12/01/2021

VinteVinte - 187 (II, sem cortes)

© DA. 27 de Janeiro de 2019 – 17h59m26s


II


Jerónimo, da antiga Alta, foi recolocado em Celas.
Otília, envelhecendo, foi morar com a filha.
Varandas pintadas de azul-forte nos prédios novos.
Cirandam no pórtico do hospital mil formigas humanas.
O eléctrico ascende aos Olivais apinhado de anónimos.
Noivos fazem-se fotografar na Sereia bonita.
Vizinhos projectam um centro de convívio com bufete.
Perto, o instituto oncológico regurgita seus tristes utentes.
Adolescências flanam em são descuido ambulatório.
Cada instante vale de si postal.

Propaganda comercial traveste a Cidade inerme.
Só a morte assegura total, imaculada inerrância.
Jerónimo vai à mercearia do senhor Abrantes.
Otília já não sai de casa, a filha ralha-lhe muito.
Cortaram o pinheiro-colosso do Espírito Santo.
A rua nova já brilha ao verão-de-são-martinho.
A taberna do Elias tem & serve o melhor vinho.
Adélia, filha rica de Elias, vai para enfermeira.
Aos domingos, descemos ao Calhabé, União ou Académica.
Depois vamos comer rancho ao Katekero em Ceira. Ou íamos.

Como células, as pessoas plasmam-se em co-acção.
Em Montarroio, repara-se o telhado da senhora Benedita.
Come-se muito bem no restaurante do Jardim da Manga.
Peixe fresco amanhece na praça gélido aroma vivo.
Há quiosque ao cimo da escada que divide o peixe da fruta.
O senhor do quiosque é Albino, tem cabeça & olhos de vaca.
Compramos ali o Mundo de Aventuras e o Texas Jack.
O Sebastião Doidivanas faz recados às peixeiras de peludos musculosos braços.
Dão-lhe o tostão para pão, sopa & vinho, fome não passa.
À hora de almoço, já se varre, lava, limpa, arruma, abala.

Sobe dali à Rua Larga o bondoso doutor Bersan.
Laico filantropo, consulta pro bono todos os humildes.
Veio ao D. Pedro V aviar-se de hortícolas, carapau, broa & queijo.
Tem humílimo tugúrio na Rua Norte – e desde estudante.
Lê latim & grego como os passarinhos bebem das fontes.
O município nunca lhe pedirá o nome para baptismo de artéria.
Estas ingratidões são recorrentes pecadilhos da Urbe.
Prefere-se glorificar a memória de abencerragens sem relevo.
Pratica-se o abelidar da lembrança mais justa.
Mas não entristeçamos por tal, que a pena não vale.

Não é da natureza qualquer resgate terminal.
Pode procrastinar-se por modo paliativo, mais não.
Isto tido em conta, nada como ganhar a lotaria.
Ser rico por um ano, acordar em alegria.
Outra coisa é o assassínio de idosos & de crianças.
Aldeias & cidades disputam disto ignóbil campeonato.
O noticiário é guloso de tais infâmias.
Mas não tanto quanto quando íamos a Ceira, senhor Augusto Gonçalves.
O União recebeu o Caldas, a Académica venceu o Portimonense.
Os escalões distritais de seniores são três, não, eram três.

Jerónimo passou da cama 15 à campa 1613.
De Otília nada sabemos, a filha-fera fecha-se em copas.
Durmamos sem ansiosa agitação onírica, por favor.
Tu podes orientar-te com alguma arte, não exagerando.
Rebentou um cano subterrâneo na Ladeira da Paula.
Serafim tem um quintalório catita em Almalaguês.
A ascendência de Emanuel remonta a Portalegre.
Quem rastreava muito bem genealogias era o professor Anselmo.
Regava árvores gráficas da comum gente em multissecular plantio.
Fundo chão de mortos, seu território de caça.

Santo António dos Olivais, era uma vez.
Vicejava tal colina, da Meditação se mirava Vale de Canas.
Dianteiro, Tovim, Rocha Nova, Roxo, Eiras, Penacova.
Sim, é formoso o canteiro pátrio, nada deve à fealdade.
Somos como éramos & sempre fomos as formigas-da-Cidade.
Voltareis comigo nunca mais, sei-o bem, a S. José.
Escrevivo sozinho & ando a sós pelo meu Calhabé.
Não questioneis a alheia existência ao natural alienada.
Chove, são bonitos o Banco de Portugal & o Hotel Astória.
Que sentiremos quando chove – tal é outra história.

Dois amigos cinéfilos foram ao Avenida sexta à noite.
Viram o ominoso Bela Lugosi anoitecendo o susto.
Lugosi & os dois amigos foram já sepultados.
O mesmo teatro-cine foi trocado por um cagalhão vertical.
Naturalmente, o dito cagalhão está hoje às moscas.
Não era assim ao tempo do senhor Cabral, porteiro & fadista.
Conservavam nos bastidores o espólio laboratorial de uma escola extinta.
Acima, a Rua Antero de Quental ainda mira o plano da Baixa.
O patriotismo é feito destes nadas irrisórios tão preciosos.
Ou era. Alternativas nascem a cada nascimento.

A mulher do sargento Porfírio abastece-se na Manutenção Militar.
Nada lhe falta, copiosa é a teta da vaca castrense.
Maria dos Anjos é de sua graça a roliça senhora-sargenta.
É de varicosas pernas muito brancas, obstipada cartografia venosa.
O marido é naturalmente gordo por naturalmente sargento.
Células ambos afinal também, inscritas no social tecido.
Coimbra são também, da Rebordosa porém ele, ela do Sabugal.
Porfírio viu a primeira luz aos 2 de Junho de 1924.
Maria dos Anjos fez o mesmo aos 16 de Dezembro de 1929 (segunda-feira).
Menos mal passaram do que Otília, por exemplo Otília (idem).

