28/01/2012

Rosário Breve nº 243 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 26 de Janeiro de 2012

 O outro lado de Aníbal & Maria na mercearia

A minha mulher e eu estamos ambos desempregados excepto ela, felizmente. Cada primeiro sábado seguinte a ela receber, lá vamos nós à mercearia arregimentar víveres para as quatro semanas porvenientes. Chamamos a esse dia Sábado da Marca-Branca. Tal como o casal Aníbal & Maria, somos muitos poupados.
Compramos daquela margarina que sabe a manteiga. Cubos daquele caldo concentrado que sabe a galinha. Salsichas daquelas que sabem a lata de salsichas. Pão daquele que sabe a plástico de pão. Vinho daquele de cozinha que sabe a saudades de uva. Sangacho de atum daquele negro como a selecção de futebol da França. Toucinho salgado que sabe a porão de caravela rumo à Índia. Delícias-do-mar daquelas que sabem a chiclete de lagosta. Rabos e badanas de bacalhau que dão aquele gosto norueguês à açorda de pão com coentros. Tomate do espanhol que sabe a escravatura de beirões analfabetos na Andaluzia. Pasta de vísceras de salmão de aviário para a gata que a gente às vezes faz de conta que é pâté de canard au porto e prova em pão de plástico e vai-se a ver e até nem é mau, conforme o quanto vinho de cozinha que nessa mesma noite encetamos em aura & aparato de champanhe francófono da Anadia. Dois rissóis de leitão daqueles congelados que nos recordam os dourados dias do nosso primeiro acasalamento, que ocorreu por ocasião de eu andar a trabalhar ao negro como pintor de uma engorda de bacorinhos para os estaminés da especialidade da Mealhada. Uma onça daquele tabaco de enrolar que sabe a hálito de prostituta de berma-estrada. Quatro laranjas daquelas ferrugentas como cuecas de pessoa incontinente. E um lingote de sabão azul-e-branco, que tanto dá para a louça como para fazer as vezes do champô, como muito bem e por igual sabe o casal Aníbal & Maria.
Chegados a casa, e por ser ela quem pagou, ele leva os sacos. São três andares. O elevador está avariado e ninguém se entende no condomínio, o que é pena e é penoso, já que somos sub-inquilinos de um inquilino de um condómino que foi para França e se calhar não volta, a avaliar até pelo preço do sangacho.
Por me ter portado tão bem, a minha mulher cede-me as moedas do troco, o que me permite ir logo para a tasca da Rosa amandar-me um copinho de bagaço que me sabe ao gin daquela Londres que Leiria nunca foi nem há-de ser. Lambo a bisca com o Proença, o Sampaio e o qualquer coisa Soares das Cortes para depois (que remédio!) ela me chamar Aníbal e eu lhe chamar Maria. Coisas de casa. Coisas de casal.
E somos estranhamente felizes assim, meus caros Portugueses de mercearia.    

23/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 11, 12 e 13 (integrais)



11. A MAIOR CARESTIA

Louriçal, quarta-feira, 3 de Agosto de 2011

A maior carestia é a vida.
A morte é de borla – não é graciosa, mas é de borla.
Uma dedada branca sobre azul-azulejo: nuvem no céu – traça-a a carvão uma silhueta de ave.

12. PELO CORPO NATURAL

Leiria, quinta-feira, 3 de Agosto de 2011

Sou pelo corpo natural do Mundo.
Alinho os rios, versejo as aves & as árvores.
Reconheço à chuva os seus direitos naturais invernosos, mesmo em pleno Estio, como este ano já tanto aconteceu.

13. X DO ARÍETE

Leiria, segunda-feira, 8 de Agosto de 2011

I

Aves muito puras confirmam a muito pura manhã do mundo. São de uma negrura que reitera o grande branco da luz. O meu compromisso é para com elas, aqui em baixo, onde renasço para morrer. Este tem sido um ano de peripécias ornitológicas: sim, também eu voo e sou negro eu também à face branca do azul, entre verdes. Azulejo-me, é o que é. Iço-me cedo do tálamo, vou ao terraço fumar em contemplação de terceiro-andar (eu alto, portanto, e portanto eu ave) das em baixo humanas formigas madrugadoras que dos arrabaldes rumam ao pequeno-comércio do centro da Cidade. Toco faces recordadas, rosto-evocações. Fumo os meus mortos. Muitas vezes os bebo também: tomai-me, este é o vosso Corpo. Mortos muito puros etc.

II

Não mais não querer quem quero,
que do desejo a morte à pessoa mata.
Eu era um lince na Malcata:
ora domesticado gato sou: e pouco fero.

III

Agora que nos não tocamos já na orla litoral, podemos agora falar mudamente na pressa lenta do envelhecer.
Repara: há um quarto de século nos conhecemos.
O que aí vem, virá terminalmente.
Cada um por si, frequentaremos estações de serviço onde servem bifanas temperadas a gasóleo, casamentos de encosto resignado eriçados nunca de rosas nossas, cada um(a)
por si,
sem mim,
por ti.

IV

Aríete não bélico cravo
à porta levadiça do teu baixo-corpo lento.
E de mim saindo por ti me adentro.

V

Deveríamos já talvez termos voltado a ser nós
num filho de nós feito em mútua voz.

VI

Pelas margens dos rios-páginas
venho-te sendo o guarda-rios.
Quanto te amo & quero, tu imaginas:
nas mornas noites, nos dias frios.

Parece que somos agora florestalmente,
nem crer quero quão tempo perdido
foi por nós, nós, que somos gente
de margem-rio: passaramente.

VII

(Preciosa lentidão uso na alba das mãos,
que do gelo conhecem a pétrea fotografia.
Encharco-me, eu sei, mui mais que deveria.
Mas amo as filhas e os irmãos.)

VIII

Pode um país de parolos ser amado
pela boca, onde a Língua?

Pode.

IX

Nunca quis ser contemporâneo do meu próprio corpo. Habito outras esferas. A minha verdade é feita de solecismos todos mentais: perfume de flores secas, fímbrias litorais (e literais) que azulam espumas e coruscantes dorsos golfínhicos, a trança da Avó embrulhada em papel-de-seda numa gaveta morta de fenecido psyché, amêndoa de enrijecido açúcar em ida Páscoa não crida – e outras coisas que tais da ’inda contemporânea vida.

X

Tenho acumulado palavreados, falatórios não.
Sou mais pela natureza-viva dos azulejos.
Ensino-me técnicas de restituição, falatórios não.
Táctil, preênsil, dúctil, dócil até, penso e calo.
Falatórios,
não. 

22/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 10 (integral)

10. 12 por 7: UM SONETO

Leiria, noite de quarta-feira, 27 de Julho de 2011

Quando ao porvir anteponho as passadas vidas
que vivi já e já passei,
nem sei que diga, eu nem sei
quão negras são as rosas rubras fenecidas.

Do ido, olvido não faço, que o não quero:
esquecer, é ser-s’apenas quem
de pai não veio nem de mãe.
E eu vim e vou. Eu vim e vou. Por isso, espero

do amanhã coisa qualquer que a vida tenha
e manter queira no viver.
E seja o que tiver de ser:

que indo estou, vindo que sou, como hei-d’ir.
Tal tudo vem, tal tudo vai: tal mãe, tal pai.
         Se vou? Se vim? Rosa. Jardim.

LIGAÇÃO À MEDUSA - 9 (integral)




9. EVOLUIR DO MARCADOR

Leiria, tarde e noite de terça-feira, 26 de Julho de 2011

Pode aprender-se alguma coisa do Universo, mas é duvidoso que se possa apreender o que quer que seja. Estou a pensar nisto sentado à sombra, numa tarde leiriense de razoável esplendor e não despiciendos ventos. Perto, três + um homens existem sem pressa – como eu faço, ou qual a mim por igual acontece. O solitário bebeu uma mini e pasma sem angústia ante a pantalha (ou espantalha) televisiva. Os três da outra mesa conversam amenamente, cervejeiros eles também. Isto é a Passagem. Tudo a consubstancia: o descer do líquido nas garrafas, o bocejar aritmeticamente contável da patroa ao balcão, o evoluir do marcador no jogo que está a dar.

*

Leio livros povoados de palavras decididas por gente hoje morta. É uma espécie de magia simples. Fora desta sala, a noite de Verão elanguesce, frígida quase. Uma senhora chamada Violante envolve distraída o dedo indicador da mão esquerda no cordel que fecha a caixa de pastéis que comprou há pouco numa confeitaria triste. Os senhores Rume, Armas, Torgal, Aura, Bútua, Acenheiro, Lopo e Columbo disputam uma pool a um euro por partida. Uma loura, alta como uma meda  de palha, bebe aos golinhos mendinhos o seu gin-tónico. A vida passa. 

21/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 8 (integral)




8. SIGNOS E INDÍCIOS

Pombal, segunda-feira, 25 de Julho de 2011

Não é um dia obscuro, não direi isso. A luminosidade anil está comprometida por incêndios mais ou menos distantes, só isso. O azul não é puro, não é puro o branco. As letras de “azul” também escrevem “a luz”. Hoje, não tanto. Suporto o calor (que é grave e, por assim dizer, provém de baixo-través) com uma resignação datada: estamos, afinal, no vigésimo-quinto dia do mês sétimo. Para entreter esta espécie de mansa volúpia (vinho tinto no Ilídio da Cardigo, lados sombrios das ruas), leio os signos e os índices do pequeno-comércio:

MANTENHA-SE ESTE LOCAL LIMPO
EXECUTA-SE PEQUENOS TRABALHOS DE
CANALIZAÇÃO
ELECTRICIDADE
PEDREIRO
ARRANJOS DE COSTURA
ARTES FUNERÁRIAS.

LIGAÇÃO À MEDUSA - 7 (fragmento)



A mulher trabalhadora compreende o alastrar dos prédios por vender.
Ela pensa o lugar das coisas que as mãos movem, não as mãos.
Onde ficam as crianças até determinada hora, a hora do sol-pôr.
A mulher trabalhadora angaria segundas-feiras autênticas.

Acontece, serem as mãos da mulher trabalhadora a pensar por ela.
Tanto pode ser nas costas nuas do homem como na louça lavada.
Quando se permite uma hora na praia, os pés dela pensam sozinhos.

A mulher trabalhadora nem sequer gosta de domingos.
Domingos são os dias em que os homens querem assemelhar-se-lhes.
Isso nunca pode resultar bem por causa da sociedade.
A sociedade tem sido sempre avessa à mulher trabalhadora.

A mulher trabalhadora não pode exercer o sacerdócio.
É por causa da virgindade vitalícia do trabalho dela.
As coisas não existem, portanto ela põe-nas todas a existir.
Por causa disso, só os homens podem ser padres:

por causa dos domingos e das igrejas,
esses prédios todos por vender
à imagem e semelhança das praias
ao domingo.

20/01/2012

Rosário Breve nº 242- in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 19 de Janeiro de 2012




