minhas mais pobres jóias: semáforos, candeeiros, montras, coruscações lunares fluindo à flor do Rio. Expilo emanações febris: fogos-fátuos da Conchada, canaviais do Bolão, horas da Cabra, gerações e gerações de feirantes do Espírito Santo e da Rainha Santa, que de Aragão veio para deixar um coto de braço mumificado e uma braçada de rosas em vez de pão. A amásia Inez chora sangue pela boca e por mim. Sou a Cidade no homem que entra no Palácio da Justiça, que outrora foi Colégio de S. Tomás, para se demorar ante os painéis de Jorge Colaço. Empresto-me aos vivos – como deles me empesto. Que alma multitudinária posso ’inda exercer? Que burguesinhos cevarei a malgas de rancho e a tabuleiros de arrufadas? Mais bem me conhecem as putas do que os vereadores. Teço e estendo, para elas, incontáveis e não contadas vielas. Doença e convalescença rimam-se-me. E fui já Aeminium, não destes vivos, mas de ignotos remo(r)tos homens e mulheres.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 3



Somos os homens na Cidade. Também as mulheres são os homens na Cidade. Da janela, assistimos ao lusco-fusco dos outros que nós somos: sósias de siameses. O senhor que vai ao contentor despejar o lixo. A senhora atrelada ao terrier mimadíssimo. O vendedor que não vendeu tostão o dia todo regressando a casa como o boi da nora ao estábulo pelo crepúsculo. O maluco das quarenta e duas esferográficas no bolso da camisa que tem a felicidade de não saber – nem precisar de – escrever.
Escrevo, eu escrevo. Preciso de, tenho de. Se não, como me seria a Cidade? Com tinta e papel seguro os mortos no chão. Com este e aquela, atiro aves aos ares. Do Tovim, de Chão do Bispo – chegam as névoas-fumaças das seis da manhã, ainda hoje as vi, à varanda, desperto sem retorno para a segunda-feira.
Olha, estamos vivos. Mas somo-lo? Minúsculos vasos de serotonina nos são as cabeças hidroeléctricas. Logradouros juncados de tabuada, de três ou quatro palavras francesas, de lapelas com nódoas de sopa, de provérbios vãos, feliznatal e muntassaúde, de actos, ratos, tratos, retratos e rectractos contratos, de estojos de óculos sem óculos dentro, de boinas, de mais chinelos, de cachecóis, de meia-mão de anedotas, de recibos da farmácia, de fósforos usados e de dias felizes por usar – somos. Depois, des-somos e descemos.

10/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 2

Os fetos nadam amnioticamente. Dos mortos, o que foi pensamento volve-se soro orgânico; e o que foi experiência, deixou filhos, azulejos, chinelos, algum cachimbo, um crédito mal-parado de frases fragmentárias. Parece que somos todos babilónios, ou assim.
Sou o homem na Cidade, como o Carlos do Carmo. Meia-dúzia de camisas, outro tanto de pares de meias, uma ou duas vocações insensatas. Calado, afixo a mudez como nudez da boca: por isso escrevo, como se falasse tinta, para um auditório de papel.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 15 - fragmento 1 (abertura)



15. VEM, VEM, Ó MEU ANJO EM PULCRA GRAÇA



Coimbra, segunda-feira, 14 de Junho de 2010


É sobre um chão de mortos que vivemos. De mortos e de plantas vivas, valha a verdade. Na Praça 25 de Abril, certo chorão é de tremenda beleza subindo dos mortos. Não indago a vida diferente das pedras. A minha geologia é outra: árvores e gente – e aves umas a outra liando, piando piano. Uma ave, todas as aves. A Cidade está emprestada aos vivos. Também: empestada de vivos. As aves vivas não consideram as aves que morreram. Sobreviveram ao betão, às máquinas, às paróquias, às comarcas, as aves das cidades. Por campos do Mondego, exercem a magistratura da solidão. Nós por aqui também. As aves de Coimbra não sofrem incerteza. Os prédios amarelecem décadas. Os mais de nós não olhamos as aves. Fechamo-nos nos prédios, em quartos juncados de quinquilharia mental. Usamos um coração de pechisbeque, uma memória de bricabraque. Acumulamos vitualhas pobríssimas. Salvamo-nos quando cheiramos a sabão e a manjerico. Pelas noites, cavalheiros furtivos mijam esquinas, marcam território, sobre o chão-de-vivos-mortos-plantas.

