Se fosse viva, a minha avó materna teria completado, no passado dia primeiro de Julho, 98 anos. Não aconteceu assim. Devo dizer-lhe, avó, que o mundo não está melhor sem a senhora. Vou contar-lhe um caso.
No domingo do seu aniversário não cumprido, fui a uma aldeia cá do concelho. Havia festa. Cheguei pelo fim da manhã, ainda a tempo de ver passar a procissão. Fazia um calor de fornalha aberta. Guardei-me à sombra do café de um amigo e esperei. Fui almoçar com os músicos da filarmónica. Às quatro da tarde ia haver concerto, que era o que ali me levava. Afinal, não houve concerto nenhum. Porquê, avó? Por causa de o palco da festa estar ocupado pelos técnicos de um cantor pimba que ali se ia exibir nessa noite de 1 de Julho. Repare bem, avó: não houve filarmónica por causa do rei dos parolos.
Como vê, senhora mãe da minha mãe, o mundo não está melhor. Descambou na porcaria. As pessoas já não têm gosto. Não se importam de que lhes impinjam esterco sonoro em vez de boa música. Vim-me embora com as vísceras atadas num nó zangado. Tão depressa, não volto àquela festa, avó. Porque, assim, aquilo não é uma festa. É uma feira de parolos. E eu posso ser muita coisa, avó. Por exemplo, hei-de ser sempre seu neto. Mesmo que a senhora já por aqui não ande. Por magia, consigo recordar, através da memória da senhora, o tempo em que as festas populares o eram na verdade. E não eram esta triste imitação de artistas de plástico despejando músicas de alguidar sobre a populaça. A avó sabe.
O Eco (Pombal), 5 de Julho de 2001
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