31/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 688



688

Sexta-feira,
30 de Julho de 2021

    Era em Fevereiro de 1884.
    “No dia 1, ao começo da noite, suicidou-se, por enforcamento, numa das casas do seu aposento na Universidade, o lente cathedratico da Faculdade de Medicina, dr. Augusto Fillipe Simões (…)”
    Cito Augusto Rocha, no primeiro número (romano) da Necrologia apensa à reunião em tomo dos Escriptos Diversos (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888) do dito suicida. Os outros subsídios para a memória fúnebre do malogrado universitário são assinados por A.A. da Fonseca Pinto (II & V), Bernardo de Serpa Pimentel (III) & Joaquim Martins de Carvalho (IV).
    Recolho notas antigas. Fiz a leitura do volume no Verão passado – mas o riscanhado lapiseiro quis ser passado a tinta. Daí:
    A.F.S. nasceu em Coimbra a 18 de Junho de 1835 (uma quinta-feira) & em Coimbra se matou a 1 de Fevereiro de 1884 (sexta-feira), não chegando pois a completar vivo 49 anos. Entre muitos outros interesses, cultivava o de ser colaborador & redactor de O Instituto, folha académica de alto valor cultural daquele último quartel de século.
    Era filho do Sr. Manuel Simões Cardoso & da D.ª Constança Jesuína de Paula Cardoso. Era também um aptíssimo estudante: de 1850 a 1855, formou-se nas faculdades de Mathematica e Philosophia; de 1855 a 1860, formou-se na de Medicina.
    Atributos oficiais deste infeliz moço? Dariam um poema. E, copiando-os já, vão dar:

DOUTOR E LENTE CATHEDRATICO DA FACULDADE DE MEDICINA
BACHAREL FORMADO NA FACULDADE DE PHILOSOPHIA
ANTIGO PROFESSOR DE INTRODUCÇÃO NO LICEU NACIONAL DE ÉVORA
DEPUTADO ÁS CÔRTES PELO CIRCULO DE COIMBRA EM 1880
SOCIO DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA
DO INSTITUTO DE COIMBRA
DA REAL ASSOCIAÇÃO DOS ARCHITECTOS CIVIS E ARCHEOLOGOS PORTUGUESES
ETC. ETC. ETC.

    Que irredimível solidão foi a sua, capaz de o levar sem retorno? Máxima foi, pois maior não há, solidão, que a de ter por única companhia uma ponta de corda.
    Li a diversidade dos seus Escriptos. Merecem reparo. A eles voltarei, amanhã talvez. Por ora, galgou todas as valas a nascida noite. É ela o país maior, agora. Da marquise ao cabo do mundo, daqui à vetusta adusta argírica Lua, vai talvez o mesmo – e quanto vai, voltar não volta. Volta & ½, só o cão.


30/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 686 & 687

© Egon Schiele


686

Quinta-feira,
29 de Julho de 2021

À face da atenção, o rapaz leva ambas as mãos ao próprio peito
O sol é violento a ponto de azular a cabeleira solta do rapaz
Formiga em dormência o sangue esquecido no rosto
– e o olhar dele é o do rapaz que fomos, se alguma vez

Se alguma vez nos não escapou o tempo de verdecermos
Atento o outonal precipício da sensibilidade invita
(Não confundir com invicta, que é de outra história)
Da invita sensibilidade como da parrascana manha

As mãos muito vermelhas capazes de sonetos vãos
Tempo tem o rapaz mais contado que cantante
A família é de tristes bisonhos proboscídeos ingénuos

Mas eu dele cuido, não seria agora que, não agora
Agora não desistiria eu dele, não agora, à face da atenção
O sol é azul na violenta cabeleira, sobe à face o sangue, a dormência.

687

    Tirando o soneto imediatamente anterior, não fiz hoje mais grande coisa. Vi pintura de Egon Schiele, que Mário Botas (justa & acertadamente) admirava. E há pouco a notícia da morte de Pedro Tamen, poeta & tradutor português que algum nome teve & fez. Mas não fui a fazer a notícia. Recebi-a em meu anonimato sossegadito. Agora é a noite – mas o sono não me tem batido a horas propícias à rotina (= rodinha) que elejo há muitos anos para consumo da casa. Pela tarde madura, bati sesta – mas a carga dos sonhos obsta a uma calma mais reparadora. Ainda por cima, sonho (é verdade) que escrevo sinopses para enredos prosaicos. Tudo se esfuma quando, bocejando boquiaberto à peixe, desperto – mole como a lama à chuva, bronco como os eleitores do Cavaco & irremediável como qualquer outro humano. Nada disto, acumulado, resulta forçosamente em mau dia. Nem por isso. Fiz de novo uma panelada de sopa, havia gelado numa das gavetas árcticas cá de casa. Chá & café. Pão novo. Pêra cozida em água-d’açúcar & pau-de-canela.

29/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 684 & 685


684

Quarta-feira,
28 de Julho de 2021

Falei-Vos de um velho atinado para com seu fim mesmo
É um homem real com dois milénios & meio de idade
Tanto dá para o caso 2500 como 80 ou metade de ambos
Li dele na madrugada que precede este papel manchado
Escrevo ora na tarde em cujo ápice visitarei o meu Irmão.

Julho dá, ele também, de si a quadra derradeira
Por fora não parece mas por dentro combatemos
Neste caso falo por mim & por Vós em ousadia
Dia é de fazê-lo, a mal me não decerto levareis
Somos afinal humanos, tanto tal maravilhava Sófocles.

Atravessei água quente, espuma, aço, pano
Lavei, raspei, limpei, enxuguei o corpo
Estou pronto para a excursão ao fraternal orago
Espero voltar por volta das dezanove, dia ainda
Tenho os papéis em ordem, se não a vida.

685

Vivos, efémeros.
Mortos, perpétuos.
Perde-se destes a contemporaneidade, pois passam a atemporais.
Nada os aflige ou comove.
Em peso, a sombra – uma ponta (uma pontinha, quase nada) de amargura.
O sal da presença (& da pertença) por terra.
Anda ao engano quem quer, ao desengano quem pode.
A boa poesia torna simultâneos demanda & achado.
Uma embalagem com alimentos, a bonança crepuscular.
No átrio do hipermercado, quatro que falam de sorte, faca.
Perto delas, na fila-caixa do bufete, quatro trocam propostas.
Um campo humano: plenitude ou planitude? Ele é conforme.
Vi a montanha – e ela era bela & atenta.
À entrada da vivenda, o cão veio saudar os visitantes.
A comida era de um sabor antifamiliar, profissional, de seriedade dura.
A enumeração destes elementos dificulta a assimilação.
É de saltear versos, ler aquele, ir a outro, vir a este.
No fim não há exame, pode não reter-se absolutamente.
Eu fiz um dia frugal, vi as luzes da ribalta, ficam longe.
O mais assisado é ir vigorando pela ribabaixa.


28/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 681 a 683

© The Red Hand


681

Terça-feira,
27 de Julho de 2021

    Diz-se que Liszt, na raiz de grande compositor, era exímio pianista. Acredito no que se diz. A máquina do século XXI dá-me a ver & ouvir Martha Argerich, em 2019, ressuscitando Liszt através do Concerto para Piano em Mi Bemol Maior n.º 1, S. 124 – com a Orchestra Sinfonica Nazionale della RAI sob regência de Enrico Fagone, não sei em que sala-cena. É de respeito, na tarde já alta. Fui ao contentor para depósito do lixo, a luz é muita, o calor não exagera, era para ter ido à Baixa, não fui, hoje não. Nem por isso acaba hoje o mundo, parece-me bem que não.

