O fotógrafo desconhecido é como o pintor e o escritor. Fica do falso lado de cá. O lado de cá do observador que existiu talvez, talvez resista, talvez não desista: o apreciador de quadros, o folheador de álbuns de família, o leitor. Tantos anos depois (como antes), não importa muito. Os cavalos, sim. Importam.
Relinchavam como instrumentos fundos, plenos de oxigénio e música pulmonar, de dentes poderosos que arrancariam o polegar da mão que oferecesse a maçã. Entretanto, os verões esvaziados como frascos de geleia. Custa lavar a memória da pureza enjoativa de seus restos de geleia. Ainda aqui não entraram algumas palavras faladas, sinos silábicos na boca de bronze. Por exemplo, nesta situação: eu era o mais novo, não pude entrar na batalha de pedras e os rapazes da quinta dos cavalos não fotografados. Disseram-me que eu não podia ir. Segui-os de pertolonge pelo monte. Eles emboscaram-se. Os outros cheiraram a presença deles. A primeira pedra escreveu no ar um risco mineral. Um dos irmãos acertou em cheio num cântaro de barro, deflagrando uma explosão de água e cacos. Eu filmava, exaltado por esse vento de guerra que sempre colherá frutos no pomar humano. Os cavalos relincharam, electrizados, prontos para pisar sangue. Pedras, torrões, lascas de tijolo, de cá para a quinta, de lá para nós. Era a glória. Isto já não pode ter sido em1967, tem de ser depois. Talvez 1968, Magritte já morto. Pedras que cantavam como sonhos de cavalos. Um dos irmãos, de tronco nu, em chamas. Aquilo desfez-se, como tudo. No regresso, escapei à punição paterna dos guerrilheiros. Os irmãos foram sovados, eu era o menino inocente.
Um dos inimigos era João. Tinha relações na palha com uma rapariga que servia. Poucos meses depois, embarcou para a guerra africana, a verdadeira. Teve um acidente grave, lá. O camião verde virou-se pela terra vermelha, um soldado morreu, ele bateu de cara em ferros, as cicatrizes pareciam riscos de palma da mão. Regressou com uma vaga aura de herói. No Verão do regresso, carregou fardado o andor da Senhora da Piedade, mas o foguetório da festa acordou nele o terror dos morteiros, de modo que largou o andor e atirou-se ao chão, aonde a Senhora da Piedade foi ter com ele. Ainda era a guerra, para ele.
O sol era a totalidade: tudo era feito de luz, branca e amarela tinta que só deixava sombra nos arredores da memória, isto que agora falseio para ter como suportar a orfandade do Estio. Eu não sabia que via, eu não tinha ainda aprendido a falsear. Sem ficção, não é possível aceitar viver. Não é, cavalos?
Sim, mas perdura, a frase dos irmãos emboscados quando me descobriram: “Queque táza quiafazer, carago?”. Eu estava a ver e não sabia que reveria. ‘Verão’ é o futuro de ver para eles, comigo. Quando eles estavam todos e eu os via e era o futuro a acabar-se e eu não sabia.
Antes (como depois), esta é a vida, ainda. Miga-se cebola miudinho. Esparge-se azeite, o mais santo óleo popular. Carne pobre ao cubo é deixada tombar onde o tomate sangra, coração aquoso que contamina a folha de louro, o alho dental. Água fervida separa as hostes desavindas, irmanando-as depois num suco comum em que o arroz pode inchar pontuado de ervilhas. Entardece, a brasa do Verão adormenta o muro do pátio-estádio, o canavial e as silvas, como um palácio de ratos, guardam o frigorífico apodrecido, o sofá de napa encarnada que o vizinho trocou por outro sofá de napa ouro-palha. Isto é o tempo a passar, o calendário de Jesus evangeliza a cozinha de paredes de azulejo, quadrados 15x15 passíveis de registar tantas palavras cruzadas sem solução no próximo número. Quéque toua quiafazer, carago.
20 de Junho de 2004
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