08/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – Antecipação titular da entrada 47, de 20 de Julho de 2010, deste Ideário


 


O CORAÇÃO DA MINHA MÃE
UMA BORBOLETA AO QUARTO DIA




IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 10 (fecho do dia 13 de Junho de 2010)


Pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, Retrato de Raul Brandão (1896, Museu do Chiado, Lisboa)



A amargura de Brandão, Raul, espera-me em A Farsa, capítulo II. Talvez outros conimbricenses, neste (im)preciso instante, se resgatem do Tempo lendo livros também, não sei, daqui não se vê. O 13 alemão, Müller, mete o terceiro na baliza marsupial. Acenderam as luzes do Bingo, que fica ao nível térreo do Estádio. O 14, Cacau, brasileiro naturalizado (mais um…) alemão, faz o quarto aos koalas: é o chamado “come e koala”. A tarde encaneceu de vez (20h58m). Entram quatro mamas, por acaso jeitosas, a comprar cigarros. Novitas, as portadoras delas. A mais alta compra Marlboro (embalagem mole); a mais baixa, Português Vermelho. Acabo de afiar um lápis comprado nos Chineses para sublinhar o meu Raul Brandão. Recôndito prazer de há décadas: afiar um lápis, encetar um livro, descobrir uma frase iluminada por dentro, cheirar uma borracha, recarregar a caneta de tinta permanente. No mesmo Domingo mesmo, deve ser um bocadito chato estar australiano. Se fosse rugby, os alemães estariam lixados, valha a verdade. Toca o telelé do imigrante afro (o toque é kuduru ou quejanda coisa, claro), ele atende, crioula-se todo em voz altifalante e ao rir-se faz-me desfalecer de inveja daquela dentição maravilhosa: Deus deu-me só as nozes. A esta hora mesma, um Miroslav come pão negro, um Vladimir bebe vodka, um irlandês O’ Something abafa dois arenques, e o Joaquim da Pampilhosa, no regresso da tasca, começa a bater na mulher. Este domingo nunca mais acaba na Austrália. Se calhar, pelo fuso horário, até já acabou, coitados, que levam quatro a ó e já é segunda-feira de ir trabalhar. Acaba o Alemanha-Austrália. Fico a saber pelo locutor que o jogo teve lugar numa cidade pessoana: Durban. A cabeça daquele senhor poderia ser a de Errol Flynn em velho. Este português sofre de uma obesidade nada humorística: o bandulho, vasto como um colchão-de-água, exige-lhe mais uma cilha do que um cinto. Deve mandar fazer os fatos à medida, só pode. É de uma bonomia silenciosa, raras vezes o escutei, toma o que tem a tomar, paga e sai. Mas é cliente regular, deve morar perto, o café é familiar. Não há-de ser fácil com um corpo megalómano. Mais quatro mamas (mas menos jeitosas e menos novas) a comprar tabaco: um maço de Português Azul para cada uma x 2. Instaura-se a Noite, finalmente (21h27m). Há ainda uns resquícios cinzazuis do que foi Dia, mas é uma luta inglória. Raul Brandão quer acontecer, também ele, ele, como o Domingo, mesmo. A Farsa, página 17:

Mas há ocasiões na vida em que as figuras humanas adquirem uma expressão extraordinária. Basta que outra luz as ilumine diferente daquela em que estamos habituados a vê-las. Às vezes basta uma palavra – e descobrimos um mundo novo que nos surpreende.

E a páginas 24:

Entre o dia de hoje e o outro longínquo a diferença não existe.

Instante-antecâmara do regresso ao Quarto-Casa: chávena de chá, Chesterton/Padre Brown, merecimento do sono – e sono. Pouco resta de domingo, pouco mais de hora e meia. (Não sei por nem para quê este cavalheiro esmalta o cabelo com uma tinta que lhe volve mais anacrónica ainda a cabeça.) Dois casais jovens de carnes grossas à mesa por baixo do televisor. Os machos fumam Marlboro Intense, elas não fumam. Minto: uma fuma. (“Uma fuma” – tem aquele ritmo e sonoridade.) Vê-se a alça direita do soutien da que fuma. A outra prolonga a cabeça num rabo-de-cavalo por lavar. Um almeida da Câmara bem vuer uma cafèzada. Perde a santidade o dia-santo. A fadiga toma-me dos pés aos olhos. Já catrapisco – hoje se calhar não vai dar muito Chesterton/Brown. A idiotia do apresentador do concurso televisivo chega a ser lustral. E agora, prémio-excelência para aquelas Mãe & Filha: vestidas de idênticas sobrecamisas de ganga índigo, gordas ambas como peanhas de massa-consistente, de óculos iguais. Maravilha maior do que a da multiplicação dos peixes, esta duplicação de cetáceos. Nunca as houvera visto, mas agora fico à espera da revisão. Às tantas (especulo na ausência do senhor), o Marido & Pai é algum jaquinzinho frito, desses pequenitos que se enganam uma vez na rotunda e nunca mais são livres de deixar a contramão. Rica senhora e rica moçoila, sinceramente – para aí uns duzentos e quarenta quilos de riqueza. (Por falar nisso, amanhã tenho de comprar banha de porco para os refogados.) Pronto, finalmente sorri (eu) um pouco hoje. Sessenta cêntimos pelo café, boas-noites, amargura, e obrigado.

07/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 9


Quem respira a estas horas o sossego oxigenado do Choupal? Quem for, juízo teve: a tepidez do instante só pode ser gratificante, lá, entre árvores que bebem do rio. Viaturas exaustas bebem também, além, em frente, nas bombas da GALP. Tanta gente que já viveu, tanta que vive, tanta que viverá: e todas as gentes ligadas pelo fio incorruptível da regeneração orgânica-linguística. O miúdo Afonso-Beatriz-Costa imita ao rés do solo a locomoção do sapo. Mais velhito do que ele, o outro rapazinho, o do casal grande, assiste divertido ao pequeno batráquio comedor de milho frito. Um imigrante afro lê o Record, pasquim da bola que há uns tempos é escrito em brasilês/palopês órtógráfícú. Os Australianos não têm hipótese nenhuma contra os Teutões: só não estão a levar mais porque Deus, ou o Diabo por Ele, deve gostar de cangurus. O colosso careca, a mulher NBA e sua cria dão às de Vila-Diogo, em paz, ordem e sossego. O miúdo-Beatriz está-se a passar um bocadito: imerso no esquizomundo da infância, entrega-se a solilóquios de motoreta que não pega, agora atira uma tampa de Pedras Salgadas contra mesas, cadeiras, vidraças, balcão. Um senhor que toma ao balcão uma imperial dá-lhe corda e joga ao tampabol com ele. Entra para comprar uma revista esta madura de ancas hípicas, cabeleira escalavrada em frisas, sapatos agudos de tirar cera dos ouvidos. Não há a revista que ela queria, decide comprar um filme em dêvêdê: A Vida é um Milagre, de Emir Kusturica. Não tem propriamente a aura de ferro dos sozinhos e das sozinhas. É de gestos despachados, decididos e, talvez, decisivos. Fuma SG Filtro. Partilha connosco o Domingo mesmo. Português Vermelho é o que aquele rapaz saca da máquina (3,50 euros). Há Caracóis.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 8



Em (in)directo via satélite, os Alemães vão vencendo os Australianos por dois a zero: também é Domingo lá em baixo. Entra no café um sósia do manhoso Joaquim Oliveira, irmão do António idem que foi (bom) jogador da bola e (mau) treinador da mesma. Um rapaz meu amigo que é médico, Rui C., além, curtindo, depois de vergar a mola no hospital, a tardinha na esplanada, servido de tremoços & imperial alta, em paz e sossego e lentes fumadas. Entra um casal poderoso: a mulher é grande, grande é ele e careca – se em vez de pescoço tivesse casquilho, seria igualzinho a uma lâmpada. Têm aquele filho, que é um bocado flausino das pernitas, mas, quem sabe, ainda pode vir a ser engenheiro ou coiso. A esta hora, se calhar, alguém faz amor contra alguém, não sei, daqui não se vê. O menino das tiras fritas chama-se Afonso, estava distraído a bater na vidraça lateral da entrada, o pai chamou-o, o miúdo obedeceu logo, reocupou a cadeira dele, o pai avançou mais uma página do jornal.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 7