O Relvas, o golfe e a História-Pátria

O capitalismo é a arte de transformar searas em campos de golfe. Viciosa arte. O seu evangelho, o seu sacerdócio e o seu ministério são sempre antipessoais, porque o capitalismo é um anti-humanismo. Quando um Relvas alegre, eufórico até, chega a uma região e se põe a cortar centros de saúde porque sim e a apagar freguesias em nome dos números que do estrangeiro capitalmente lhe ditam, que de facto faz o Relvas? O Relvas desertifica. O Relvas esteriliza. O Relvas interdita. O Relvas joga golfe.
Não creio que o Relvas tenha alguma vez lido a primeira aventura do detective Marlowe, genial criatura do genial Raymond Chandler (The Big Sleep, 1939). Aí se lê que: “A mentira permanente desacredita-nos; a verdade em larga escala tolhe-nos o passo.” Pois é. Só que o Relvas não tolhe nem encolhe. O Relvas escolhe. Quem? Os desvalidos. Os malparidos. Os assumidos. E os tolhidos. E os encolhidos. O Relvas procede mal, até porque Portugal é um sítio bestial para se ser feliz e coisital.
Em contraponto, em Portugal é tão fácil apontar um ladrão público como encontrar um parolo nos espectáculos do Tony Carreira.
Em contrapartida, é dificílimo topar dois compadres de Portel a discutir um “green” de 18 buracos na mesma planura onde outrora a áurea cabeleira do trigo ondulava ao benigno sol português.
Desertificar as aldeias mata a Nação, ó Miguel.
Pôr a estudantada a licenciar-se em Queima das Fitas e a mestrar-se em Desemprego e a doutorar-se em Emigração – dá cabo da Nação, ó Miguel.
Ver em cada trabalhador subassalariado um subversivo inimigo – é um perigo, ó Miguel.
O golfe só compensa quando é pérsico, digo eu com os nervos. E é com os nervos, Miguel, que me lembro de certa comoção patriótica que, menino tenro, senti na aula da primária. Era no tempo em que se estudava História-Pátria na escola. Aí se referia quem era e o que aconteceu a outro Miguel.
O de Vasconcelos, ó Relvas.


16/01/2012

ACTA DA MANHÃ TERRITORIAL DE SEGUNDA-FEIRA, 16 DE JANEIRO DE 2012


ACTA DA MANHÃ TERRITORIAL DE SEGUNDA-FEIRA, 16 DE JANEIRO DE 2012

Leiria, manhã de segunda-feira, 16 de Janeiro de 2012

À solidão duplicada do espelho, fazendo ao rosto a raspagem da barba, nem sempre dou comigo do outro lado.
Por vezes, o Canhoto é o escritor que não cheguei a ser.
Outras vezes, o marinheiro que todos os homens deveriam ter sido, uma vez na vida ao menos: ou menos.
Outras ainda, Ele sou quem se prepara para, raspada a barba e ungido o rosto de fresca loção, perorar sobre António Nobre a mancebos de colégio não-jesuíta.
Uma vez (uma única vez), Ele fui quem lavou e levou um rio de montante a jusante mercê de uma singular ideia justa, hidráulica e motriz.
As mais vezes, porém, sou eu: em chateza bidimensional, canhoto na mesma mas mais olheirento e de dentes piorados pelo fumo, pelo café e pelo utente hábito de maus versos.
E entre o um de cá e os uns (zunzuns) outros de lá, a coincidência chega quase a ser pura, descontada a realidade e o rumor da televisão na sala entretendo gata e mulher, que são para-quem, afinal e só, raspo a barba e repito a loção.

*

Dia ontem fechado como um punho escuro foi mas
hoje não, que o sol dá colecta larga e justa, como gostas.
Uma sorte de indiferente alegria nas coisas:
brilhos irisando peles e demais superfícies expostas.

Recorde e acção ao tempo mesmo, a recordação
bem tenta toda virar-se para amanhã, essa eventualidade.
Escrevo as minhas coisas, não chateio ninguém, na verdade,
que isto é sozinho desbarato, não a revolução.

Percussão tambora nas fontes da cabeça,
sinais de fumo da boca tabágica à meça
de mãos multiutentes do tudo-quase-nada, diz,

da vida: ei-lo-me, ao meteorologista desencartado
que o anonimato recobre de suave verniz,
ao sol da esplanada, e de código esmaltado.

*

Às serras do meu País tornou a neve
que dura se faz, tão dura e tão leve,
que à leviana vida endurecida se coteja,
algo que se vê cair e se não beija
nem mima, antes se vê tornar de cima
às baixas serras do ser,
neve ave leve nave:
que nem apetece morrer
mas cair só
e só viver.

Neve, caspa de Deus, Esse que a tudo e todo mais mata
quão mais nefelibata.
Não cuido porém por ora do tempo matador,
que esta é só da neve elegia:
ao dia undécimo de Fevereiro, creia-me o senhor,
do ano que foi 1983, a nova era que havia
sobre toda a Coimbra um denso nevão,
que vo-me-lo recordo, aos que estavam e ’inda estão,
na formosa Cidade a neves não usada.
Parecia, como o pessoano mito, um tudo que era nada:
mil vezes branca, branca de lavada,
puríssima ovelha alva mil vezes tosquiada.
Eu dormia, era tão cedo:
meu Pai, a medo,
quis dar-me a neve toda
como se fôra já a minha boda.
E era.
Mas caiu já a neve
e já meu Pai caiu.
Era no meu tempo mais leve.
Não estava frio.

Hoje a leve neve se fez futura.
É branca e é pura.
Mas é mais dura.

*

A esta do dia doçura perderei
qual da noite a amargura, bem no sei.

*

Positivas pessoas de mim diversas
vejo que existem por estes meandros.
As mulheres são ginas (e algumas, perversas),
os homens são andros (e alguns, malandros).

Positiva gente, cuja mentira
em verdade não mente.
Gente apenas que o Tempo tira
de, ente, ser não mais um dia que já foi gente.

*

RECORDAÇÃO DE COIMBRA

O meu pior terror sempre foi chegar a uma idade em que se me inevitabilizasse escrever qualquer coisa chamada Recordação de Coimbra. Hoje está a acontecer. Como se tanto honesto estudo e tão denodada porfia me não mais valessem, ao cabo do vital dia, que valer pouco mais que um torga ou um doutoreco maçon. Isto não pode naturalmente ser nada de bom. Ainda assim, vejamos, quanto pode a um homem a valer o ser, em recordação ao menos, de Coimbra:

Tónico Mondego
volta ao Salgueiral
lua sem sossego
dando no Choupal

A tenra cabrinha
e o cordeiro terno
sofrem no inverno
saudades da ervinha

Silentes canais
que o comércio vão
abre aos demais
que de menos são

Lá do alto a Torre
recorda a quem passa
que viver é graça
e que tudo morre

Velho Calhabé
velha Cruz de Celas
ínsuas amarelas
mesmo aqui ao pé

E na Guarda Inglesa
pois tudo é passagem
assalta a certeza
do Tempo em voragem

Vindas foram vão
por a Estação Velha
vêm já não são
quanto se assemelha

ao pobre Anto Nobre
ao ruivo Antero
que a neve recobre
dum silêncio fero

“Asas escritoras
do verso do vento”
gaivotas senhoras
dum branco lamento

Terra de meus Pais
e das cheias vãs
que ao Bolão sem mais
molhavam manhãs

Descendo a d’Aveiro
’té Casa do Sal
Conchada primeiro
sem por bem nem mal

clara Santa Clara
que às Lajes permite
brancura que emite
uma cal tão rara

Ora mais não lembra
quais recordações
que as tem Coimbra
uns anos depois

de tudo ter sido
que vier a ser
nela o ser nascido
e nela morrer

Mas bate truz-truz
(quem ora será?)
i por Santa Cruz
ao deus-não-dará

P’la Rua do Corvo
Bota-Abaixo triste
sentir é estorvo
esquecer não existe

Era a Ideal
e a Lufapo era
a vida afinal
não pode ser espera

Amanhã será
novo ontem por certo
Coimbra se dá
o longe mais perto.





15/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 3, 4, 5 e 6 (integrais)



3. COPA

Leiria, sexta-feira, 15 de Julho de 2011

Exerço agora nas tardes camisas bem lavadas para que, limpo e escorreito, o meu tronco sugira que a minha cabeça é uma copa, não um copo.

4. NOGUEIRA

Guia, entardenoitecer de sábado, 16 de Julho de 2011

À boca da noite, uma nogueira penteia-se à brisa fria. É ao cabo de um dia fosco, fusco, pesado, baixo, de esponja-morrinha sem o imóvel relâmpago do sol. É uma árvore formosa e grande, como a noite mesma que se prepara para inscrever.