682

    Na situação de imobilizado-doméstico, resta-me cirandar por este meio. Já vou pisoteando chão de folhas caídas como anjos paginados, entre bétulas frescas. Erra a penetrante alfazema. A democrática estevinha, tão boa para incêndios brutais. O venenoso teixo. O patriótico carvalho. O velho castanheiro. Freixo, sobreiro, amieiro, manso pinheiro. O Sol embebeda-se todo de olores. Acompanha-me na cirandança Cecília Fulgor Filipe Ralha, que é maravilhosa no que toca à nomenclatura das coisas silvestres. Não me canso de perguntar-lhe nomes do mundo, aqui tão longe da maquinaria & do gentio automatizado. Encontramos uma leira que oferece limoeiros espontâneos, azedos, magníficos frutos nos doam que nos doem. Aves, altas como nuvens, consideram-nos presas eventuais, depois já não, seguem rondando virtual refeição. Isto não tem hora ou mês ou estação. É para sempre, se escrito. (Mas bem se sabe que os sempres humanos dão sempre em nunca mais, ora nem menos.)

683

Um gajo orquestrou a morte da mulher & do filho.
Recolheu & investiu os prémios dos seguros-de-vida(s).
Na região, um rapaz vê & estuda a Lua pelo telescópio.
Tem à disposição um saber informático que o favorece.
Duas mulheres conversam de varanda a janela.
Entretêm-se com as minúcias do dia idêntico.
Nisto, um velho, de clarividente cegueira, sabe-se terminal.
Sua derradeira extravagância: impor a terra em que inumar-se.
Ente proveniente de gente inteligente, ele é em si o derradeiro
– mas o não somos tal todos? Tal somos. Todos tal.



27/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 677 a 680


 
677

Segunda-feira,
26 de Julho de 2021

    Mas também aqui, onde a calada da noite instaura a sua autoridade terraplenadora, sentimentos irrisórios como a vaidade, o ciúme, a soberba, o rancor, o desamor – todos se mesclam em o único pecado verdadeiramente mortal: o da perda de tempo.
    Leio em Armando Silva Carvalho (a páginas 68 do livro de que V. falei):

    “(…) poucos regressam ao presente,
    berço de todo o tempo (…)”

    E assim deveras é, pois só na poesia deveras boa, grande & única-de-si se encontra o que nem se sabia procurar-se. Na minha calada, pela minha noite, coo sentimentos oblíquos, práticas autonefastas, pensamentos mal ou nada atados – tais miligramas arrastam quilos de tempo (mal) perdido. Por me conhecer alguma coisa, não tardo a assobiar imagens para o lado menos dorido:

    A Cervejaria Nau, única luz na rua às onze da noite invernosa, os dentes das ameias do forte, o ressoar côncavo do mar sem fundo nem superfície, o mar do ar preto, rangendo o frio nas dobradiças revestidas a cartilagem neste corpo de 22 anos;

    A véspera de Julho abrindo em frente os espelhos de outra praia, esta sim eterna & sem contraponto invernal, o perfume compósito de praça, jardim, peixe, rosa, creme-nívea, figo, gelado-baunilha, feijão-verde, groselha, padaria, o vento através das pessoas, os casarões deserdados & desertados que hoje habito quando dormir se tornou imperativamente impossível.

    Nada disto é transe, nada disto é sonho. Eu digo sortilégio, não digo ilusionismo. Não sou malabar profissional. Aliás: de nada mais sou profissional que de continuar vivo. Morreu ontem um homem que de si mesmo poderia dizer: Com outros, fiz a revolução. O homem acabou, algo dessa revolução se fez duradouro. Está na liberdade com que escrevo & propago as minhas irrelevâncias, as minhas tristuras, a anedota profana da minha crendice na literatura:
    
    Mas também acolá
    etc.

678

E depois? Não digo (nunca disse) que esta via é vida só ela.
Esta: a literatura pois-agista com bestas panorâmicas ao rio.
Não, nunca. Nunquinha. Dou total dez à biologia-esparrela,
como o dou à gnose hidráulica & ao enciclopedismo-bafio,
à gripe-escaqueirante, ao cu posto adiante & à febre-amarela.

Lambo a literatura-devagarinho de passarada à vã janela.
Aprecio os largos campos, quem vai ao emprego, quem tem tio.
Mas não só a vagarosa (vaga, rosa) literaturinha-lambidela,
pois também eu idem a esmola-quântica, o esparregado-frio,
a lucidez-alucinante, ir cagar ao restaurante & a voz que s’entaramela.

A morte descarta todas as possibilidades, disse-mo alto ela.
Todas as possibilidades abertas pelo nascimento?, perguntou o tio.
Sim, todas elas – redarguiu ela, mui sábia & varicela,
muito ela-por-ela, q’ela ’inda se coça de cio,
q’ela é capaz de, mais adiante, roubar o monstro à vela.

679

De malvasia bem cheia taça emborcámos
Eu & o Tonito Pereira pelo alvor do milénio
Por toda a terna idade tal libação salvámos
Respiramos más tabaqueiras, escasseia-nos oxigénio
Casamentos na lembrança são-me só massa indistinta
Já funerais recordo bem, capaz sou de individuá-los
Como quem dá banho ao cão & alfafa aos cavalos
Arroto & m’abarroto & aljub’arroto chocos-com-tinta
Muito bajulo eu a Portuguesa Língua!
Muito eu lambeboto tal Formosa!
Creio feérica sem nódoa a rociada rosa
Já quanto à gardénia-de-lapela, distingo-a
Do fúnebre branco lírio, colírio lutuos’oftálmico
Em tratamento a banhos & a bananas tal mico
Dou rodapé de flora - & Alexandrina de Balasar
Que ainda nem beata, quão menos santa d’altar.
Quero p’r’aguardente & para a nicotina
Com copolímero de etileno
Acetato de vinilo, tereftalato de polietileno
Laminado de poliisobutileno & grão de vidro na retina.

680

Continua interessante, o patinhar na dimensão-Tempo.
Os filósofos físico-matemáticos associam Tempo a Espaço.
Eles lá sabem, muito observam, muito estudam, ponderam, trabalham.
Eu meandro-me como tenho podido: abrindo a mente.
Nascer-viver-morrer – dar Tempo (& Espaço) a outro.
Vi uma fotografia muito próxima da minha realidade:
imagem de uma das enfermarias do antigo instituto maternal.
Ali me deram nascimento também. Gostei da fotografia.
Deve ser da década anterior à minha, julgo.
Tempo daquelas mães (a imagem é escassa de infantes).
Espécie de parentesco genérico, senti isso, equalizada condição.
Aqui entra o tal Espaço: Instituto Maternal Bissaya Barreto, Coimbra.
Era à face da Porta Especiosa da Sé Velha (“Speciosa est Maria).
Ainda existe o edifício, já lá foi o Conservatório de Música.
Antigamente, passava lá muitas vezes, quando estudava.
Os infantes a-haver da fotografia andarão agora pelos sessentas.
Talvez algumas daquelas parturientes sejam vivas, oxalá.
Este tipo de imagens põe-me sempre cismático, nem muito é preciso.
Imobilizadas no papel revelado, as jacentes miram as paredes.
Uma mira o tecto; outra, menos recatada, olha a objectiva.
É muito interessante, esta dança imobilizada, este futuro acabado.
Em foto afim desta, espécie de gesso reveste o madeirame exposto ao fotógrafo.
Teve decerto autorização a rogar, não se entra ali assim com menos.
Agora, já de ali se não sai: as fotografadas foram capturadas.
Camas de ferros redondos, brancos, como que ósseos.
Roupas magras, lavadas muitas vezes, muito desinfectadas.
Nem a todas foi o amor a arrastá-las ali.
Mais a rotina, a obrigação, o dever sacromatrimonial.
Alguma solteira? Mau tempo para aventureiras.
Alguma violada? Muito provavelmente, talvez até pelo próprio pai ou irmão.
É o tipo de enfermaria que imagino à Fernando Namora.
Como no livro Domingo à Tarde, por exemplo, esse serve.
Ou, claro, nos Retalhos da Vida de um Médico.