© A. Macke - Jardim Zoológico (1912)



Tudo isto que vês – é o Domingo. Está tudo a acontecer no mesmo Domingo, tudo a acontecer no Domingo mesmo. Preparam-se as enfermeiras para o turno da noite. Alguns dos acamados receiam-na, à Noite, nunca se sabe que Amanhã, se amanhã. Um miúdo muito miúdo, de cabelo à Beatriz Costa, tasquinha deliciado o conteúdo de um pacote de tiras de milho fritas enquanto o pai, fumador de Marlboro, lê o Público. Vem ali o doidinho das barbas, aquele que fala de tudo com a virtude de saber nada, um pouco à Marcelo Rebelo de Sousa em literatura e um tanto à Nuno Rogeiro seja no que for. Um homem de garganta avariada, na esplanada, nem por isso deixa de crocitar como um albatroz a pilhas – ou de pissitar qual um estorninho capaz só de reticências – ou de grão de areia no giz que diz ardósia. Tudo o mesmo, no Domingo mesmo, no mesmo Domingo. (Sim, Mãe, estou bem.)

06/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 6


LOUVAÇÕES


Louvo
o virginal cai-cai da empregadinha
que se veste cedo e despe à tardinha.
Louvo
a hérnia discal do senhor Tavares
que arrasta a reforma por mil e um bares.
Louvo
do cru militar a dura corneta
e da camarata a manceba punheta.
Louvo
do primo-ministro a seriedade
e o primo de Abril e a hilaridade.
Louvo
a imagem do rio mesmo a contratempo
e a vida ser morte em antemomento.
Louvo
a comiseração freirinha à direita
e o padre Melícias sempre sempr’ à espreita.
Louvo
o pateta alegre e a alegre viúva
e as tardes de sol e as noites de chuva.
Louvo
do ovo a clara albumina que gema
ao nascer do pinto e ao do poema.

Esta é a rosa do zamericanos - Hiroshima, 6 de Agosto de 1945

05/08/2010

Rosário Breve nº 166 - www.oribatejo.pt



Murãgus dassucar é ké!



Quão mais gigantesca a crise social, mais fervilham de in(s)anidade os anões que a encadeiam. Veja-se agora o caso do fim das “repetências” no “Ensino”. A tia Alçada, malogranda sucessora da malograda comadre Milu na desventura de um ministério a que só por macambúzia e cabisbaixa piada podemos designar por “da Educação”, não cede – e as nano-inanidades sucedem-se em catadupa.
A miudagem já podia insultar (e insultava) e bater (e batia) nos professores. Já podia faltar às aulas quanto quisesse. Agora, é proibido que chumbem, mesmo que (ou por causa de) não saibam nada de nadinha de népias de nicles. Quer dizer que a criancinha vai conseguir ser catedrática de uma bolonhice qualquer no máximo aos 25 anos de idade. Isto é tudo os anões a segregar mais anões. As insanidades a babar mais inanidades. A desvergonha a rimar com Bolonha.
Tenho uma proposta para remediar a nossa agrura: que passemos a tratar o tal Ministério (dito) da Educação por Ministério dos Morangos de Açúcar. Julgo que nos tiraríamos todos do sério – e prontos, tàzaver, é-assim.
Entretanto, entrámos já no mês-pimba por excelência. Agosto é quando o cheiro da sardinha assada entra pela igreja adentro, é quando os casamentos ajuntam garrafões a moçoilas vermelhuscas que se ajuntaram, para emprenhar ou por haver emprenhado, a rapazolas atordoados pelo martini com cerveja e pela corrente da motorizada, é quando os autarcas arregaçam as camisas e vão receber as hordas de motards às praias fluviais das parvónias, é quando as avós morrem do flato e os avôs de melancolia, é quando eu suspiro pela dour’outonalidade de Setembro, mês que não é já, porém, o do regresso à Escola, mas à TVI em que o desventurado Ensino se tornou.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 5