Bernardino, telegrafista dos Correios, chupista de mata-ratos.
Encostou-se bem ao emprego, reforma garantida, certinha.
Muito gostava ele dos bailes punheteiros do Coimbra Clube!
Infelizmente, a SPAC não documentou tais folias-dançantes.
Sim, esclareço: SPAC – Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas Lda.
Decerto não visaria a filmagem a Inspecção dos Espectáculos.
Mas que guarnição de chulos ali se apresentava ao serviço!
Que contingente de eufóricas putas, costureirinhas, dactilógrafas!
Os ciganos não buliam ali navalhas, olha quem!
Embarcado em paquetes era ali soberano o mano de Bernardino.

Chamava-se Firmino, rimando com o irmão.
Também ele se aposentou menos mal, o magano.
Morava na Rua da Gala com uma espanhola gaditana.
Tinha filhos soltos por desbaratadas solteiras fabris & febris.
Esfumaçava a sua cigarrilha adocicada por seu anis.
É pena isto vir aqui mas não pelo Secretariado Nacional da Informação.
Infinitude & finitude dão-se as mãos em a refacção do rarefeito.
Como as senhoras bem-postas a chá, bolos & revistas na Central.
Genciana folheia a Burda, Nicoleta a Marie França.
Belas tardes com a Flama, a Crónica Feminina & o Século Ilustrado.

Descuidai terem-se extinguido tantas décadas em fumo imaterial.
Afinal, a estatuária das praças ensina resistência ao povo.
Não olheis o instituto oncológico, olhai de Santa Clara a Portagem.
Ainda é bom patinhar na esporádica praia-fluvial face ao Parque.
E quando com o Tomané Abreu nos íamos à Cervejaria da Fábrica?
Imperiais perfeitas, capitosos pregos-no-pão, invencíveis tremoços ao sal-grosso.
Leandro, Ezequiel, Armandinho, Tatonas, Taxeira – eram connosco.
Sandes-de-cavala no Pratas, canjirões de sangria, edénico viver.
A podridão começou com o encerramento das fábricas, isso sim.
Ninguém me tira de tal dogma, crónica putrefacção começou então.

Naquela Sereia mesma das fotografias grupal-nubentes?
Ah sim, música muitas vezes, largos ranchos, frondosas filarmónicas.
A outra predisposição se deve tal disponibilidade à primeira das Artes.
Manhãs do sábado, tardes dominicais – em sagração do duradouro efémero.
Os hoje muito-velhos são liceais ainda do D. João III.
Poucos desses terão sido de mães utentes das sopas-do-Sidónio.
Choráveis sal no Pátio da Inquisição? Esmoláveis em a Santa Cruz?
Se a Junta V. diz que não é Olivais mas Conchada, assim sereis levados.
Por casados Vos entregueis na doce Rainha Santa – et carpem noctem.
Muito mais não virá, ocasião se não prestará, assim foi, é & será.

No Ateneu houvestes porém Brahms, Schumann, Schubert, Mahler.
São ’inda tesouro inapreçável, esses serões de/para tão poucos.
Bernardino-telegrafista não vinha – mas o doutor Bersan sim.
Fadistava-se sem fios nos degraus da Sé Velha.
Nutria-se de obrado presigo de cautela descendo as do Quebra-Costas.
Viver contra a morte foi sempre manigância prestímana.
Não era tal novidade então, agora segue-o não sendo.
O União recebe o Feirense, 0-0; a Académica bate o Benfica por 2-0.
O Esperança é de S. Martinho do Bispo; o Touring, de Mira; o Marialvas, de Cantanhede.
O Norte e Soure, do Paleão; o Neves, de Trouxemil; o Argus, de Arganil.

Notas tu, como o notais V., que escrevo por vezes mais celeremente.
O presto é ocasional – e o tacet também, bem-entendido.
Deu-me hoje para, a partir de um Jerónimo & de uma Otília, coimbrar mais.
Mais ainda, ou seja. Mote-perpétuo me dá voltas a Terra-Mater.
Nada que ofenda os santos ou faça enrubescer os anjos, enfim.
Escrevo para que a pobreza se me não volva miséria.
Algum trecho pode chegar a tocar-Vos a mão, o ombro, a lembrança.
Jogo na identificação: a própria como a da gregária grei.
Desdobram-se-me origamis de simples manutenção.
Vincam-se-me datações mais fiéis do que mentidas.

Sedimentam-se-nos, a nós Conimbricenses, certa paciência sapiente.
Na Arregaça como na Alegria, chuva & estiagem jogavam golpes.
Filhos de operários – os que vingavam – aprendiam a desejar.
Alguns migraram: Pinhal do Rei, Alcácer do Sal, Tavira, Pinhel.
Foram a suas vidas, não muitos voltaram de vez, talvez nenhum.
Originaram descendências, estas também abertas a diásporas.
Não são, pois, matriculáveis neste corso da Lusa Apenas, perdão, Atenas.
Contam Rui Marques, José Peres, António Cação, José Baptista, Idílio Costa,
Eneida Guedes, Natália Teles, Israel Campos, Isabel Reis, Ana Albuquerque.
Presente & passado sejam elásticos robustos na geral voragem de papéis.








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