26/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 675 & 676


 

675

Domingo,
25 de Julho de 2021

    Morreu Otelo Saraiva de Carvalho, nascido em 1936. Tinha 84 anos. Fica associado à euforia do 25 de Abril de 1974 – e a algum rasto deste no quase meio-século entretanto volvido. Tem lugar na História de Portugal.
    Depois, a exposição florícola, grassando no ar a música de Debussy. Espécies balsâmicas – primeira das quais, a infância, essa estufa dificilmente fria. Velhas vêm abelhar os capitosos olores da mostra floral.
    Panóplia/cornucópia de imagens afinal serenas.
    O homem de longos cabelos & longo manto, dourado tudo, longa obra tem (ainda é vivo) mostrado. Há tempos vi-o & escutei-o perorando sobre Vivaldi. No curso do discurso, ei-lo em Veneza, et situ et in loco.
    Imagens de Otelo, algumas de fresca antiguidade. Algum(a) de Vós atirou alguma vez uma ditadura ao chão? Ele atirou.

676

    A morte de Otelo causa-me alguma melancolia, no corrente indiferente anónimo anódino domingo. Não é tristeza – é antes tristura. Em certa época, a aura de herói modesto assentou-lhe bem. Depois, a voragem da realidade atordoou-o um bocado. Salgueiro Maia operou de melhor modo. Ambos merecem retrato em lugar destacado na Galeria Portuguesa.
    Na mesma, vivo. Fora, o dia andou em cinzenta paleta. Parece ter chovido, não vi, enfronhei-me de papeladas próprias. No plano áudio, girou na máquina uma tal Fake Music for Travellers, que me agradou sem esforço. E tenho mais T.S. Eliot. É preciso nunca esquecer que a ditadura atirada ao chão por Otelo, Salgueiro & mais um punhado de homens a sério – está na origem da minha liberdade de escolha, opinião, escrita, vontade, acerto & erro. Expressei-me equivocamente. Refaço: é por ter sido atirada ao chão a ditadura que V. & eu podemos usar a cabeça & a boca & as mãos & os pés. Assim é.
    Parece que a 15 & 16 de Dezembro de 1972 (sexta & sábado), e no âmbito do Close to the Edge Tour, os Yes encantaram a(s) plateia(s) no londrino Rainbow Theatre. Há registo dessa presença feérica, desse sortilégio capaz de resistir aos anos. Digo isto: ainda bem que os guardei (aos Yes) para velho. Ter-me-ia escapado muito detalhe precioso na moça idade. Sou mais apto agora a decantar a música desta banda. Acho eu. Entardenoiteço, pois, com eles em 1972/2021. Sim, é possível a justaposição. Desligado, exilado, ostracizado, o televisor não grunhe. Não me interessa a fantochada olímpica deste ano anacrónico logo à nascença.
    E por falar em anacrónicos à nascença: fiz as minhas contas. Estou aqui sozinho, por tal são minhas as contas. E cá vão: se eu viver o mesmo número de dias (28.138), de semanas (4.019), de meses (924) e/ou de anos (77) que o senhor meu Pai viveu, então estico pernis a 22 de Maio de 2041. Não é mau: tenho para mais vinte anitos (menos dois meses & três dias). Agora, se conseguir os números da senhora minha Mãe (31.538 dias; 4.505 semanas; 1.036; 86 anos), então abro a boca para já não fechá-la no dia 12 de Setembro de 2050. Ou seja: na primeira hipótese, arrefeço a uma quarta-feira; na segunda, a uma segunda-feira. O mais certo, todavia, é errar estas duas datas – que a certa esteja, ao menos, entre uma & outra, como de entre outra & um nasci afinal.
    Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho viveu 31.009 dias, 4.429 semanas, 1.018 meses e/ou 84 anos. De todas estas cifras, sobressai a de 25. De Abril. Sempre.

25/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 673 & 674

 

© DA.


673

Sábado,
24 de Julho de 2021

    Jardim-horta: criação de beleza a par da criação de comida.
    Durante demasiados anos se me impôs a falsidade de serem reinos opostos. Não são. Mente-corpo: não são opostos. Mente-corpo-mundo: tudo (a)o mesmo. As tais dicotomias negociáveis (cf. 669). Já agora: dessa mesma entrada, as datas 25 de Novembro de 2002 & 20 de Janeiro de 2003 são, respectivamente, segunda-feira & segunda-feira.

674

    Tresli obliquamente algumas páginas deste rol. O mor é pessimista & assaz misantropo escrevinhar. Alguns versos escapam; algum fragmento menos prosaico de prosa, também.
    Não cedo a esse escorpião chamado remorso.
    Não cedo (nem tardo) à ganância erótica.
    Com talher de prata, mulher de pirata.
  Por modéstia (ou por moléstia, isto nunca se sabe ao certo), evito bravatas, refregas, mosquitos-por-cordas.
    Escaler é embarcação, não é de escrever-a-ler aglutinação.
    Pisoteio sem perdão nem pedido de.
    Lá em baixo, sob as tílias, vi, como em ominoso reflexo, o senhor Reis: o cancro tabágico carcomendo-lhe a pulmoneira, fraquinho, fraquinho, fraquinho, coitadinho, vi – ainda não usava óculos, foi há quarenta anos.
  Optimistas, admito-os. Mas compreendo-os mal. Problema meu apenas, não deles – mas, francamente, nem meu nem problema. Nada disto fica. Nem daquilo.