Foi-se-me entretanto a acuidade da vista, foram-se-me os dentes. Restam-me todas as ruas, que herdei antes de apor-lhes a escritura presente. Retomarei amanhã as minhas voltas podógrafas, prometo-mo. Hoje, como em um recente antes, uma vidinha de refeições mais ou menos frugais, serões mais ou menos banais, espécie de vilegiatura quão menos metafísica quão mais urge pagar a renda do quarto, por liquidar ainda quando vão e são já treze os dias de Junho. De qualquer maneira (qualquer, mesmo) levar avante âncoras e tristuras, ganchos e alembraduras. Não ceder nunca ao apelo da selva social no que respeita a moralidadezinhas títeres, a circunscrições preconceituosas, a raivas purulentas, a olha-o-que-digo-não-o-que-faço-e-desfaço. O caminho está livre: Pessanha, Brandão, Nobre, Junqueiro, Cesário, Pessoa, Moraes, Castro, Redol, Bragança, Oliveira, Soeiro, Machado, Eça, Ramalho, Ficalho, Miguéis – e outros mais – livram o caminho, desinfestam-no da incontornável banalidade da existência, que tão mais recrudesce quão mais se levanta o olhar da página que se lia. Sim, vezes há em que escrever se me volve outra maneira de ler. Assisto então (como precisamente agora, precisamente agora) à concertante magia da tinta & papel fazendo-se caleidoscópio, espécie óptica de mapa sideral da formiga vista por dentro. E considerando que um dia o planeta rebenta de trampa acumulada – pouco, nada importa de tudo isto. Um poema? Um banco de jardim? Uma planta metalúrgica? A mãe que estremece a filha? A lista telefónica de Setúbal? As moles hipercomerciais? O cancro renal do senhor escrivão? A banca judaica de penhores? Os bailes-matinées do salão recreativo? As datas? O esquecimento? Nada: pois que por alguma razão o areal da praia se prolonga, submarino, mar adentro. Durante muitos anos, combati o inimigo errado em batalha incerta. Hoje, almejo tão-só uma lufada fresca à passagem por uma árvore fiel a si mesma, o afago visual de uma restolhada de pardais, uma lata de cavalas e um pão decente. Tenho alguma sorte, posto que, precisando dos livros como um merceeiro de freguesas, livros nunca me faltam. No quarto, esperam-me Chesterton, Woolf, Fitzgerald, o mavioso Padre António Vieira, todos eles e elas todas. É a derradeira maneira de não estar só. A penúltima é fazer a barba ao mesmo tempo que o outro gajo, o canhoto.

*

(Isto cresce.)

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 4

De quando em quando, o sol do dia refaz-se-me Sol de outros dias. É na infância e na penúltima mocidade: um Sol maiúsculo, um Sol de quintas abertas que floresce a tangerina na ínsua, a rã clandestina no charco que a madrugada vidra e a Lua platina, as filhas robustas da pereira-de-Inverno, o cata-vento em ferro ’inda moço, as mulheres aferventando verdes arrancados com bonomia à horta, os latões virados onde os cães suportam o celibato e a carraça, pelas colinas derredor as igrejinhas como pingos de cal molhada, as primícias pesqueiras do odor das raparigas, a fressura exposta das cerejeiras, o niponismo meditabundo dos velhos que passam a pé amparando bicicletas vitalícias, o sol do Sol, que se me rarefaz depois se me refazer.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 3

Não é Coimbra que Brandão descreve, mas…

Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal.

 
(pág. 7)
E na página seguinte:

Pressente-se que as existências se fizeram de mil pequenos nadas acumulados.

