17/06/2005

Nozes

Com o passar do tempo, a memória torna-se refinada como o açúcar. Mas, ao contrário do açúcar, a amargura faz parte dela. Ainda assim, o corpo, que é tudo quanto temos para ser o pouco que somos, pode ir dando-se ao luxo de escolher. Se nem sempre a vida, ao menos quase sempre a memória.
Lembro aqui uma imagem fascinante. Não tem nada de especial. É apenas fascinante. Para mim. Era um homem que andava de porta em porta tentando vender um livro chamado “A Saúde pelos Alimentos”. O meu pai comprou o livro. O vendedor era educado, afável. E cheirava a tristeza como um cão batido pela chuva transversal dos adultos. Saí de casa e fui brincar para o monte. Vi outra vez o homem. Sentado aos pés de um cedro, o homem comia nozes. O livro que o meu pai comprou ensina que sete nozes equivalem, em valor alimentar, a um bife. Não falei com o homem. É sempre difícil falar com alguém que come sozinho.
Passados estes anos, vivo com esta imagem: homem, porta, livro, pai, monte, nozes. Que hei-de fazer com estas peças terríveis? Que lição me sobra desta luz chuvosa?
Não sei que vos diga. Sei (e confesso-o sem mal) que já me tem acontecido ir sentar-me junto ao mesmo cedro. E aí me lembro do homem e do meu pai, ambos desaparecidos pela sempre. Nunca me esqueço de levar nozes comigo.

Palavras de Vidro, in o Correio da Marinha Grande, 13 de Julho de 2001

Sem comentários:

Canzoada Assaltante