28/06/2013

Rosário Breve n-º 315 - in O RIBATEJO de 27 de Junho de 2013 - www.oribatejo.pt



Fala um pobretuguês

A vida – ou é politécnica ou dá em ser chilra como as águas de bacalhau. Já quanto a tal não engordo o bacorinho da dúvida. Por teologia portátil, sou tão-só um não-católico praticante. Não sofro Deus lá em cima nem temo do Diabo o baixio. O que se acha no fundo de cada copo é o desencontro. O desencontro e o desencanto, que o retorno à sobriedade pune e agrava.
Longamente esperei Junho – para isto. Isto sendo: na abcissa do paladar, o abcesso do couro molhado em a malvasia da melancolia. Isto é um País que nem Junho melhora. Deve ser porque a minha doença se chama Portugal. Ou Pobretugal. O amor é uma doença, ninguém com dois dedos de testa e duas unhas de coração raciocinante (m)o negará. Padeço de me serem portuguesas, ou pobretuguesas, a vida e a condição. Acontece que convalesço mui mal de tal enfermidade. Entardenoitece-me o espectáculo reiterado da estupidez mineral de um ex-Povo. O nosso. Portador embora de uma Língua superlativa e como nenhuma outra milionária de sílabas do mais fino quilate áureo, multissecular já, a Malta continua a dar o crânio por mesa de onde lhe comem as papas. Entenebrece-me que os mandadores planetários (amailos seus lacaio-caudatários locais) possam impunemente condenar a comum gente a trincar areia por pão. Por extensão, desfanica-me a coragem que o meu País se veja, à maneira titular de Irene Lisboa, com uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Entanto, a terça-feira para que renasço, 25 de Junho, é de uma limpidez prístina que até dói. A Luz é maiúscula como um avesso de Lua – e de redundante quididade. O esplendor é prodigioso qual um trecho camoniano (um qualquer). Como vela à bolina fresca, a aragem empluma levezas de pele que se dá ares. Fragrâncias de limoeiro confirmam da passarada a condição de porta-perfume. Tudo se aguarela muito, tudo se me afigura recente de si mesmo. Junho floresce perigosamente como a esperança. A esperança seja do que for. A esperança que é perigosa por consistir em usança da espera. Mas esta Luz ajunhada, esta claridade que dá perfeitamente para perceber, por essas ruas & praças, quais os cônjuges que pela noite se refizeram eroticamente sudoríferas branduras e quais os que não.
Despertar para a legibilidade humana sempre me permitiu, até hoje, a não, por assim dizer, d-existência. Nasce-se com defeito e morre-se perfeito. Há quem se minta o contrário. É talvez porque a morte torna anterior até o futuro. E porque ela já (nos, a todos) começou nos lugares onde estivemos e a que não voltaremos. É por isso que tanto faço por voltar. