23/06/2005

Notas Marginais para Pintar

Qualquer solução económica é válida, desde que não implique o penhor do coração.

Talvez devesse ter sido pintor. E foi-o, mas de paredes. De quadros, não. Sem mensagem, sem técnica, não empenhou o coração em borrões.

O corpo tem possibilidades. Tem de ser corpo, por isso pode ser corpo. Pode ser um rio, embora viva na margem. Pode fazer isso com a imaginação, criando imagens. O corpo pode criar-se.

Magia brilhante na noite: no quarto escuro, deitado, só, o corpo fotografa o que mora para lá, criação de cá.

A sociedade não tem sócios voluntários, só municipais.

Nascer não é de vontade.

Cão de ouro e nácar. Presença do cão. Raciocínios gestuais do animal. Linguagem orgânica (organizada) dele. Sons dele. Cheiro dele.

Citar, recitar, excitar, concitar: estar.

Nomes dos objectos: quaisquer nomes, quaisquer objectos – não enlouquecer.

Saber cedo de mais é perder para sempre?

A cabeça do homem envelhecido é bela: a beleza é jovem, apesar do portador.

O amor torna-se Japão: atraente e longe, ou uma coisa porque outra.

Cada um sabe.

Trabalho na obra. Trabalho nas obras. Singular, plural. Trabalho só. Trabalho, só.

Nunca entreguei. Não é possível entregar?

Nos meses portugueses sem R se apanha e come o caracol.

Alma, não. Lama, sim. Mesmas letras, outra ordem e outra desordem. Isto importa.

Ainda. Ainda assim.

O escritor é parido pelo leitor. É filho dele. O filho ensina o pai a revisitar o sabido.

Não esquecer os números. Contá-los como se conta uma história.

Ainda há tempo.

Um quarto para dormir e morrer. Uma cozinha. Uma latrina. Uma sala para pintarscrever. Tudo o que é preciso.

O lume e o gato: calor por calor, nada contra nada.

Balões: cor, ar, calor: partilha de letras pinceláveis.

A minha força, a minha dissipação: sangue, leite, água: a minha vida: tinta.

Só os animais são sexuais. Os humanos são eróticos, quando podem.



Pombal, 24 de Junho de 2004

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Canzoada Assaltante