5. UM POUCO ANTES DISTO

Leiria, terça-feira, 19 de Julho de 2011

Cruzei a praça vazia ao começo da tarde sem auspícios, vinha e ia pensando que se morre, que se morre um dia mas que as águas ficam, as águas que ficam para eternamente contar o mundo, contar em número de tempo inumerável e contar em história ilegível para nós, pois que um dia morremos, morremos e não mais abordaremos a hemorragia de cristal das fontes, o olho parado das barragens, a cronometria hídrica dos rios, a vidente cegueira evidente dos mares.
Não é triste que assim seja e venha a ser, tantas vezes já nos aconteceu morrer, soltas da Mãe as águas, as tais que, elas apenas, contam.

*

Não quero acabar por saber que os animais gritam, quero apenas que falem, que digam o que o corpo deles pensa do mundo que os nasceu e os matará – e os fará gritar um pouco antes disso.

6. COZINHAS E PINHAIS

Leiria, manhã de quarta-feira, 20 de Julho de 2011

1/

É sob um azul muito puro que hoje escrevivo o dia, o sol parece um olho de criança deslumbrada e alumbrante, restam-me as horas de por diante.
Partilhamos lado-a-lado o destino dos cães, cozinhas e pinhais perfumam a atenção que fragmentamos pela realidade virtual dos outros (os sonhados vivos, os amados mortos).
Os leques, os bosques, a claridade (a clara idade) de Junho, o esmigalhador de areia & arroz do Grande Ampulhetador: ou uma manhã à salbabugem do mar, resguardadas as crianças em toldos de listras coloridas.
Em cafés povoados de homens cabisbaixos como reses pastando, cumpro cerimoniosamente a minha vocação de guardador de gardénias & caixões: estival e hiemal ao tempo mesmo.
Das colmeias o furioso açúcar escrevo cegarregamente, açucenamente. Vivo em puro transe de pureza, um pé órfão fora da fímbria terminal do lençol, ao sol.
Por terem havido laranjas, os dentes rangem mordendo o pão, estas coisas da infância (de)moram (n)o coração.
(Isto da poesia é uma expectoração.)
(Mas metafórico é cada um meu dia por causa da poesia.)
Todos queremos que os mortos durmam, desde que (nos) não morram.
(Escrevo sob mui puro-púrpuro azul, acaba-se sempre por dar (n)as vistas.)

2/

Safra de safiras e magno mogno: La Nuit, ela-mesma. Em plena tarde minha a que pertenço como uma mulher que de cima o homem rés-de-chão.
(Passa-se isto este Verão.)

3/

Causas puras e puras casas de mulheres sem dono nem sono vigiaram longamente quanto punhal e pinhal dominei ao arrepio-frio da minha atenção.
Merendei em & com algumas, sob tílias fresco-ramalhosas aos zéfiros inimputáveis dos setembros. 

12/01/2012

Rosário Breve nº 241 - in O Ribatejo - www.oribatejo.pt - 12 de Janeiro de 2012



时享受宝塔成犯罪

Pagode” é como se chamam, na Ásia, certos templos veneradores de religiões como o budismo e o bramanismo. Ora, a China é na Ásia. Ora, na China o que mais acontece é nascerem chineses, os quais, maoistas ou taoistas, aprendem a respeitar o pagode. Mas que acontece quando os chineses saem da China? Qual é a primeira coisa que se põem logo a fazer muito calminhos? É gozar com o pagode. Se não, veja-se o que está a acontecer na ex-nossa EDP.
O que está a acontecer na ex-nossa EDP, que a sinistra troika nos forçou a vender ao desbarato (aos chineses, precisamente), é algo que nenhum Buda, por mais pançudo, consentiria. Devo confessar que sempre pensei que, ao menos, o nunca fartar-vilanagem de salários obscenos como os dos Mexias e muchachos afins ia levar cartão vermelho. Não levou nada. Olha quem.
Os chineses já mandaram: para presidir ao Conselho Geral e de Supervisão da eléctrica ex-portuguesa, aí o temos, o Catroga, esse génio administrativo-financeiro do Cavaquistão. Vai rapar 639 mil € “dele” por ano (coisa de 45 mil/mês) mais, note-se bem, a acumulação de 9600 euros mensais de “reforma”. Isto no mesmo exacto país onde um anónimo trabalhador que, ao cabo de 26 anos de trabalho no privado e de ter chegado aos 70 de idade no sector público, sofre o roubo de 115 euros dos míseros 533,47 que recebia de aposentação. No mesmo país. Na mesma Chinatown.
Ao lado do Catroga, o Teixeira Pinto, o “poeta/pintor” de monte alentejano que, à saída forçada do BCP, mamou 9,7 milhões de consolação mais “reforma” superior a 30 mil/mês.
Ao lado do Pinto, o “adiantado mental” chamado Braga de Macedo, essa espécie de heterónimo facial do Mr. Bean, outro ex-tripulante da sinistra barca cavaquistona de má memória e melhor amnésia.
Ao lado do Macedo, a Celeste Cardona do Durão.
Ao lado da Cardona, o Ilídio Pinho, ex-patrão de um tal Passos Coelho nos dourados idos da Fomentinvest.
E ainda, qual cereja legionária no carrapito do bolo união-nacionalista, nada menos que um general, o Rocha Vieira, o grande ex-governador de Macau, essa asiática jóia de Camilo Pessanha dada de borla… aos chineses.
Que o Mexia diga que nada temos a ver com isto, que esta sucata moral é da responsabilidade dos accionistas e de mais ninguém, parece-me cuspo dele nas nossas trombas. Mas como não consigo ter medo nem de gente assim nem de escrever o que me vai no fel do desencanto, sempre lhe garanto que 时享受宝塔成犯罪, que qualquer chinês das “novas oportunidades” sabe ler como “gozar tanto com o pagode chega a ser criminoso”. Mao Mao, Maria. 

08/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 2 (integral)

© DA. Leiria, 22 de Dezembro de 2011




2. JULHO E ARREDORES

Leiria, quinta-feira, 14 de Julho de 2011

Senhora melancólica tomando uma imperial e fumando um cigarro pela tardinha. No Café Colonial, ao número 10 da Avenida Combatentes da Grande Guerra, Leiria. Óculos escuros descansando na cabeça, blusa de listras branco-azul-escuras. Calças de ganga, sandálias brancas de fivelas. Quarentas & picos. Pensativa, o olhar na rua. À porta, uma pomba indaga migalhas. Mãos vermelhas de ambas, senhora e pomba. Donas ambas, pomba e senhora, de silêncios sensoriais (siderais, também). A senhora levanta-se, sai do café e desta página.

*

QUADRA PARA AZULEJO DE MONTRA DE GARRAFAS

A avicultura e a gonorreia também existem,
como aliás idem o Brasil e os olhos claros.
Os palimpsestos são decerto mais raros,
nem todas as coisas, não, resistem.

*

Chamo-amo-te no interlúdio sombrio
sempre que à luz tua tanta porfio.

*

INVENTÁRIO DE JULHO QUASE MEADO

Dois toxirrapazes a tiracolodependentes da própria idade; a fachada obsoleta da Igreja Evangélica (puta-que-a-pariu amailo seu americanizado Cristo); um pão-com-chouriço-tipo-micro-ondas; um pub-relógio-de-parede; um homem de calças verdes como uma alface com pernas; os corpos das pessoas: os órgãos dentro engendrando os motores, os motes, os motivos, as moções e as monções; as palavras ressumando sais e lábios; as surpresas e as que nem por isso; a glotológica geografia do Chile; o cabelo do homem-alface: argênteo, coruscante; a força das coisas: os gansos, os patos, os correios, o arroz, as tradições, os ritos, os rictos, os ritmos, as arritmias, as cebolas vasculares-cerebrais; (saudades da minha Mãe, o peito amolgado como uma lata no chão; saldos até 70% do preço original; liquidação-total-da-existência-últimos-dias-igreja-evangélica; um caso de amor gravíssimo na cidade de Leiria, à vista de toda a gente; um homem conduzindo um berçário rolante com ser humano fresco dentro; uma agente imobiliária com capacete forrado a caqui colonial; um careca gordo com adequadas marcas de giz azul na cabeça, dada a condição bola-de-bilhar; a sub-reptícia tristeza universal.

*

Esta tarde, sozinho como um cão dado a raciocínios, usufruí da vereda aérea de árvores beira-Lis. Foram instantes aeróbicos: bebi pelo nariz o fino-quase-frio ar da água. Refrescou-se-me o corpo-família: respirei, até, pelos meus que não respiram já. À flor a água, os patos bordavam natatinhoriamente. Um pescador-à-linha pensava a linha. A Oeste, o clarão de Julho encimava minas de ouro-branco, o Castelo alteava a montura memória de José Maria Eça de Queiroz, estava tudo em seu sítio. Transitei. Cruzei passadeiras com extrema precaução, uma pessoa nunca sabe, cuidada a extrema-unção, li o jornal do café, informei-me dos crimes-de-sangue e das roubalheiras, desejei as boas-tardes a toda a gente, viva e/ou morta.

*

AVISO I

Para amar de novo, só com as vacinas em dia.

AVISO II

Se ter não for pertencer, não rima.

AVISO III

Quem me ama, nem sabe o que perde.

*

Pactuarei nunca com a ignara perfídia do género humano cevado, mais que nado e menos-que-nada, no meu Portugal. Isto por aqui é tudo meu: a tarde ribeirinha, as distâncias azuis, o fulgor flavo do Outono-sem-dono: o meu País é o cristal da areia na sola dos sapatos, a cereja de Resende & Lamego à beira-sede dos polícias de trânsito, é todo o trânsito:
a praia-morrinha-poalha-de-sal,
vê lá tu, tu ó minha querida,
que é Portugal.
(Quanto ao resto, não sei muito bem, não li nem vou.)

*

A pomba das 19h55m à porta do número 10 da Avenida Combatentes da Grande Guerra (Leiria) é uma boa pomba. 

07/01/2012

LIGAÇÃO À MEDUSA - 1 (fragmento)




1. GINESTESIA AMBULATÓRIA E AFINS

Leiria, quarta-feira, 13 de Julho de 2011

Passagem de mulheres pela rua ensolarada: solúvel, instantânea beleza: como o café doméstico. Comove-me sempre muito, tal passagem. Não é importante, a minha comoção. A moção delas – é. Estruturas mui bem laqueadas a tecido de ouro, dotadas muito da redondeza volumétrica da ânfora, do alaúde. Excelentes ligamentos suspensores das mamas, bons pèzinhos quase orientais, olhos cuja mansidão refulge a da vaca úbere, vaginas demolhando o húmus criador. Essência, bálsamo, lavanda, loção: cadinhos perfumados da ginestesia. Belas & alheias, caminhantes, sustentáculos do comércio e das gerações e dos renques arbóreos e dos parques automóveis e das filas de patos no rio e de vês de andorinhas rumo ao sul dos céus. Bonitas como morangos frescos ao cuspo do orvalho. Ligam-me, todas elas e elas todas, à medusa. Quando, infante, eu no Monte do Picoto trincava o talo do funcho, não me as imaginava assim. Agora (agora que decresço, que me outonizo), agora sim. As mulheres? – Estandartes, espadartes. Belas artes. Barcos verticais. Árvores que a noite (nos) deita. Roedoras dos ossos de cada homem, fábricas de vísceras. Coroas dentárias valendo diademas & perla-poemas. Labial carmim. Isto nem só a mim.

Canzoada Assaltante