31/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 811

© DA.

811

Sábado,
30 de Outubro de 2021

    Finalmente, uma amostra invernosa: chuva & vento com alguma força. De noite, a movediça intempérie cantou grosso. Por algumas horas, deu para esquecer a torreira calcinante de todo o resto do ano. Para mim, é oásis. Ontem, tendo saído um pouco pela finimanhã, pude marchar airosamente. Não escrevinhei. Andei sem precisar de linhas no papel. Coisas pretéritas, que preteritamente tinham toda a importância do mundo, passaram-me pela mente como passaram no Tempo: sem mundo & sem importância.
    Sob o ingente céu mercurial, munido de guarda-chuva (que não cheguei a abrir), andei ainda alguns quilómetros. Vi gente almoçando, em salas comezinhas, comer de cozinhas. Tomei um café alto em zona de vocação transitária. Vi uma rapariga ou Paula ou Anabela, não pude certificar-me nem, por pudor, quis perguntar. Vi também dois irmãos manhosos & desbocados que nunca foram credores de minha particular simpatia. Sob o arvoredo antigo, a antiga paragem-bus usada por um José Maria Queimado Vivas, músico que desde 1991 dorme sem aurora no campo-santo da Conchada.
    Uma coisa faltou: que estivesse mais frio ardendo. Apesar do cenário invernal, a temperatura graduava-se acima dos vinte centígrados, upa upa. O blusão chegou a abafar-me um bocadito. Pertíssimo do sítio onde (a um 31 de Março pela noite) mataram a tiro o porteiro Abel, descasaquei-me por cinco minutos, oferecendo camisa & torso à aragem oblíqua das treze horas. Foi agradável, senhores. Foi aprazível, meninas.
    Hoje, a diferença esteve na quilometragem feita: muitíssimo inferior à praticada ontem. Depressa me devolvi a recato doméstico. Diverti-me um pouco (mas muito pouco) com o frenesi de vespas & aranhiços íncolas a propósito do (des)Orçamento, das eleições devidas à iminente queda do Governo-Costa, da palhaçada supostamente salvífica que vai pelos antros do PPD-PSD, da farsa autofágica & bufa que vai pelos urinóis do CDS-PP, coisas assim. Saciado de batatal cozido em branco com peixe idem, bocejei cavernosamente antes de me deixar aniquilar por o delíquio da sesta. Deve ter sido boa escolha, pois que despertei sem remorsos nem argoladas existenciais de tal tipo.
    Foi nessa espécie de irrelevante torpor que me abandonei sem luta ao que restava de sábado por respirar. Guardei em seu sítio meia-dúzia de papéis sem tipografia por destino. Uma chávena fervente de cevada acompanhou-me ao cubículo da livralhada. Ali (que aqui é), folheei testemunhos do século passado: uma cidade com rio, um epistolário servindo de prova de dolo em tribunal, um punhal agora relíquia de museu, nomes alfinetados ao pó como borboletas improváveis, décadas sem outro retorno que o da compreensão capaz de interrogar. Tais coisas demoram-se na ribalta da hora bem aproveitada.
    Sexta & sábado goraram-se. Às duas da manhã de domingo, volta a ser uma hora – por ordem de quem manda nisto dos relógios dos outros.



27/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 803 a 810

José Abrunheiro (1880 - 1928 ou 1930)

803

Segunda-feira,
23 de Outubro de 2021

Escoro com versos quanto escrevivo.
Importa-me fazê-lo antes da largada.
Quando póstumo, deixarei andar
– mas não por encanto, perdão, enquanto.

Autopiedade não gasto nem escusa.
É-se feito também dos próprios erros.
Altifonantes qualidades? Nem por isso.
Antes alimentar aves, alegria certa.

Tenho lido devagar mais a vida do que os livros.
Vou conseguindo invisibilidade, é proeza.
Nem todos deixamos rasto, resto ou rosto
– é-se de caras esquecido, dê-se-nos tempo.

Não vejo qualquer herói ao espelho.
Não cuido ao espelho de vítima alguma.
Cortei o queixo, golpe fino ao raspar da barba.
Já coagulou, posso sair de cara lavada.

Sem ansiedade nem euforia, pela tarde
progrido na incerteza mais domesticada.
Tomo a meia-de-leite com a doce queijada-
-de-Tentúgal – e tudo sem precisar de

satisfações dar a quem (não) quer que seja:
poderia mui bem ir à bifana com cerveja.
Mas não, deixo correr, não padeço de pressa.
Tenho caterva de Camões, Pessoa & Eça

com que afrontar a ignorância & o desuso.
Já muito o disse: não me dou por deluso
para com alienações ovelheiras ou moralóides.
O meu músculo é natural, não é coisa de esteróides.

Escrevo sim estas quadras-pró-manjerico.
Os santos mais impopulares me guardam vãos.
Estiolo só de lucidez – e de perder Irmãos.
Quanto ao resto, nem mísero pobre nem porco & rico.

(804)

(Pícaro que não épico embora & todavia,
faço por merecer da noite o óbolo do dia.)

805

E andei por onde tive seis, dezoito, vinte
& dois anos, voltei aperreado de outra idade,
calcinado de a não ter agora nem jamais nunca.

806

    – Hoje foi um dia complicado – diz a senhora bebedora sem dentes a seu parceiro de monólogo.
    – Ainda tenho quase cinco euros – redargue o parceiro – mas eu se fosse a ti não me fiava muito nisso.
    Sou o terceiro (mas mudo) destas falas. Calo-me (escriba) a este canto do balcão (ão-ão). Vim ver o sítio onde cresci. Está cá ninguém de meu crescimento.
É nada bonito este deserto demográfico. Sempre há último-autocarro. (Como é que isto se põe em escrita? Então não vêdes? Então não lêdes?)

807

Anos de mais tenho eu feito maus versos:
o tempo é de melhorar a prestação.
Ventos & mijos usam ser adversos,
um gato não é cão, que o cão é cão.

Minha senhora aviadora deste plano de balcão:
a mal não leve por escrito a prestação
de minha breve segunda-feira, n’ faça tal não.
Sim? Não?

Anos de mais tenho eu perdido de mais anos.
Passei hoje por a avenida mesma onde, aos 23,
devassei espumas & neves & flocos d’oceanos
que eu sinceramente nem sim nem não nem talvez.