24/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 670 a 672


670

Sexta-feira,
23 de Julho de 2021

    A par pela calçada que debrua a praceta, as duas prenhes lá se vão, embaraçadas, engraçadas, como se houveram engolido cada uma seu berlinde gigante, artelhos & tornozelos com roxuras de senhoras-dos-passos, coalhou-se nelas o leite disparado por seus maridos, um marido por cada. Isto é no tempo em que o cinzentismo babuja niños-prodígios como o Joselito & a Marisol. Ainda há totobola até 13. Roger Moore ainda é santo, não ainda zero-zero-sete. Abafadiça, pegajosa, uma mosca tenta o antebraço, é sacudida pelo reviralho irritado, segue de esguelha para outra mesa, outros tripulantes, nova-corrida-nova-viagem. Ainda é preciso escrever nome & morada no boletim do 1-X-2, faz jeito à PIDE-DGS, quando vierem os cravos o S de DGS será de Saúde, não de Segurança. Por enquanto, a praceta ainda babuja túrgidas fêmeas, cetaceamente receptáculas de espermacete casado, tudo sob a vigilância da senhora-de-fátima-grundig & do cão-de-louça-telefunken & do Príncipe Valente, cujo cabeleireiro imita o da Beatriz Costa. Já, jamais, ainda & nunca mais.
    A bandeira verde-rubra grita futebol de terceiro-andar, o painel de São José & o Menino açucenando azulejos pios, de camélia ao peitilho passa o taful Isidoro, que é nome de salsicha tipo frankfurter – mas só tipo, as alemãs a sério são outra iguaria. Este era um bairro moderno quando Cesário ainda tossia sangue, já se amarelara quando Amadeo foi segado pela influenza. Coxo-côto do pé-direito, passa Arnaldo, viril murchidão destas artérias, de pouco-nada-zero lhe valeu a cagança de motociclista numa altura em que a bicicleta era promoção na hierarquia comunitária. Diz-se que debruava as olheiras a lápis-de-senhora, infâmia talvez, talvez por de seu natural o olho árabe, a tez carbono-caramélica, híbrido de oito séculos alfange-adaga-ponta-&-mola-canivete-suíço-navalhinha-de-cortar. Se até aos 29 julgámos perene esta organizada pasmaceira, esta rebaldaria com horário – já a não julgamos assim. O Peres morreu, o Carlos-Beto nem tempo teve para estar doente, o André Russo foi despachado aos 54 por mais que tentasse termas, saunas, piscinas gasosas, subidas ao Caramulinho, prostrações na Cova da Iria – tanto iria, que se foi. A Celeste Major, idem. Ficam os gestos, não os braços. Fica a andarilhança, não o pedestre. O Diniz deixa a pastelaria à sobrinha, já sob a tabuleta de Alcarraques jaz sonhando com trocos, sacos de farinha, convencer a Santa Casa a dar-lhe alvará de euromilhões, raspadinhas, sortes de sonho. Não quer dizer que o Cação asse mal o frango, que o Nato peixeiro não recorra ao congelado, que o Isidro com mais um o não chegasse a Isidoro. Como solene actor na deixa certa, surge dos bastidores da bandeira-nacional o gato de terceiro-andar. Vem lobrigar as tropas bípedes do bairro, estas que afinal humanam o Tempo, mimam a macacada pelicana que galapagamente deixa incrustada na rocha a nebulosa espiral ácidodesoxirribonucleica. É o caso da Marilu (como na canção), é o caso do Baptista protestante, é o caso dUSAmericanozitos-meninos-de-deus que camis’engravatam o esquisito evangelho de Joseph Smith. Durante algum tempo, o pedaço é matinal, dura sábado, cheira já aos frangos do Cação, o Nato quebra pelo espinhaço o lingote de gelo para aviventar o carapau de palmo & a corvina rica. Já a sobrinha do Diniz se despacha mui bem, aviadeira de pão-d’água-d’avó, mil-folhas, empadas, natas como olhos purulentos de pançudos cirróticos, bolas-de-berlim lambidas a icterícia, fúrias do açúcar que embebedam a mosca de há linhas. Sim, está aí o meio-dia, furtivo se nos achegou ele, nem a calendário obedece, morto quem morreu, vivendo quem respira, o 1-X-2 chama-se agora euromilhões, na pausa há as raspadinhas, jogo de senhoras com moeda para tal, de recém-casados a contas com os respectivos sogros, de bebedores matinais de porto, esses morning-drinkers da comandita do Cardoso Pires. Tanta cifra, tanta zebra, tanta febra, tanto nada-resto-zero. Durante um quarteirão de invernos penarás hipotecado, dois anos com o apartamento pago & eis-te freguês do i-pê-ó, por enquanto és ambulatório & chiu. E daquela vez em que fiz a pé Prazeres-Alameda, sim, ali por Alcântara dois macanjos atravessaram a via na minha direcção, contracruzei o tráfego direito aos pastéis-de-Belém, ficaram a olhar-me do lado-de-lá da impotência, isto foi mesmo assim, nem sempre os ciganos se ficam a rir, num instante estava em Santos, Arsenal, Almirante Reis, Intendente, Chile, Império, acabei por ir cervejar a fadiga sã ao Areeiro, naquele canto frequentado pelo sósia doidinho do Ciccio Ingrassia. Todavia, esses bairros não são este, meio-dia & dez são elas, mais de quarteirão de anos volvido é. Sim, de quando em vez recorre-me Lisboa finissecular a mente, um pouco mais agora por causa daquele livro de Armando Silva Carvalho de que V. dei recado titular, julgo que ontem ou cois’assim por aí. Quando lá estive, fui romano – mesmo sem ter visto o papa, antes vendo bisarmas enfermas de nanismo literário, nem mal me fizeram nem bem lhes botei, pratiquei aí uma solidão sem mariquices sentimentais, ocidentais sim, que Cesário & Pessoa & Eça ’inda por ali espectram certa aura, incerta gaze.
    Na página 24 (op. cit.), Armando S.C. assim:

    “Os bairros triviais fazem sair de casa amores atribulados.
    Entre a merda dos cães e outros fados
    passeias o esplendor duma irreal beleza.”

    Do primeiro verso, alinho nos “bairros triviais”, pois de “amores atribulados” há muito deixei peneiras & penachos. Do segundo, percebe (exasperando-se) mais do que toda a gente o meu Amigo Joaquim J.C. – e não me refiro a “outros fados”. Do terceiro, vá cada Leonor a sua fonte.
    De resto, boutiques de pão & bitoques de cão.

671

Verão.
Portugal: país de pombos à espera das migalhas inglesas.
De resto,
antes invernosamente só.

672

Consumi a hora final da manhã hodierna
produzindo o 670, até julguei ser sábado,
só depois vi que não, que o sábado é ainda porvir.

Consumo agora com o 672 a hora última de luz,
já o Sol sangra seu laranjal naturalmente a poente,
é tépido o instante, ando de algodão curto pela casa.

Revi há pouco um pouco do meu amado Matt Marriott,
criação da dupla Tony Weare / Jim Edgar, grande figura
que na criação me ajudou à educação com ilustração.

Não se perde tudo na vida
Ah pois não
Só se perde a vida
(De)Pois então.


23/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 669

 


669

Quinta-feira,
22 de Julho de 2021

    E a voz de Jon Anderson é ar tornado luz.
       Pessoas como ele dão de si a presença inicial.
    Rumo à simplificação – voluntária ou não. Estamos todos, vamos todos. É como ficar sem tanta carga, manter só a que conta. Menos livros, melhores leituras. Tenho-me referido a isso nestes papéis. Onde não houver barulho, onde correr água limpa. Ir por dicotomias negociáveis, expedientes práticos de sobrevivência.
    Em releitura, tantos anos depois, de mais um excelentíssimo livro de Armando Silva Carvalho (1938-2017): LISBOAS roteiro sentimental (Quetzal Editores, 2000). A folha-de-guarda do meu exemplar tem duas notas. A segunda é: Leitura integral no dia 20 de Janeiro de 2003. A primeira: Rua 52, Leiria. Pontos fora da língua. 25/XI/02. De facto, tinha ido ao hospital local para que me retirassem, com cuidadinhozão, os agrafos têxteis da dita língua. Sim, a língua-língua, este animal sangrento & molhado que nos ocupa a boca em multiformes actividades. Acontecia terem-me feito, dias poucos antes, uma biopsia. Um médico amigo, tendo topado que eu exibia uma esquisita coloração branca em redor de certa úlcera lingual que me vinha macerando o juízo, desconfiou. Desconfiando, mandou-me a ser biopsiado. Lá fui, de tomates pequeninos como ervilhas murchas. Não era cancerígeno. Era um dente que me moía a língua, sem que eu me apercebesse, na mecânica da mastigação. Arrancaram-me o dente, problema acabado. Nesse dia de me tirarem os pontos pós-biopsia, comemorei comprando o livro de A.S.C. O título é justo: trata-se de um conjunto de poemas centripetamente atraídos pela bela capital do nosso País. Começa assim:

    “Que estranha visão terá de ti
    o rio que passa
    e ao qual os poetas inutilmente oferecem
    areias de ouro e de Byron?
    (…)”

    Vamos já, portanto, em dois únicos: Jon Anderson (é ouvirem o homem, percebem logo de que estou falando) & Armando Silva Carvalho.
    Nem só de Beleza se nos mostra opípara a mesa. Todavia, digo. Após o jantar, comido na cozinha sem pressa nem grande demora, entretive o olhar na máquina-de-salsichar-burros, vulgo televisão-à-portuguesa. Merda em todos os canais lusíadas: merda de locução, merda de notícias, merda de uso da Língua, merda de assuntos, merda de moralidade(s), merda merda merda merda merda. Desliguei logo. Pus os phones e vai disto: os Yes interpretando Then (em 1970).