03/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 2



Desejo: que ao menos resultem legíveis as emendas que aponho ao manuscrito da minha vida.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 14 - fragmento 1 (abertura)

14. ROSA DE CÁ PARA O GAJO CANHOTO

Coimbra, domingo, 13 de Junho de 2010



Já nem é assim tão cedo (09h34m) – mas os domingos de Coimbra são de uma exterior paz campestre. Para agravo, o Sol, o Grande Farol, voltou em força. É uma força suave, a esta hora, mas se calhar vai abrasar a urbe não há-de tardar muito.
Na esplanada do Gira-Solum à espera do MF, que precisa de um trabalho escrito revisto à maneira. Cá estou.
Um gajo numa motorizada amarela. Uma divorciada de cabeleira encharcada de tinta ruiva. Um coimbrinha a ler o Diário da República-B, vulto Diário de Notícias. Dois gansos de setentas e tais passeando o colesterol e o in memoriam da próstata. Jubilosas andorinhas e pardais argutos como riscos de criança em caderno-céu. Caixotes e caixotes verticais com gente dentro. Umas pernas mal amanhadas de quarentão entre calções e sapatilhas de domingo aeróbico-matinal. Um arrumador de boné de pala, encarnado o boné, tição amarelo o arrumador. Um Citroën AX Furio como o que tive, uma vez na vida. Uma sirigaita (muito) serôdia trajada de nova (roupagem negra, gorro incluso, entre o palestiniano e o baitimbora). Um casal feliz, ele-bola, ela-novela, mas duas têvês em casa. Criança absolutamente nenhuma. Nenhuma ânsia, também. Uma mulher do formato da minha Mãe há cinquenta anos. Óculos, pochettes, maletas, sandálias, lacostes, sacos plásticos, cãs, um chapéu de padrão xadrez encimando um bigode à brasileiro dos anos 50/XX (tipo Scolari), uma máquina fotográfica digital tamanho-polegar, um afro velho e duas afras média idade, outra vez o gajo da motorizada amarela, o 5F Portagem, um careca vermelhusco como uma lâmpada de pórtico de casa-de-putas, uma senhora velha de casaquinho de malha preto e saia de flores preto-cinza-brancas, uma mamalhuda porta-refegos-ventrais não pensando em Schopenhauer, um casalinho serôdio de cabeças nevadas de guano de albatroz, uma jovem de nádegas inscritas a compasso e tira-linhas, um odre de fato-de-treino com aspecto de ter andado na chanfana e no Johnnie Walker Black Label o sábado todo, uma mulher de canelas encordoadas de varizes grossas como safios, nenhuma ânsia e nenhuma esperança, 10h01m e o MF sem vir, um cangalheiro dando pernadas de compasso como um corpo geómetra, outra mulherzinha pançuda e pequenina como um buda de rosca, uma criança finalmente, a mãe que a vem trazer ao Gira por ser o fim-de-semana quinzenal do pai, as árvores que fazem respirar os arruamentos, algumas varandas apaineladas de vidro para efeito-marquise, a agência de viagens (onde vi entrar a chinesa grande do capítulo 5, 4-6-10) chamada Passe-Partout (nome bem posto, para agência de viagens), um técnico instalador de ar-condicionado com ar de jogador dos Distritais, um sósia do Russell Crowe naquele filme contra as tabaqueiras que ele fez com o Pacino, um inesperado eucalipto, outra vez a jovem do cu a tira-linhas, uns sapatos de camurça embolados de joanetes e este poema que me anda na mona desde ontem à noite:

ROSA DE CÁ

A morosa rosa
amorosa é.
O lacre ela ousa
E ’spinho no pé.

Alva ela orvalha,
toda matinal.
Rosa de Coimbra
e de Portugal.

02/08/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 13 - fragmento 6



TRÉMULA FLÂMULA

Trémula flâmula, a pele de um cada
é carta mar(e)ada do Tempo marinho.
Daninho, o mar dos dias volvidos
faz-se ’inda rio dos que avante volvem.

Quem vê um rio, a tudo assiste:
a memória lambendo as feridas das margens,
os peixes do desejo, as velas pandas saciadas,
os seixos que, no fundo, são as não-ditas palavras

que houvera ter dito, mailas que houvera não.

Ríspidos sulcos, deste cavalheiro as rugas
escrevem: a filha doutorada que não telefona
há meses, a tensa amante brasileira que tudo
ameaça revelar à esposa entrevada,
a salgema não partilhável nem ’lhada
de um remoto carro-de-rolamentos na (re)morta infância.

Trémula, sim, e flâmula – trémula flâmula.



Canzoada Assaltante