808

    Quarta-feira próxima, revejo, em princípio, a o meu Irmão José Daniel. Não é um acontecimento de interesse mundial. É mais particular – para não dizer privado. Concorre a tal evento a minha Cunhada, que é Mulher dele, assim tem sido & continua. (Quem me dera poder palavrar cada reencontro com ele – assim doente.)
    Ele é – mas não está – o Zé a que fui habituado. Demora muito (ou tudo) aceitar isto. Lido com esta situação à minha maneira. (Nos últimos 34 anos, não tem sido lá muito boa, digo, a minha maneira.)
    Não me lembro de me terdes dado boleia à beira da estrada. Nem de me haverdes atirado água quando ardia. (Nem de V. fazer coisa rimada à beira da noite minha & de meu dia.)

809

Seria bonito algum gráfico que fosse traçado
a nascer das voltas que, moço, dei por a Cidade mesma
que a mocidades descura, quer saber nada, pobre & coitada.
Aonde me dirigi, do autocarro saído qual ciosa cadela:
a que beberete de balcão pedi (& paguei) café-com-leite.

Bonito & inútil – digo (& digo bem).
Tal gráfico retraçaria tão-só um gajito.
Mais-um que quando menos-um, pronto, resto-zero.
Ainda por aí vou (povo-nobreza-&-clero).
Ah pá.

810

Seja como for (e é)
Ainda sou o neto de José,
Pai de meu Pai, nascido em 1880.
Esta pertença ainda me aquenta.

25/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 802



802

Sábado & Domingo,
23 & 24 de Outubro de 2021

    Recantos do estúdio povoados de bens escolhidos a dedo em benefício do palato: vinho, queijo, presunto, fruta. Bem emoldurado, o retrato-duplo: Mãe & Pai na mocidade. Dois móveis-livreiros de portais envidraçados. Ao centro, mesa redonda & semibaixa. Sofá longo em L de couro flavo & promissor de conforto rico. Aí recebe D. Roderico Manuel de Mattas Pena as pessoas que escolhe. São raros, os escolhidos.
    Então, por vontade própria, D. Roderico exila-se por três anos & quatro dias nos Açores (Faial). Toma-lhe conta da casa o casal Moreira, seus vizinhos de toda a vida. Na volta, tendo feito fortuna, D. Roderico faz do estúdio a sede de uma revista mensal dedicada a toda a forma de conhecimento passível de partilha popular.
    Maio é o mês do primeiro número de Plena: D. João Alves Teodoro da Graça assina o artigo de abertura – Traços de Psicopatia Juvenil; D. Tomás José Branquinho de Coura apresenta Folclore no e para o Estado Novo; D. Belarmino Joaquim de Casais Norte, Cerâmica Portuguesa do Século XIX; D. Roderico & D. Manoel Álvaro de Serpins Macia concebem o Editorial de saudação ao Leitor; e D.ª Maria de La Salette Moraes Curto, a rubrica de Efemérides relativas ao mês corrente.
    O número de Setembro foi o primeiro a sair com ilustrações: não fotografias mas desenhos – magníficos – de D. Bernardo Lima Marques de Vilhena. Eu fui convidado para a edição de Novembro. Participei com Bons Anos e Más Horas na África Portuguesa, ensaio que me valeu um cheque de duzentas coroas, generosidade de D. Roderico.
    A Plena era tirada a quinhentos exemplares, subscrevendo assinatura anual 148 leitores. O resto da edição estiolava nas livrarias e nos quiosques, sendo um bom mês aquele que vendesse cinquenta. Nenhuma destas cifras alguma vez abalou o bom D. Roderico: a revista viveu enquanto ele respirou. Tereis talvez alguma curiosidade relativa aos anos de vida da Plena – não V. sei dizer. Sei os meses.
    A publicação saía a cada 15. Ao dia 22 seguinte, vinho, queijo, presunto, fruta & reunião de colaboradores. Era lido de ponta a ponta o número saído, planeado o programa do próximo – e ala à obra. Sabíamo-nos lidos por o público costumeiro destas coisas efémeras: assistentes universitários com veleidades pró-catedráticas; esposas de dentistas torturadas pela apetência lírica; jovens ainda não alienados pela informática; e nós.
    Certo Dezembro, mês do suposto nascimento do Menino Belenense, o número nasceu gordo, alinhando: de D. Ciprides Blanco de Noronha Assis, Grandes e Pequenas Estruturas do Reino Floral; D.ª Alda Maria Coutinho Dunto, Economia Doméstica em Contexto de Guerra; Absolutismos do Inconsciente, por D. Adalberto Leandro Cuco de Torres; Monarquia Difusa e Autocracia Católica, de D. Valenciano Cosme de Trás e Santos; Uma Memória Sevilhana de Finisséculo, da pena de D. Ramón Vargas Sotelo y León; Aritmética, Leitura e Composição, opúsculo de D.ª Estela Mariana Feno do Ó; Quem Era Quem em Lisboa na Era dos Filipes, por D. Aurélio Graciano Portulez e Gaspar; A Destruição da Alta de Coimbra, memória de D. Alcides Maricato Borges de Grenat; Fronteiras Dinâmicas da Reconquista, de D. Telmo Garrett Aquilino de Pinhel; e, de D.ª Ilda Teles Barrigana de Thomar, Cartas Náuticas da Escola de Albuquerque.
    O meu nome de então era D. António José de Lima Catão, o que me valeu a alcunha pouca mimosa de “Tó-Zé Tacão”. Vivia, em regime de contas-à-moda-do-Porto, amigado com uma enfermeira dos HUC chamada D.ª Natércia Maria Cruz da Silva, vulto “Teté”. Ela era de Espinho, se não erro. Separámo-nos por a Teté se ter volvido muito mais azeda do que é de esperar em gajas amigadas. Não só: para o desquite, muito contribuiu o facto de eu não angariar proventos regulares. Ela sim, tinha ordenado certo, baixo mas certinho aos 23 de cada mês. D. Roderico passava-me de quando em vez algumas notas de vinte. Ainda fiz algumas madrugadas carregando fruta no mercado abastecedor (alguma da qual fruta terá ido parar ao estúdio/sede de D. Roderico/Plena). Fui ajudante-de-motorista num armazém de medicamentos. Andei na pintura da construção-civil. Dei explicações de Latim a meninas vesgas que nem para freiras arranjavam admissão. De quinhentas apalavradas, recebi cento & oitenta coroas pela tradução de La Chiesa Nera, de D. Pierluca Ettore di Salvio Bari. Trafiquei irrisoriamente: haxixe, absinto, lubrificantes-auto, farinha, edições-pirata do Livro de S. Cipriano. Esbracejei estacionamentos de carros na Praceta de D. Sebastião (antigo Pátio das Masmorras).
    Não segue num próximo número.



