16/06/2005

Dentífrico

Acordou sem ela. Os lençóis, enrugados ainda da precipitação do amor, não o ajudaram a esquecê-la. Esteve minutos sem relógio a olhar a fímbria de cinza dos estores. Janela de hotel, quarto de hotel, amor de hotel. O ar condicionado pela própria respiração. Sacudiu as rugas, bocejou sem ânsia e descobriu-se para o tecto apagado. Ao levantar-se, pisou uma coisa mole: uma embalagem de dentífrico. Ela tinha deixado, como rasto higiénico, uma pasta de dentes. Pegou no dentífrico e ficou a olhar para ele como se olha para uma recordação insensata. Tomou um duche muito quente, removendo da pele a mistura do amor. Descobriu no espelho o que não queria: ele mesmo, outra vez e sempre. Abriu o mini-bar e bebeu uma água murcha. Fumou sem pensar. Na parede, uma litografia de Miró coloria a hora, não se sabe porquê.
Vestiu-se, pegou na mala e desceu de elevador para o sorriso profissional da recepcionista. Pagou e andou, desejando bons dias. Para ela e para ele. Da que lhe tomara a noite, nem rasto na rua. À esquerda, a estação de comboios ardia de frio. À direita, a pastelaria ardia de açúcar. Entrou e pediu chá. A luz aderia às paredes como goma, como saliva. Sentiu a vertigem de sentir tanto. O chá tinha arrefecido. Pagou e andou.
No jardim da cidade, mirou o busto de um defunto tão ilustre como de bronze. Alguns vivos tornam-se bronze na morte, mesmo que tenham vivido vidas de lata. Pombas latejavam de chumbo, cabeceando de sono, arrulhadoras de pão. Esteve a olhar as pombas, verificando o colo dela na quilha do peito delas. Teve falta dela.
Foi a casa mudar de camisa. No lavatório, quis lavar os dentes, coisa que não fez porque se esquecera de trazer consigo o dentífrico, último rasto dela.


Dito e (des)Feito, Pombal, 24 de Setembro de 2004

Sem comentários:

Canzoada Assaltante