22/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 666 a 668



666

Quarta-feira,
21 de Julho de 2021

    Tenho por certo pobreza não ser obrigatório sinónimo de miséria – de afim modo, abastança não é automaticamente riqueza; nem abundância, esplendor; nem fortuna, ventura.
    No primeiro parágrafo, minudências minhas – sem especial interesse para consumo fora desta casa. Minudências são coisa que me não escasseia. Uma mais: a memória é mais criadora do que acumuladora; mais fábrica do que armazém. Outra: há no corpo masculino certa parte (ou peça) que em tempos se fazia dobro mas agora se faz dobra – é a peça, precisamente. Como disse, não me falam máximas (inutilidades). Também o seguinte não é mentira: tenho entretido bem a clausura. Vi Jean Gabin. Vi o Tarkovsky de Nostalghia. Vi Adam Ant. Os meus óculos têm trabalhado, sim.
    Lá fora, no mundo tão mais vasto quão mor a demanda, estraleja o senhor Sol. Reixas apertadas, cerradas & abatidas. Em casa, uma atmosfera monástica, propícia a sestas de fármaca brancura. Fiz a minha até passadas as dezoito, sim-senhores. Folheei pintura, mormente da multissecular: é Beleza transdérmica, beneficia o sangue, não deixa pensar (mal de) outras coisas, gentes, situações, tumores sem lanceta possível.
    Este quarto parágrafo do diabólico número, dedico-o à terminação mais contundente, ou antes, conclu’contun’dente deste sabor a nada à boca do coração, pim, pim, pimpalão.

667

Filtro apropriado à desenvoltura do curso
Automático, enredado desperdício malsão
Cada dia a-haver é em si raro recurso
Não se escapa jamais à própria condição.

668

Se alguma vez foi o caso – já não assim é.
Nenhuma justificação a dar – e ao desbarato, muito menos.
Nem a próximos (-orientes), nem a distantes (-oestes).
Esta foi uma quarta-feira dotada: de calmaria mormente.
Uma pessoa aprende a ser pessoa, o processo dura uma vida.
Morre-se mais ou menos quando já se não pode aplicar o aprendido.
Não é grave – o que tem de ser, é; o que não tiver, não conta.
Hoje (falo já no pretérito, pois que desceu já a noite), hoje foi.
Partilho a existência do meu Gato, miro-o sendo-se.
Gostaria de proporcionar-lhe um quintal, erva, gafanhotos.
Não posso. Só posso isto. É o nosso mosteiro, este T-não-sei-quê.

Sem fim à vista, as diversas crises rotinam-se como neonormalidade.
A sanitário-viral (da China provinda, não o esqueçamos) segue matando.
A climática – já o disse, bem sei – só não me faz rir porque há crianças.
A humana escumalha – é redundância tautológica.
A humana excelência – não é redundante, é preciosa por incomum.
Vi o corvo, andorinhas excitavam o entardenoitecer, o último pardal.
Depois a tinta da noite tomou conta & recado deste recato contado.
Tudo configurando a novidade antiga, percebeis-me muito bem, bem sei.
As coisas-comigo já têm tripulação q.b.
As alheias, umas deveras importam – poucas; outras, muitas, não.
É assim que tem de ser, ninguém nos mandatou a pancuidadores.
Escusado resulta arregalar os olhos tipo bonecos-animados made in Japan.


21/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 665


665

Terça-feira,
20 de Julho de 2021

Não receio a nenhuma-importância nem a inutilidade de tudo isto.
Receio arrecear-me, iludindo-me, de importantes utilidades.
À vida ávida prefiro a calmaria resguardada de vanidades.
Mente a mente a si mesma as mais altas vontades.
Só m’arreceio de, isto percebendo, iludir-m’ind’assim isto.

20/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 664

 

© Susan Abbott

664

Segunda-feira,
19 de Julho de 2021

    Noite de temporal no filme. Casas de madeira de sofisticada construção. Madeira com cantaria, aliás. Árvores resistem nos elementos em moção – todavia, dois contentores foram já tombados pelo vento, parte das entranhas escorreu obliquamente para a calçada. Pela aurora, tudo ficará limpo, arrumado, devolvido à norma. Numa cozinha, mãe & filha partilham as tarefas. Já jantaram há muito, preparam o chá, os dois pires com fatia de bolo-inglês cada, seguem para a sala-de-estar, a filha liga o rádio, faltam dez minutos para o folhetim, acaba amanhã, a corda do enredo será hoje levada à máxima tensão. Tem como pano-de-fundo uma vilória piscatória no século XIX. Haverá ou não isso a que chamam crime-perfeito? Em outra sala-de-estar da mesma rua, um cavalheiro esfumaça de seu cachimbo. Já leu & releu o jornal, dobrou-o com cuidado, deu-lhe assento no topo da pilha à direita da poltrona. Acaba por não servir-se de um conhaque final, abandona o cachimbo no cinzeiro de porcelana, vai deitar-se, o quarto é no piso superior. Desta casa saiu há muito, batendo a porta, a mulher do fumador de cachimbo (“Ceci n’est pas une pipe”). Há muito: 1972, na semana entre o Natal & o Ano-Bom. Águas-passadas que, neste caso, ainda movem moinhos. O abandonado costuma chorar ao deitar-se, parece ajudá-lo a adormecer, tal ritual. A casa de mãe & filha é a cor-de-rosa. A do desquitado é a verde. Na amarela, a família é completa: homem, mulher, duas meninas, dois rapazes já púberes.
    Vão de andaina os anos: em renque, em fiada desfiada, sobre andas, em trajo e/ou velame completos, carreiros meãos & salinos, levando o pescado a terra. Já fui desta rua. Já não sou, já sou um não-desta-rua. Não tenho estado quieto: já dei 57 voltas ao Sol, não é brincadeira, 57 voltas ao carrossel-carrosSol.
    A mesma rua, novo filme – ou precisamente o contrário. O casal (ambos em segundas-núpcias) acabando mal: na casa escarlate, um tiro na cabeça da mulher, por cuja sobrevivência alguns hão-de considerá-la miraculada. Por homicídio-na-forma-tentada, o homem apanhou dez anos, seis dos quais chegou a cumprir. Uma vez solto, não volveu a casa, que fôra arrematada por um casal mais velho & muito mais manso. Noite seguinte, dia anterior.
    Vento dando-se chuva em arvoredo, música dessa fusão, de ponta a ponta a ponta da rua. Certa similitude claustral de árvore-coluna-árvore-fonte-árvore-átrio-árvore-céu. (Já-noite ou noite-ainda? Importa?) Contentores virados, esventrados, repostos no lugar, tudo limpo & lavado.
    (Mas talvez isto esteja escrito, perdão, fotofilmado, à sombra do prestígio do não-experimentado. É equívoco, é esquisito, é estranho, é estrangeiro. Verei no que escreverei.)
    É rua a que pode chamar-se terra-de-ninguém no sentido de entre-trincheiras-inimigas: pois cada vizinho é mais de si vizinho que do oponente, e trincheira cada pessoa com seus mortos, seus feridos, seus tão solitários vivos, sua fatia de bolo-inglês.

19/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 656 a 663

© DA.



656

Domingo,
18 de Julho de 2021

Figuras masculinas de gardénia à lapela
Cavalheirescamente viris em ronda
Través o pungente odor a resina do desejo
Vejo-as passando em sonhos mulheris.
E aspiro de tais sombras o rasto de anis.

Na mata entre páginas iluminadas
Aves pontuam livres a quietação
Da lâmina de água fulge clarividente
A cegueira forte, a paixão dominada.
Damo-nos a tudo, que nos troca por nada.

Com leite prometido a folha de mármore
Espera a jazente calmaria. Calma, Maria,
que ninguém nos tira a vez, nem à meia-noite
ao luar, José. Esparadrapa-se-nos o dizer?
Há que insistir, persistir – tem de ser.

657

É verdade que prefiro escutar a falar.
É mentira que eu seja surdo.
Absoluto é relativo, relativo é absurdo.
Cada um só cabe em si, ’té pode sobrar.

(658)

    (Sem lograr lugar ou lagar alternativos, revirei-me de avessos que nem sabia a direito tivesse.)