22/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 801

© DA.

801

Quinta-feira,
21 de Outubro de 2021

    Acabamos todos, parece, por implodir.
    Uma vida a expelir lava – e depois implode-se.
    Uma pessoa anda muito – e de repente fode-se.
    Um de-repente-de-vagar é o existir.
    Ligo o televisor, recebo os noticiários nacionais & estrangeiros. O mor de tal festa é repugnante. Espécie de voracidade necrófaga anima os papagaios jornaleiristas. Facadas, caçadeiradas, roubalheiras, clima estiolante, secas, cheias, inundações, picos dos preços da energia, massacres étnico-religiosos aqui-ali-além-acolá, lobby-gay, lobby-afro, lobby-chino, puta-que-os-pariu-a-todos.
    Já nem a indiferença faz grande diferença.
    Cuido francamente da minha ilusória horta.
    Não atendo à campainha que me rasga a porta.
    O que em mim se cala, fala afinal & pensa.
    Na Luz, o Benfica levou quatro-na-pá do omnívoro Bayern München. Tenho canja ao lume, o dia vai fosco (como eu gosto). O CR7 lá resolveu ontem mais uma para o Manchester United, grande craque. Mantém-se todavia certo tédio quanto a futebóis, já não vou muito à bola com a bola, outras são as disciplinas que me interessam. O acto mesmo de enunciação vai & vem pondo-me a salvo de alguma melancolia mais deletéria do que esta corrente que desde quase sempre me, ainda assim, move. Ao máximo que posso, moratamente me morigero. E ando & vou sendo menos, muito menos, deluso. Aufiro honorários não-pecuniários: e de cada tostão finjo milhão. Mas olhai:
    Longes raiados a sol moram à vista
    Miro-os do meu-aqui sem pressa
    Vai havendo vida, é só saber olhá-la
    É individual por enquanto a enunciação
    Negligência nenhuma me impede de aprender
    Cativo sou dessa sêde didáctica
    Um dos perigos é a vanidade pindérica
    Pode ser fatal não compreender a alienação
    Morigerar é fácil, difícil é dar o exemplo
    Perto do meu destino andam monturando lixeiras
    Imponho que comigo para tal não contem
    De resto, tudo bem, expludam os florões
    Rebentem de viço os canteiros amestrados
    Um olor a arvoredo fresco ’inda me acorra
    Viajo pouco por fora, isso é certo
    Mas por dentro o conto é outro
    Ao rosto em carícia a benigna chapada de vento
    Veios de ar fresco comovem-me muito
    Valham-me Santa Anabrigita de Belazul
    & o Fantasma-Pater da minha criação
    Já que a santorros de patas argilosas não venero.
    E tudo isto enquanto o Mundo não retira ao Brasil a soberania amazónica. Sei bem da inutilidade externa da arte dos versos, sei-o muito bem, sei-a muito bem de todo inútil, incapaz de pragmatismo. Mas:
    Contra a roubalheira das gasolineiras
    A pé leio o meu António Osório
    Em boníssima hora deixei de ter carro
    Ando bem a pé, pés me não faltem.
    Certo é também que muitas são as vezes em que escrevo no escuro, palpando um sentido com que me oriente no sentido da luz. Não é prosápia, assim de facto me assiste. Também não há-de ser hoje que eu d-exista, raio de ideia, porra-de-hipótese. Sou de uma pátria tão preciosa quão a V.ª. (É por vezes a mesma, sim, mas nem sempre – o voo mesmo faz variar a ave.)
    Invernia quero entre plátanos
    Marchando ainda, ainda em força
    Todos os vocábulos são bem-vindos a esta casa
    Só me não peçais moralidades que não gasto
    Ingresso no autocarro & sou feliz por Coimbra
    Esta é a última Cidade, já que primeira me foi
    Mais não voltarei a terras sem gente dentro
    Sem gente dentro como os maus livros.
    Desligo o televisor, a paz toma conta de meu tugúrio, está pronta a canja, perfuma já o ar da cozinha lavada. O moço Astor Piazzolla conhece hoje a sua professora Nadia Boulanger. Também hoje, morre na América o meu Irmão Rui. Rotina indefessa dos factos, todos eles, maiores ou pequeninos. Sentimento de persistência, andarilho (mesmo sentado) sentido. Como em cursoras cursivas corredoras vivas linhas – estas, por exemplo. A espaços, alguma frecha (ou frauta) de sol dando de través no zagal munido de sua avena. Paz deliciada de rosas açucaradas à vista do órfão. Plena & persistente despedida ambulatória – aí onde estive & a que não voltarei. Ao dispor, uma arte da espera. Atenção: pouco me socorro de tal arte-&-manha. Sinto preciso não abusar. Para trás (no lixo, não menos nem em sítio outro) as caras fétidas de quem imprestável se revelou. Nenhuma bondade? Nostalgia nenhuma então. Mas nem era disto que pensava falar-Vos. (Também não é certo o que pensava – se o pensava de facto.) Que seria? Talvez aquilo de implodirmos um dia (ou noite). Enquanto não, viver é isto. No meu caso, a demanda é de & por mais luz escrita. Clareza, pouca – não sei mais que isto. Claridade, quanta puder – embora me agradem sobremaneira, também, dias como o de hoje, de cartão prensado a cinza, raro oiro logrando penetrar a campânula nublante.
    Sim, sem rodriguinhos vozear a pessoalidade
    Versos como azulejos afrontando moradias
    Linhas que a pessoa traça por a Cidade
    Ao sabor das noites como ao travo dos dias.
    Ao roseiral das horas roubo quão perfume posso
    Não são de hoje esta demora nem este ofício
    Sangrando, pois ele é de sangrar até o osso
    Imune quanto se possa a vil & senil malefício.
    Sim, por aqui, é por aqui. Algo bom que a idade me vem trazendo: rapidez eficaz no despir aparências. Em nudez, só as essências – digo. Clarões imagéticos me relampejam em incansável recorrência, o que aliás me não canso de agradecer. Desde muito tenro que assisto ao auto-espectáculo do pensamento sensorial. Havendo aprendido a soletrar, centuplicou-se-me a maravilha, de por assim, dizer, poder estar a tão ingente janela de gente.


21/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 800

© James Doyle



800

Quarta-feira,
20 de Outubro de 2021

    Guilherme Libra, de Trouxelas-Sousemil, viaja por Artemunde, Ribacume, Padelar, Garrana, Racharigues, Corvelha, Salvador, Tramadura. É distribuidor de lacticínios, tem 62 anos & uma furgoneta branca de que ressalta a escarlate uma marca de iogurtes. Antigamente, tinha um ajudante a contrato. Já não tem: vão maus os tempos dinheirosos, o negócio já rendeu bem mais do que agora dá a ganho. Solteiro, não sofre por procuração. Vai aos sábados à Associação da vila, joga as cartas, come o chouriço assado com os outros três carteadores, no máximo à uma de domingo volta para casa, deita-se, não pensa de mais. Esteve duas vezes para casar-se – e com a mesma noiva. Não aconteceu assim. Outras coisas calharam na insensível roda de actos & factos que gira & faz girar as vidas. Foi, quando rapazito, do rancho folclórico. Jogou ping-pong pela Associação. Partilhou a condução do táxi com o tio Ibraim até este morrer, não sendo possível ficar-lhe com o alvará. Lacticínios, pois. Se me perguntásseis se há vidas piores, nem V. responderia, tão tácita é a afirmativa.
    Fui um dos jogadores de cartas. Certa noite, na companhia de Guilherme, Agostinho & Virgílio, chegou-nos a má-nova do acidente que vitimou, de uma vez só, dois amigos: Lino Miranda & Armando Dias. Lembro-me magoadamente desse serão aziago. A chuva, fortíssima, viril, enfolava o toldo amarelo da pastelaria. Era Novembro alto, quase Dezembro já. Estamparam-se de encontro a pinheiros tombados na estrada por força daqueles ventos maus. Estive muito tempo sem voltar à Associação – e muito tempo sem rever os parceiros de sueca. Calhou ser hoje a deixar por escrito esta lembrança. Por espécie de brincadeira, tomai lá trinta anos chovidos & enxugados.
    Guilherme Libra segue fazendo a sua ronda de leites, manteigas, iogurtes, queijos, derivados mil. Agostinho Marto está reformado. Virgílio Domingues, também. Eu faço nada. Lino & Armando, nada também.

20/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 799

799

Propaga-se, qual incêndio em dia enxuto,
certa tristura assaz merencória.
Da Natura, o verde em plena glória
desconhece do triste fero & bruto
essa conta que ele, simples, faz vivendo:
o tanto-quanto perde em morrendo.

19/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 798

© DA.



798

Terça-feira,
19 de Outubro de 2021

    Escrevo logo ao despertar – e assim como me (re)encontro, digo, zonzo de sonhos ainda. Adormeci tarde & tarde acordei. Isto contraria-me a vocação de madrugador. Sonhei muito – muito & com estranha excelência imagética. Enredos de estrutura sólida (mentirosa, portanto) enredaram-me em cenas & sequências de intransigente cinema. Nem medo nem angústia, atenção: fiz-me mais espectador do que agente, mais passageiro do que maquinista. Uma rapariga da minha juventude participou da película: um poço de bondade, feiita, de uma dignidade sem fendas (para além, naturalmente, da natural). Disse-me frases graves, benévolas, parecendo saber tudo da minha vida passada. Não ajuizou, não julgou, não condenou – nem me inocentou. Comoveu-me tanta atenção – não estou habituado a outro julgamento que não o das páginas mesmas que redijo como mijando contra o vento. Além dessa moça indefessa, apreciei a movimentação de tropas rumo às raias pátrias. Helicópteros, como melgas descomunais, zurziam o ar em campânula da mente. Estudantes abandonavam as carteiras para aderir aos pelotões. A Torre da Universidade bramava de uma estranha voz eléctrica, alarmada como uma mãe-de-todos. A ti’ Rosário, velhíssima desde que nasceu, mijou-se toda, limpando-se com uma chapa de zinco muito mole. Também me comovi ante ela: há quase 55 anos que a não via. Sempre a julguei imune às minhas sonhadorias – mais as das noites do que as dos dias.
    O resto do que terei ou não sonhado, esvaneceu-se já para sempre. Não mentirei literatura sobre esta solidão afinal comum a ponto de universal. Estou ante a ampla tarde, que um Sol português administra às largas demãos de oiro. Esmaltado a azul-sabão, o firmamento sem nuvens é de uma obstinação de febre. Sim, tudo é formoso & perece – à excepção do factor-humano. Revisito hoje o meu Irmão. De novo se estabelecerá entre nós aquela solenidade inefável chamada parentesco-directo: raiz do sangue, forma das mãos, salmoura do nome. Julgo sabermos ambos o que aí vem: fetal é fatal. Ainda assim, cabe-me ainda assobiar para os lados, frente & retaguarda. Tudo silva melopeias de ilusória distracção. Não difiro, a retalho individual, do grosso da humanidade, que por atacado padece da penúria de viver. Vou-me a ver o meu Irmão lá em um alto de serra cujas escamas de sol palhetado rebrilham à guisa de centelhas de lume marinho, vegetal ondulação de vagas imobilizadas na ingente maré do Tempo. Sim. Levo a viola no saco. Cantar-lhe-ei em semi-surdina as trovas que ele toda a vida cultivou, toda a vida até agora, agora que a doença o manieta atrás de uma porta cuja chave foi deitada fora, longe de mais para a mão humana – ou, no caso, hermana.






18/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 797

© DA.