659

Não me bata, que eu leio Kawabata.
Não V. bastava um Bergman-Kurosawa?
Oh sobretudo, ó malta tão porreira,
não me chagueis com o Manoel de Oliveira.

660

Rasto inumerado
Rosto inominado
Resto ilibado.

661

    A Natureza aleija quando se vinga.
    O que temos visto? Fogo-água-terra – tudo sufocando ar.
    Os alegres rebanhos cagam no prato de que comem.
    É então que a Natureza aleija. Não magoa – aleija a doer.
    Aparecem no visor os noticiários, as caras-de-gesso.
    Isto na Alemanha, na Austrália, na inefável Califórnia.
    E de nov’-outra-vez-&-sempre na Serra de Monchiqu’etc.
    
    Não penso vender livros à gentalha, a poluta tribo humana.
    Dou os meus papéis em pão & arroz aos volantes.
    Uma rapariga-TV também anuncia a nova-literatura.
    Como quase/tudo/XXI, é de plástico que ela fala.
    De plástico – e de cor (còr). Não é antipática.
    Não é que seja antipática: faz tão-só frete às máquinas.
    As máquinas-editoriais às outras máquinas iguais.
    Antes aquilo da Corín Tellado, da Odette de Saint-Maurice, da Maria Roma, da C.F. Alves.

    Mas chega de liter’amargura. Desce o fresco do entardenoitecer sobre esta partida do mundo. É bom. É bom por enquanto. Por enquanto, nem incêndios desenfreados nem dilúvios sem arca nem pomba por aqui. Por aqui, só a vaga dolência (a que os analfabetos chamam poética & a que os sensatos chamam nada), a vaga dolência, dizia, dos sinos que dobraram por ofício & salvação da esposa de um senhor Lopes, lá nos dormitórios mais ou menos novos que fizeram na zona do senhor Valdemar, mais ou menos, onde eram os canaviais, pronto. Não, voltemos mas-é à liter’amargura. Voltemos:

    Se eu não tivesse, como tenho, Filhas
    & o mundo não teimasse em fazer mais crianças
    Então eu rir-me-ia alarvemente dos incêndios
    Dos dilúvios com Noé no desemprego
    Da Amazónia entregue aos brasileiros, sabeis como?
    Como uma faca-de-cozinha à mão de Édipo
    Édipo contemplando devagarinho o papá
    É um exemplo, digo isto para exemplo, não porque

    Não porque eu seja exemplar
    Mas separo o lixo, distribuo-o pelos contentores certos
    Não atiro para o chão excessos da minha matéria
    A não ser alguma escarreta mas para o mato
    Sempre dá de beber ao caracol
    & depois há a nova-religião, a da violência-doméstica
    Quão mais TV-directos, mais contágio por imitação
    É o que faz os retardados terem televisão (& fazerem televisão).

662

Alcandoro-me ao chão da terra-língua
para gozo dos meus colegas de turma
depois dos serralheiros-mestres na oficina
& até em casa para desconcerto do gato

& daqui não saio, daqui ninguém me tira.

663

Fulano acha-me malcriado
porque
lhe mostro a Língua.



17/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 652 a 655

© Cornell Capa

652

Sábado,
17 de Julho de 2021


    Se queres, sê espartano.
    Se queres, julga-te estóico.
    Olha, vai para o catano,
    masmarro lambisgóico!
    (Pensei mas não disse.)
    No decurso do convívio de antigos-alunos do Liceu, vi-me entre rapazes de súbito mecanos, perdão, decanos. Ou de calva lustral ou de esfregona capilar toda farinh’encanecida. Mais lentos no esbracejar sublinhados retóricos, de sílabas mais emperradas, soando estas àquilo de que julgo Vos ter já escredito alguma coisa, seja: sílabas chocas como a acústica das bolas de bilhar que molemente se entrechocam. Vi-me também entre rapariga’linha’s, perdão, rapariguinhas debaixo de boiões franceses, de cabeleiras pintadas à pistola por paneleiros de marca, perdão, de laca, dengosas como avestruzes e sempre agarradas à bolsa como as crias marsupiais.
    Era, como se costuma dizer do cômputo, geral – refiro-me à resignação, à acomodação, à redesilusão, mòlhada de redivorciados & de malcasadas, já avôs & bisavós algu/ns/mas, tudo presente, como a um velório indiferente por alguém insignificante, a um ágape jurássico cujo motivo teria de ser medido a carbono-14.
    Pareço-Vos amargo? Iludis-Vos. Adoro ir ao reencontro anual de Liceais da minha geração. Apareço invariavelmente principesco, invariavelmente Poeta, poucas cãs – embora sem BMW (escondo a bicicleta nos canaviais das traseiras do restaurante & as molas das calças na pasta dos poemas). Entre aperitivos fru(s)t(r)ados de merdas novas que inventam para roubar o álcool aos bebedores-de-bem, declino sem esforço toda a minha sabença-de-experiência-feita, que é praticamente nula pois quase não saio de casa desde que a pandemia me matou a assistente social dos serviços do desemprego.
    Tomo notas mentais, não confundo ali o Miguel Arcanjo com o arcanjo Miguel das litografias, nem o sábio António José Saraiva com o caducado José António filho dele, nem a maviosa & às vezes maravilhosa Sophia com o boca-de-sapo seu filho, Miguel também e mais Sousa e ainda por cima Tavares. Dos Prado Coelho (já V. falei do Eduardito, eu sei), para mim só valia o velho Jacinto. A belida me não faz ver velida onde ela não é nem mora.
    Foi também de um dos convivas que me surgiu, qual equívoca epifania gasosa, a evidência de já não ser o pote-de-ouro que nos aguarda ao cabo do arco-íris – mas sim alguém orgulhoso de levar no cu. São os LGBTempos – e ou se alinha que-sim-senhor-que-não-senhora ou então somos homófobos e ou ajoelhamos a simbolicamente ajudar o polícia branco a estrangular o senhor de outro matiz ou então somos racistas & coiso. Esse conviva (nome fictício, por causa das merdas) era – e é – o Tó-Zé de Alpendurada (estás-me-a-levar-nos-cornos-não-tarda-nada).
    (Tive sempre tempo de ter tempo a perder. Até agora, pelo menos: tenho consulta em Agosto por causa disto do/no coração & daquilo no/do pulmão-direito.)
    Entre a Maria dos Anjos e o Carlitos Botelho, intervim & resolvi. Eles teimavam com a porcaria da “nova” ortografia (ponho aspas no “nova” por não precisar de aspas a velha… ignorância). E cois&tal. Tinham uma dúvida quanto ao “tracinho”. Olhai: se se disser vigésima primeira vez (sem hífen entre vigésima e primeira), significa-se que a primeira vez aconteceu vinte vezes. Porém, se com hífen, é a vez n.º 21 de algo ou alguém ou cois’assim. Saí de entr’ambos em pura glória & quási olor de santidade.
    Acabado o bródio (refiro-me ao ano 2019 d.C., pois no ano passado & neste corrente houve nada-para-ninguém, China rules über alles), deslabirintei-me entre os BMW ricamente estacionados na gravilha do pátio, descanaviei a minha bicla e andei por aí, feito doidinho e com um pedalar que alguém mais sagaz descreveria como “um bocadito apaneleirado”.

653

    Esguelhamente embora, certa(s) parte(s) da entrada 652 são devidas à releitura (deliciada, claro) que ando fazendo do quinto tomo de À La Recherche du Temps Perdu, mormente do segundo dos três capítulos que enformam o dito volume do opus-magnum proustiano. Trata-se, muitíssimo sinteticamente, das cenas que envolvem o rompimento dos Verdurin com o Sr. de Charlus, incluindo as perorações hipócritas & cínicas do barão sobre a homossexualidade (dos Gregos – ou até de antes deles – ao presente narrativo). Pronto, assunto arrumado.

654

    Mal-grado certas inconsistências que a lucidez autocrítica não disfarça, o (único, que eu saiba) caminho é, figuradamente, em frente. Prefiro criar a inventar. Prefiro inventar a mentir. Gosto de mentir quando estou sozinho, não quando me vejo em companhia de gente que merece pragmatismo, ordem, seriedade, honestidade, salazar, salazar, salazar. (Escrevi minusculamente de propósito; mais: escrevi a tripla enumeração itálic’onomástica do borra-botas-de-elástico-de-santa-comba-dão mas pensando, italicamente também, foda-se, foda-se, foda-se). Mas adiante, que o Pólo Sul ainda é distante (e já veremos a raiz desta flor retórica).
    A corrupção à portuguesa é um insulto a todo o cidadão deste País que não corrompa nem aceite ser corrompido. Só que o (muito) dinheiro pode muito. Daí que me não surpreenda se (espero que não, espero bem que não) as correntes montanhas processuais parirem ratos. Ratos, já as montanhas movem: levando-os a peitar a barra. Mas não me surpreenderei se o insulto devier indulto. A ver vamos, como diria o António Feliciano de Castilho ao Stevie Wonder.
    Prosseguindo o folhear do jornal, uma destas ocasiões, indo eu no autocarro para a Baixa, dei por mim pensando em orquidómetros, como quem vai rezando contas (elipsoidais, claro). O calor escanzela-me, torna-me oclusivo a comezainas, não me saúda, faz-me mal. Todavia, tinha coisas que tratar na Cidade, fui-me a elas, tratei-as – e pisguei-me de volta à choupana para me despeitar & me descuecar à mercê do cata-vento eléctrico na velocidade-2. No autocarro de volta, para azar da geral, certo velhote de opereta-bufa (é o termo, malta, é o termo) ia subrrepticiando ventosidades cúsicas, daquelas que entaramelam o falar das nalgas, selam a castanho a fralda & indispõem o resto do mundo contra o mundo dos restos. Tresandava pivete que só V. não dou a cheirar por ainda não terem inventado o braille-das-ventas. O velhote saiu ali à Casa do Sal. Estouraram gargalhadas mal sufocadas, impropérios maliciosos, insultos (sem indulto) à terceira-idade em particular & à peidorrice em geral. Já vamos na segunda metade de Julho – e foi esta, talvez, a minha segunda felicidade do ano.
    Por esta altura, perguntais-Vos, Vós a Vossas Mercês mesmas, por que me exprimo assim – ou por que faço assunto de tão rasteira (é o termo, malta, é o termo) ocorrência. Ora, se assim me exprimo – é porque posso. Não, não basta querer. Podeis crer que não.
    Chegado a outro ponto da matéria abstracta da mente-work-in-progress, tenho aqui esta nota a lápis: Temos tanto de Amundsen quanto de Scott. Um farrapo de papel caiu ao tapete quando eu esfuracava caixotes à procura de um (belíssimo) livro de Jorge de Sousa Braga: O Poeta Nu (Fenda, 1991). Encontrei, felizmente, o voluminho. Foi quando caiu ao tapete a nota alegórica (vá lá, metafórica, o caraças de qualquer figura-de-estilo que faça estalo). Mirei-a, à pobre: sozinha como um cão (ou um carteiro) à chuva, descontextuada, órfã. Tive mais pena dela que do que (des)fiz da vida. Disse-me-lhe: boto-te no Parnada Idemuno que é um mimo (mimo o botar, não o diário). E prontes, cá mora ela, a flor retórica de lá cima: botada ao pólo-sul do meu desnorte.

655

Emirja alguém de trevas rumo a novas escuridões
mas enquanto o faz o diga – e, dizendo-o,
com clareza o faça, que, merecendo-a, claridade
logo começa. Assim se faça, o mais às claras.

Dito de outra maneira, mas o mesmo talvez,
é de cada ser o ser ou não, o deixar-se disso ou o insistir
no privado existir, mesmo quando em público,
mesmo quando aos elementos exposto como a rosa.

Selvagem condição permanece adentro sem esforço,
por fora tudo é polidez, IRS prestado a tempo & horas,
viagens de era-uma-vez tem-nas muitas a cabeça,
que à noite alguém deita exausta sobre pano por lavar.

Cara feia como o lixo no chão é a de quem a não dá
à ferocidade do juízo alheio, esse covil de pandorgas
sempre tão prontos a chamar formosura ao próprio espelho,
mas quando se vai a ver é rachado que está, dá duas caras.

PARNADA IDEMUNO - 651

© DA.

651

Sexta-feira,
16 de Julho de 2021

    Peniculário dos dias, saio hoje
    à caloraça doida vespertina.
    Só o lio fraternal me traz à rua,
    ardendo quieto (e tão mortífero)
    o paterSol doidinho da cabeça.
    Lá saí, pois. Estufa global, forno total, crematório bestial. Do bolso esquerdo-frontal das calças, escorre-me perna a baixo toda uma nomenclatura-numérica: derreteu-se o telemóvel, fica o chão pingado de antónios, paulas, joões, marias, 91s, 96s, o diabo-a-quatro-pintando-o-sete. Era um tm ainda carregável a gasolina como os isqueiros (de livrete licenciado) dos antigamentes. Mela-se-me & cresta-se-me o coco-cocuruto craniano-mioleiro. Dardeja nele o inclemente astro-régio. Ocorre-me que nem sempre os antónimos equivalem a diametrais oposições e/ou desavindas contrariedades – pois não é o perigo-de-vida o mesmo que o perigo-de-morte? Antes de aforar o palácio, adentrei o sanitário. Da gaveta de mèzinhas, extraí determinado unguento com largo espectro de acção cicatrizante – o Gato arranhou-me o costado da mão-dextra. Ora, opinei sempre que cautela & cautério são para usar a sério, raciocínio que se me volveu proverbial sem-querer.
    De Celas (conventuais)
    a Santo António dos Olivais
    deu-me para, suspirando,
    redigir, à antiga, Mãi
    – cujo ditongo é naturalmente ai.
    Depois, tive de maluquinhar-me de solitária galhofa: a rádio evocava a figura do já defunto Eduardo Prado Coelho. Não me ri de ele já ter morrido (1944-2007), claro que não. Ri-me porque nunca para mim houve maneira de, vendo dele fotografia ou lendo dele qualquer frivolidade pastichada dos franciús, desassociá-lo do adjectivo com que o Namorado de Ophelia ferrava as cartas de amor.
    Cheguei ao meu Irmão, estive meia-hora à face dele, regressei partido ao ponto-de-partida. É ora noite feita.
    Trabalha, como nas narrativas mais breves de García Márquez, a involuntariamente pegajosa ventoinha eléctrica. Todo o dia, persianas abatidas como pálpebras exaustas. Agora, uma pouca de ar roçando a mornidão suada. Duche frio, brusco, retemperador. Cama, lendo o Brito Camacho de Ferroadas (de 1932 – dois anos antes de sobrevir-lhe a morte, sendo as datas dele: 1862-1934). Depois, Proust, releitura do quinto volume da Recherche. Calor que nem lençol suporta. Na Alemanha, na Bélgica & na Suíça, bem pior é a cena: inundações pluviais, mortos & desaparecidos em barda, o diabo.
    E T.S. Eliot lido por Jeremy Irons & Eileen Atkins (The Waste Land)? Maravilha. E idem por Alec Guinness (Four Quartets)? Maravilha.
    Saio. Ou: saio mas para dentro.