797

Domingo,
17 de Outubro de 2021

    Resulta precária a assimilação de imagens rebeldes à mansidão. Obstino-me porém em amansá-las, domá-las à força de clarificação sintáctica (chamemos-lhe assim sem mais rebusco). Dois homens conversando num jardim no ano 1976. Partilham amendoins de um cartucho artesanal. Encontraram-se a pedido do mais velho dos dois, director que é de um ateneu literário na Alta da Cidade. O convidado (não muito mais novo) é pouco expansivo. Ainda assim, revela cortesia. A conversação versa os primeiros anos pós-juvenis do autor. Depois, o ponto presente da sua obra. Levantam-se, vão a uma cervejaria próxima, tomam assento, a cerveja favorece a fala. Fora, a luz esmorece em perfeita calma. Céu grisalho, automóveis ancorados, ronda do polícia sem sobressalto, derradeiras aves do entardenoitecer. Decidem jantar ali mesmo, um bife para cada um. A palestra do convidado está marcada para a noite do sábado imediato. Quarenta & cinco anos depois, esse sábado no Ateneu é um futuro-anterior. Assimilo tal imagem através de um discurso pouco propenso a barrocas complicações. Abro a janela alta, a noite dos comedores de bifes há muito foi presa da autofagia do Tempo. Não forjei o encontro daqueles homens vivos em 1976. O encontro & a palestra aconteceram. Precariamente (bem sei, bem sei) os retomo em prosa. Não me é possível fazer mais. Fora, o vento é de mediana pujança. Ontem, trovejou, águas sapadoras revolveram campos & vistas. Facto: ontem é já tão remoto quão aquele 1976 de que falámos a propósito de (in)certo par de cavalheiros. Pode ser que aurora nova refresque ainda algum relato pretensamente assimilador de imagens afinal improváveis. Como ali aos Restauradores (Lx.), a pensão antiga, o odor a vidas desavindas de & para consigo mesmas. Década de 90/XX, não menos nem mais. Um dos hóspedes vinha da Beira (não sei se Litoral, se Baixa, se Alta). Picava-o o desespero financeiro. Tivera um bom emprego. Perdera-o. Penso (sei) que por uma questão de cocaína: tráfico para autoconsumo. Inverno agressivo na Capital. Mau sítio para ser-se pobre. Exactos sessenta anos passaram da morte do Poeta (em) Pessoa. Ambulação manca por uma Lisboa sem retorno. O magno Tejo persiste em suicidar-se no mar. Estranha obstinação. O cavalheiro beirão decide não jantar. Vai, a pé sempre, até Santos. Alcântara. Ninguém saberá mais dele. E no entanto ele nasceu.

17/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 796

© Lewis Hine


796

Sábado,
16 de Outubro de 2021

    Não tenho, por estes dias mais recentes, sido hóspede da visitação de versos de qualquer índole: bons ou medíocres, formosos ou coxos. Os dias mesmos também não têm ajudado: cá pela parvónia-pátria, só se fala do Orçamento Geral do Estado; pelas estranjas, alienados de rapina matam pessoas: na Noruega, cinco foram vítimas fatais de um tarado com arco & flecha; na Inglaterra, um deputado morreu das facadas que lhe infligiu um cabrão qualquer. (Os países, tal como os homens, nunca estão livres do coice da besta.) Que mais? Quase nada. Na quarta-feira, 13, fui a uma consulta médica, no decurso da que fui avaliado. Parece que o meu estado global não padece de morte-à-vista. Quando muito, anda-se-me avariando um divertículo no ventre já abacial. Pratico uma medicação certinha de que não constam nem o arsénico nem o trigo-roxo. O meu Benfica está na Trofa a jogar para a terceira ronda a eliminar da Taça de Portugal. Nenhum fervor épico desassossega a minha comarca existencial, enfim. Enfim todavia, sempre V. posso aportar uma citação capaz. Caço-a a páginas 151 daquele livro de Rosamond Lehmann antes referido, The Ballad and the Source:

    “But poetry is not to be lived, except for the few to whom it is more important than self-preservation.”

    Em certo sentido, há muitos anos que iludo a auto-preservação com a mania de pertencer aos tais few. Não estou a engrolar-Vos nem a pataniscar-Vos com esta oblíqua confissão. É verdade que o mor de minhas décadas adultas (quatro) tem sido oferecido à visitação indicada nas primeiras linhas desta entrada. Nem por isso me vereis torcendo orelha que pingue sangue. O que dela fazemos, desfazemos & refazemos – é a vida nossa. Na tal consulta clínica de quarta-13, não me queixei à doutora de escassez lírica nem de sangria prosódica. Quanto a tal, calei-me. Indiquei, isso sim, dores no braço da mão que escreve. Desconfiamos, ela & eu, de uma tendinite ferrugenta. Do coração físico, disse-me ela que o estado valvular “corresponde, senhor Daniel, ao normal em pessoas da sua idade”. Ela a dizer-me isto, e eu a voltar-me para trás a verificar se era com o meu Pai que ela falava. Não era. Pertenço, pois, a certo escalão (não digo escol) etário cuja normalidade passa por válvulas desgastadas. Continuo porém a, entre válvulas & versos, preferir estes.
    Não caço, coço ou acosso grandezas de empréstimo. Basta-me assaz a miudeza própria. A senhora Lehmann, de viçosa & percuciente notação psicológica, tem-me melhorado a dieta ledora. Vou a dois-terços da narrativa, que por um euro adquiri em um antiquário a 19 de Março pretérito.
    O meu Glorioso precisou de prolongamento para desfeitear (1-2) o ardoroso Trofense. Nada de suficientemente grave para mérito de inscrição lapidar. Fui entrevendo o jogo – mas só isso, pois que já raramente vejo uma partida do princípio ao fim. O futebol já me não diz grande coisa. É um bocado como o tomate-de-estufa: o que mantém de côr, perde em sabor.
    Há pouco, ideias à solta, lembrei-me da leitura que fiz, há mais de trinta anos ambas, de dois calhamaços: um, Os Nus e os Mortos, de Norman Mailer; outro, Bosque Proibido, de Mircea Eliade. Conservo certos segmentos em vivo éter: de um como de outro. É um pouco como recordar pessoas – nuas ou mortas, por assim dizer:
    o vizinho de Hélène & Pierre Rosso no campismo do Esperança de Lagos; a viúva da taberna de beira-EN1; o homem das nozes ao pé de cedros; o convertido ao fundamentalismo evangélico do Gato Preto; a Noémia de Portimão; aquela rapariga a quem disse que o-paulo-coelho-é-trampa-e-a-isabel-allende-não-lhe-fica-a-dever-muito.
    Estas entre tantas outras, tantas mas nunca demasiadas pessoas. Pensa-se nelas, não se sabe se se é pensado por elas. O mais certo é que não. Carece-se de importância. Cada umbigo tende à autocracia. É a tal self-preservation de miss Lehmann. Nada de mal nem de anormal nisto. A Poesia é muito bonita para quem a confunda com um capricho, um hobby – ou, pior ainda, com uma sensibilidade generosamente defecadora de chavões. Sim, a Poesia é para viver, não para ganhar a vida. Ganhar a vida é tão meritório quão poetar – divergem apenas de conduta, não do estatuto de necessidade. Digo eu – mas admito contraditório.
    A noite manda a recolhimento a ave.
    Acorda os padeiros, que ao luar panificam.
    Todos passam, nenhuns são os que ficam
    – mas isso já toda a gente sabe.



12/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 795

© DA.


795

Segunda-feira,
11 de Outubro de 2021

    Saí à outonalidade possível & disponível do dia. Coimbra lá estava, como cá está. Apreciei a nossa, obstinada embora quebradiça, condição: a humana. Resolvi o papel que tinha a resolver. Desta feita, não me dei ao luxo triste de perder tempo – resolvi o papel, desci a Sá da Bandeira, encontrei abrigo-receptáculo para este relato.
    Antes de sair de casa, telefonou-me o bom João S.P. Há q’anos nos não falávamos, c’um caraças! Gostei de atender-lhe a ligação, as velhas novidades de nossas não novas idades. Só depois, sem almoçar nem apetite para tal, me dei saída.
    Banha-me sempre de lustral idiotia amável a re-visão de cada rua. Esta Cidade, a que pertenço, pertence-me. Esquinas & pessoas idas mesclam-se-me em uma harmonia só para mim pautável: a clave é pessoal e, a não ser talvez por a minha remendada literatura esta, indecifrável. Escrevo ora um pouco antes de tornar a casa.
    Entre o Mercado & os contrafortes da antiga Biblioteca Municipal, ocorreu-me em virtualidade um livro (a chamar-se) – A Cidade Engraçada. Epígrafe dele: Antes cair em graça que ser engraçado. (Da sabença popular). Pode ser que ainda o escreva. Tipo manual (ilustrado) de textos revisitadores. Muitas linhas hei já escritas que a tais viso & formato apontam. Não é ideia a desconsiderar.
    De resto, cumpro a hora decorrente. Não reverei além o Zé Peres. Não passará por ali o Alvarito Santos. Não voltará a casa o Chico Morais. Nem outros nomes continuarão usando pessoas para serem. Laura. Cláudia. Maria da Conceição. José António. Rui Foz. Vítor Rodrigues. Tantos cartões que a mecanografia não precisa já de conferir. Esta sabença amargura-me recorrentemente. Vale-me a epifania seguinte: na Rua da Moeda, livre & magro como a andorinha, passa um rapaz quarentão cujo capacete de cabelo assombra até o mais hirsuto. Nem um fio branco lhe empoeira de giz a grenha. Poderia, mas não usa, fortíssimo bigode & indevassável barba. Levava pasta preta de aviador notarial. Talvez represente alguma firma (como antigamente se dizia dos caixeiros-arthur-miller-viajantes: que representavam). Não sei. Sei pouco de muitas coisas.
    Esta é a minha lentidão improvável.
    Equivale à V.ª por grosso, não a retalho.
    Conhaque é conhaque, trabalho é trabalho.
    Sou um por estas ruas de idiota amável.
    Sirvo-me de elucubrações retrospectivas.
    Em vivo sendo, anoto usos & hábitos.
    Machucam-me novas que trazem óbitos.
    Prefiro das mortes tirar linhas vivas.
    Queima-me a boca figurada a pimenta morta.
    Sou o senhor que nem sempre erra ou acerta.
    A tua vida, querida? Não serei eu a consumir-ta.
    Muitos ou poucos anos, sabe sempre a curta.
    Casal de portugueses ’queninos acolá passa.
    Antes que engraçado o sair-se em graça.
    O soneto aqui entalado/encalacrado reflecte, penso eu, certa propensão minha a dar por cifra o que em linguagem-corrente pouco/nada/zero importa. Supra, escrevi: Esta sabença amargura-me recorrentemente. Verdade. Não minto. Sabeis? Sou, tal V., alguém que refere & referencia. E se refere & se referencia. (Cf. supra: Esquinas & pessoas idas mesclam-se-me (…).) Um dia, bifes encebolados. Outro, cerveja morna. No entrementes, viajante sentado. Barco que devagar adorna. Por assim dizer, digo. Digo ainda: nada vai impedir a Maré-Amarela. É o antepenúltimo estertor do humano-planetário. O lixo há-de varrer tudo. Não se trata do meu apocalipse individual (que é vero) – mas sim da esterqueira-a-mais, poluta-presença-a-mais. E com os Chineses à frente. Os ex-Soviéticos caem de bêbados; USAmericanos, de burros. Sobram a China & Portugal, que é todo Algarve para Ingleses Pretos. Mas esperai, por favor:
    Não sou imune à propaganda estadonovista.
    Ainda comigo as Capelas Imperfeitas, sim, hão valor.
    O Taí era o careca do Boavista.
    E a ninguém me propende gás-de-rir-amor.
    Fundação-Nacional-para-a-Alegria-no-Trabalho.
    (E inatel agora democraticamente.)
    (Equivale, por grosso, à V.ª alegria, não a retalho.)
    Estes versos são de gente para nenhuma-gente.
    (Verdade. Esta última linha, a da nenhuma-gente, é verdadeira a sério pa’ valer.)
    Outras linhas/lenhas arder podem ainda:
    Sobram a China & Portugal,
    em cima descrevi – e é certo.
    O Império a seguir está mal:
    & o antecedente não era alberto.
    Morro antes da tomada de Taiwan?
    Pela China. E da da Europa.
    Pela China. E da da América.
    Que já era. Pela chacina-china.
    Aquilo nem comunismo é. Aquilo é gorilismo. Aquilo é formiguismo. Aquilo é a vespasiática em seu supino fulgor. Aquilo é o que o manual sobre Coimbra Engraçada nada diz. Eu vou aos chineses comprar palmilhas ao desbarato. Falta minha: sei mais de escritores japoneses do que de idem chineses. Talvez porque: haja mais, de valor, quem seja nipo do que chino. Não sei. O Mao mandou matar pardais. O Hirohito não fez seppuku. Não sei. Sei que é felizmente longe. (Mas só por enquanto, receio bem.)


 

10/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 794

© Andrew Wyeth


794

Domingo,
10 de Outubro de 2021

    No ano do nascimento de J.D. (1948), Andrew Wyeth pintou a tela Christina’s World. O primeiro destes acontecimentos data do Outubro de então. Não sei o(s) mês(es) do segundo. Sei que também por ora se faz & desfaz Outubro. O Sol radia largamente num mundo que não é já o de Christina, não este pelo menos. No quarto da livralhada, a máquina toca as Goldberg-Variationen de Bach. O cenário é tranquilo. Chama-se Domingo. Para amanhã, tenho agendada uma surtida à Sá da Bandeira. O Gatito fica umas horitas sozinho. De momento, todavia, o belo bicharoco vai tosquenejando à contraluz dos cortinados amarelos, muito gosta ele de ali marrucar. Também eu gosto muito de, à tarde, me deixar canear sem futuro, certas vezes em que o sono da noite foi mais esfarrapado. As pálpebras põem-se pingando mel (ou remela, vá). A lassidão põe-se alontrando o corpanzil. O que era vigília, passa a lanterna-mágica. Vivos & mortos irmanam-se, deixam de ser, uns água, azeite outros. Some-se a tridimensionalidade. Espaço & Tempo volvem-se poças de éter sem zénite nem nadir nem antes nem depois. As figuras sonhadas são da mesma imaterialidade das ilustrações do jornal que a rapariga de Renoir lê em 1880. Põe-se o irreal a nevar. Não é fenómeno factício, pois que nasce do desejo. O Sol é aqui de outra índole. Sempre meã, a noite não pergunta hora. É engraçado dizer estas coisas sem ser em verso mensurado. São íntimas & universais ao mesmo tempo. Têm milénios & tempo-algum. Não são coisa de que por aí se dê nova. Como nascer em pessoa (J.D.) ou em tela (Christina).

07/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 786 A 793

© DA.

786

Terça-feira,
5 de Outubro de 2021

Os ex-vivos que criaram livros persistem em ter voz.
E têm-na, rediviva, por mercê da atenção ledora.
Como no princípio, sigo sofrendo tal fascínio.
A só aparente mansidão de tal vozearia paginada.
A inteligência das mais profundas impressões.
O convívio finalmente verosímil de deuses com mendigos.
Em a praça, o escultor continuado pela estátua.
E mais: o estado-da-nação-pessoal quando lemos/vemos.
Quem tu eras quando te deste a Ray Bradbury.
E depois, em outro tempo, de outra idade a releitura.
O sublinhado juvenil apreciado mordazmente, ora que velho.
Em ajuda, da janela manando a luz mais propícia.
Do café matinal ao chá vesperal, em articulada pose.
Solidão com proveito, auto-suficiência harmonizada.
Prado Coelho (o Jacinto, não o gordo) sobre o(s) Pessoa(s).
Então, a lembrança do lido torna feriado o pretérito.
Todo o pretérito, ele todo dia-santo, de féria paga.
Sim, Ian Watson & Henry James na ala franca.
Aqui há/é lugar para edificação de alguma coisa.
Não uso pressa nem posso demora maior.
Ainda ontem li, sem ser livros, preto-no-branco.
Amanhã não sei que linhas são as possíveis.
Sei que tenho hora-marcada (11h00m).
Depois ou antes dessa página, já disse – não sei.
Não se lê tanto para saber como para ser.
Acaba-se s(ab)endo alguma coisa.
Quando se sabe alguma coisa, acaba-se.
É um jogo: partida em sentido duplo.
O rapaz Truman Capote, a senhora Mercè Rodoreda.
Segura-se o Tempo com as costas? Não se segura.
Posso tanto pensar na minha Avó como em Virginia W.
Para o efeito, dá precisamente o mesmo – com variações.
Ainda ontem, de carro, pelas ruas-prédios.
Contemplação de livro aberto, amplo, violável, sabeis?
Sem dor ou pudor, sem mal nem remédio.
Um por-aí-andar-em-concerto-ou-não, tanto dá.
A paz desempregada dos subúrbios, onde o Sol bate a sós.
Onde o Sol bate a sós como um Solteiro, juvenil ou não.

787

Quarta-feira,
6 de Outubro de 2021

Doçura que não
Enganosa é
Tira o pé do chão
E o chão ao pé

São certas palavras
Glabras elas são
Nesse chão que lavras
Tira o pé do chão

Formosa gaiata
Exacta & rosa
É maravilhosa
Maravilha exacta

Se é minha Filha?
Como houvera não?
Um homem é ilha
Todo mar sem chão.

788

Voltei a levantar-me muito cedo.
É bom, parece-se com nascer de novo.
Nascer de novo mas, olhai, nascer
sem ser para o futuro – ou coiso.
À primeira chávena de café,
desestremunhada a frio a cara,
assumi não perdido o ser.
A minha senhora Mãe, ah, ela
gostava de assim matinas boas.
Mais do que mera rima, sim,
lida & vida sinonímia lh’eram.
Era vê-la retomando comando
das cousas-não-ciprestes,
das cousas-não-obituárias,
das vivas cousas da vida,
da lídima lida linda
ainda
ainda.
Voltei a (etc.)

789

Em resposta ao solicitado por V.ª Benemerência:

Não troco de cuecas por quem seja
Faltista a horizontes modernistas.
Comigo, ó evangélicos-baptistas,
Baptismo só se for de grã cerveja.

Não dou de caras o que for mais triste,
Q’existe para além, mais comezinha,
Muita vida assim, q’já mal existe
Mas persiste em chamar-se tua & minha.

Não troco de meias com testemunhas.
(De Jeová bem menos, já se sabe.)
Não hei esterco nos dedos nem nas unhas,
Em mim é descabido até quem cabe.

Filha, ó tu não me namores com esse,
Qu’ele é zapatista & libertário.
Bossa nova é de bebé-dromedário,
E eu não me fio nem confio nesse.

790

A vaidade é uma igreja como qualquer outra:
reza sozinha a um deus sozinho, carestia de velas.
Humilde, só como bife da alcatra:
e ’stou-me nas tintas d’elas-por-elas.

Não cuidamos de grande gente ao lado,
q’anónima persiste em seu fado.
Perdemos pobre-tempo-pobre-gente
insciente-do-chover-no-molhado.

Direi ou darei tão pobres falas
que tu não ouves nem dizes nem calas?
A Arcília já me foi – e já me não volta:
tempo é de meu cavalo andar à solta.

O meu extracto bancário, pobrezinho,
foi gasto não em gajas mas em vinho.
Outros investiriam no futuro,
que usa ser incerto & de pão-duro.

Sou mais rodrigues-lobo quando calha.
mais francisco-man’el-de-melo também:
calha ter versos feitos memória-Mãe,
terra de quem na cultiva & trabalha.

791

Morrer na prisão
Por delito de opinião
Não me parece
Modo de vida
Ao menos desejável
Isto para dizê-lo
De um modo, hum,
Coiso tipo amável.