16/07/2021

PARNADA IDEMUNO - 650 - I a VIII (com o III incompleto)

© Edvard Munch



650

Quinta-feira
15 de Julho de 2021

I

    Os julhos foram-se embora como comboios sem volta.
    Nem freixos sentinelam já o canal, esse mesmo a que vinham beber as leiras, animais horizontais povoando o deserto.
    Onde a pessoa não é, é o deserto:
    o pior deserto é porém o pessoal, aí onde se fica
    sem reflexo nem reflexão.
    Cândido diz-nos:
    – Quem janta vinho, almoça água.
    É o Povo a falar por boca-língua-dentes dele, pobre rapaz.
    Enerva-se Nilo:
    – A estupidez é a mais viçosa das ervas-daninhas.
    Mas não é contra Cândido que se enerva ele, sim contra o predomínio dos idiotas-da-turma subidos à ponte-do-navio.
    E insiste:
– A burrice é capaz de encher a oficina do sapateiro e os museus todos às segundas-feiras.
    Mas o que deveras o exaspera é cada maçã reiterar em si a condição de desdentado, não pode, há já muitos anos, morder a bela pêra-de-inverno da avoenga quinta, pois que à natural ferradura dental sucedeu a coroa acrílica – e, aos olhos, cus-de-garrafa deformando em fundo-de-poço a curvatura ex-arcoiridescente da nitidez juvenil.
    É úrgica & cirúrgica a cura do vinho pelo chá, do absinto pela tangerina espremida.
    Ai os julhos, esses desavindos connosco julhos!

II

Alberto, ó mais sozinho da família, ó mais sozinho dos homens
Não há (não hei) poema que te compense nem por aproximação
Teu caramulano vertical pedregoso afinal pessoal deserto pleno de espectros
A perna que te cortaram – ora andando, sozinha ela também
Mas por um mundo que te não é dado, a ti, andarilhar.

Tribulação inumerável por aritmética razão de singela, só o Tempo
Só o Tempo pode redimir seres a sós o tempo todo
Violáceo crepúsculo molha o teu coração encortiçado
Ao menos não eras cego, coxo sim, mas antes isso
– há-de dizer quem nunca às cegas tropeçou.

III

Os outros meses foram atirados ao Nada como palha ao vento
Confiarei que em algum lado hão-de eles poisar, incólumes ou não?
Decerto não, não é de confiar o que é, o que for, o que não
Também não importa, importa sim abordar a densa mata do a-saber
Muitas vozes me prestam atenção mesmo quando fisicamente acompanhado
Se há instrumento para tal atenção, ele é cada autocarro desta Cidade
Desta Cidade cada autocarro cheio de destinos afinal todos o mesmo
Sacos, encomendas, alegrias adolescentes cerce rasouradas em filas para tudo
Velhas senhoras clonadas de pergaminhos avoengos iguais a elas
Velhos homens quebrados como canas por joelhos que foram os meus
Carecas, gordas, modernos, clássicas, românticos, conceptistas, calças rasgadas
Agora é moda andar de roupa rasgada, antigamente era porque tinha de ser
Estrangeiros altos como palafitas lacustres lourejando a nossa morenidão
A nossa morenidão afrojudiomoçárabetc., o nosso meridional-sem-norte ó Rosa
Ainda assim fomos por aí singrando & sangrando aos mares agrestes
Querem agora remendar a História em nome das calças rasgadas
Puta que os pariu, a eles & aos que estraçalharam a ortografia
Mas, dizia
Julho & os demais meses escoaram-se enfim pelo ralo da idade
Cada dia agora é um pedaço roubado ao calendário improvável do esquecimento
Do esquecimento que cada um, tendo siso, deveria ter por certo
Atenção, isto não é negativo nem positivo, é ajuizadamente neutro apenas
Farto-me de rir de cada vez que moralizam isto, repreendem aquilo
E quem se ri, faz muito bem, o tédio é mortífero, quem tiver dentes morda
Quem não tiver, merda
O tempo foi já de outra adesão ao real, ao magnífico incompreensível real
Não o real dos megajulgamentos da corrupção, mas qual julgamento
Mas qual corrupção, isto aqui nunca foi terra disso, ou então
Ou então nunca foi de outra coisa, apontai-me lá um Português que
Um Português que se pudesse não faria o mesmo
O mesmo quê?
Ora, desenrascar-se
Ter acesso ao tacho
Chegar a sardinha à sua brasa
Gamar a sardinha do outro da brasa do outro
Deixar o outro com os pés de fora da manta
Por aí além etc.
Sempre quereria ver o que(m) me apontásseis
Mas, dizia
Era no Verão, Julho era segregado pela autoridade solar da Mãe
Íamos fazer da Figueira da Foz o paraíso na terra o éden no mar
Infinito, o ouro-areal vinha da Noruega de Buarcos e chegava à Austrália do Cabedelo
A casa em que mais ficávamos era na Rua Maestro David de Souza
Eu em pequenito teimava em enganar-me
Rua David Maestro de Souza Rua David Maestro de Souza
A dita casa ainda lá é, a Mãe é que não, o Julho é que também não
O próprio Atlântico se foi embora, talvez para as Américas
(...)

IV

    Edvard Munch (1863-1944) auto-retratou-se na companhia afectuosa de dois cães. Fê-lo aí por 1925/26. Ésquilo teve mais sorte: nascendo & morrendo circa 525 a.C. & 456 a.C., foi precisamente do cristianismo que se viu livre. Léo Ferré (1916-1993) é que soube como cantar Les Artistes. Eu faço o que & quanto posso, embora a mais me sinta obrigado.
    Cidade-Rosa é a de Claude Nougaro (1929-2004).
    Matéria dispersa, estão agora onde estavam antes de por seus pais & mães concebidos, os Artistas: matéria dispersa, devoluta, de outra organizações constituinte.
    Ferré, erva ao sol.
    Nougaro, floco de espuma.
    Ésquilo, sonho de uma arrumadora de plateias.
    Munch, uma gaivota aos gritos.
   
V

Cequim João, de Donceixe, velho maduro, pronto a ser regado.
Conversei com ele – fui mais ouvinte do que falante, na verdade.
Contou-me de suas andanças: Paris, Strasbourg, España, Coimbra.
Homem para o mundo, trabalhador tenaz, sempre ajuntou algo.
Viúvo há duas décadas, não, dezassete anos, sim, dezassete.
Duas filhas, como eu; mais velhas elas, naturalmente.
Naturalmente, porque Cequim faz 79 este ano, lá chegando.
Escutei-o como deve ser: não interrompendo, pedindo mais nas pausas.
Os anos enxugaram-no, amadeiraram-no: seco, rígido, com nós.
Prontinho para ser lume & para devir cinza – mas não hoje.
Não hoje, que se vê alvo do dardo poemático, indiscreto, este.

(VI)

(Roman’umerei as produções de hoje porque-sim.)

VII

Esses dois homens de que falámos, David & Alexandre, já não
atiram de luz desfeita & de seus corpos a sombra ao chão.

VIII

    Um Amigo disse-se-me preocupado com a corrente situação em Cuba. Mais me disse de aspectos do seu quotidiano, suas leituras, sua maneira de aproveitar o dia & a luz deste. Riquíssimo – por até ter horta a que vai buscar (mais fresca, não pode ser nem haver) a salada do almoço. A esse Amigo (que o é, com a devida maiúscula), respondi:

    Viva, Amigo.

    Não me tira tempo algum. E tenho todo o interesse (genuíno) em saber de si e do seu tempo. Claro que a situação em Cuba me preocupa também. É dos derradeiros redutos onde a utopia ainda floresce. Não sei como, não sei quanto mais. Os monstros moram perto: e este que lá está agora (USA, claro) é apenas menos burro do que o outro. Não é menos mau: é norte-amer(d)icano na mesma. Todavia, a internetização devora tudo. Cortando-lhes o direito ao pão, não faltará quem lhes faça parecer de borla a manteiga. Enfim, a ver.
    Quanto à leitura que me faz, agradeço-lha muito. Escrever não é martírio nem caminho-andado para santidade alguma. É uma coisa solitária, sim, mas assim não é sozinha.

    Grande abraço do,


Parnada Idemuno


Canzoada Assaltante