792

As solenidades tribunalícias
São de esfera que eu-enfim-realmente
Não considero ser caso de maus-polícias
Nem de sevícias da coiso-aguardente..

793

(Ensaio de Oratório:)

Alerta a quem de palha infinda
A burro não falta (a)celerado
Alerta a quem a Virgem ainda
Não, Deus, deu por miraculado.



05/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 785

© DA.

785

Segunda-feira,
4 de Outubro de 2021

    As leituras que faço, faço-as no sentimento, perdão, no sentido que me parece mais acertado por mais proveitoso: o da fruição estética. Este hedonismo, note-se bem, não obsta ao aproveitamento (auto)didáctico, antes o favorece. Quando de leitor passo a redactor, hei a esperança subliminar de ter sido contagiado pela Beleza que, alheia, farejei de minhas ventas mesmas.
    Hoje, que nada li, continuei mesmo assim em tal senda. Fazia (e fez) anos um Irmão, comi em sua companhia uma fatia de bolo escoltada por dois copos de laranjada, dei de comer a gatos sem dono que rondam a residência desse mesmo Irmão, não fui inútil tanto, portanto, quanto costumo ser – ao menos través certo ângulo socioeconómico próprio dos mais morfanhos morigeradores da, morata ou não, vida alheia. Mas com tais tenho eu podido bem.
    E (o) poder é coisa linda.
    E mandá-los poder, mais ainda.



04/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 784

 

©  W. Eugene Smith



784

Domingo,
3 de Outubro de 2021

    Efeméride instantânea, cada momento vital debate-se entre adversas forças/tendências: obliteração & persistência, olvido & inscrição (ou, esta última, gravação). A vida é simultaneamente Alberta & fechada. Como Ângelo Valido Galante Bizarro, como Ricardo Colina Canha Muñoz – como estes dois, também eu faço & pugno & me descalabro & me reergo. E como eu e como eles ambos, assim toda a gente enquanto a morte não sela arcas & cartas. Joga-se (toda a gente joga) a perfeita inutilidade, a rotunda irrelevância – mas também certa aposta obstinada, certa demora pragmática. É pois da maior naturalidade a continuidade, aliás relampejante, das duas – e não uma só – eternidades: a do Pretérito, que convém vasculhar no intuito de lhe surripiar as pérolas, & a do Porvir, a qual, incluindo a morte física, muda de jogadores mas não de jogo. Digamo-lo porém de diverso, em verso, modo:
    De álamos, alamedas em conspiração sombria
    enriquecem o lavor luminoso, diamantes por entre folhas.
    Odorífera, carregada de doçura (de doçura & de fruta),
    a pessoa-ainda-infante já joga, saiba-o ou não bem.
    Constrangimento social não tem aqui tempo nem lugar.
    É o rapazito Ângelo? O menino Ricardo? Um que eu fui?
    A alameda existe – como o ardil de diamantes farolins.
    Não se trata de matar mas de deixar morrer.
    Trata-se de deixar ir, de ficar sozinho no cais.
    Quando o ex-infante se vê adolescente, então tem o mundo na barriga antes de ter estômago para ele.

03/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 783 (começa Outubro)


783

Sábado,
2 de Outubro de 2021

    Morreu o Chico Morais, que nunca foi particularmente feliz na vida. Por recente, é ainda sombra. Breve, nem tal.

01/10/2021

PARNADA IDEMUNO - 782 (fragmento)

© DA.



782

Quarta-feira,
29 de Setembro de 2021

    Quem do exterior (ou seja: toda a gente mais alguma) me observar a lentidão de gestos & manobras, bem, erra (um bocadito) se concluir tratar-se de alguém filosoficamente dado à ponderação. Posso garantir a tais mirones ser nada disso. Trata-se, antes, de envelhecimento, impuro & simples escaqueiramento ósseo-muscular, muita fibra esguichada a ácido-láctico, ponderação é que não, nicles & nada. Ou quase nada.
    Ponderei isto agora que, na tarde maravilhosa & coimbrã, descanso penates em rua propícia. Frio nenhum – mas também nenhuma caloraça abafadiça. A luz é a mor aguarela de si mesma. Ajuda à missa a benfazeja brisa, que perfuma de pele de rio o acto respiratório.
    Trouxe-me às ruas uma previdência afinal malograda – mas amanhã é dia também, acaba-se Setembro mas, julgo, não ’inda a vida. O meu lento lápis aflora espécie contente de levíssima amargura. São (por ora) as 17h25m – e até aqui dei o dia a circum-navegações retrospectivantes de percurso. Meu, naturalmente. Não é brilhante a retrospectivação – ou dela os resultados parciais. Mas todavia porém & no entanto: sempre disponho da Língua Portuguesa, salvação maior – se não única – do dito percurso & do subentendido percorrente.
    Certa funda fadiga íntima não é desmentível. Verdade. Não é desmentível. É tão humana quão recorrente. Trata-se, a meu ver, daquela pessoa “saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”. Universal saciedade. E eu, havendo começado este texto por certa ilusória aparência de ponderação, não deixo, ainda assim, de ponderar o meu bocadito. É aliás menos solipsista que de costume, o de hoje alinhavar. Razão disto: é deveras bela a jornada. Às 18h01m, não dá sinal de falência o grande ouro da luz coimbrã. Frente à Rodoviária, até a pobre gente transitária & transitória parece assimilar a ínclita egrégia grandeza da hora afinal anónima.
    Afinal anónima qual qualquer mortal que se preze. Tenho logrado algum saber no que a anonimato concerne. A anonimato & a frivolidade de aparência(s). Uma pessoa aprende – queira-o ou não, almeje-o ou não, valide-o ou não. “(…) a interrogação define a nossa livre condição (…)” – escreveu-o afinal (inicial) Ruy Belo em Transporte no Tempo, livro ocluso, por assim dizer, nos escaninhos não-escarninhos dos iniciados nisto de vencer perdendo sempre como antigamente o Sporting Clube de Portugal & ainda hoje o Partido Comunista Português.
    Um tempo de pessoa-individual vale bibliotecas ilegíveis. Manipular adentro alguns recuerdos, sim, subsidia alices, países & maravilhas. Já Sófocles, esse é outro berbicacho. Releio em ácido-láctica lentidão. Aquilo é poesia-de-situação: como o xadrez urdindo epos. (É pois!)
    Mas esperai:
    (...)

Canzoada Assaltante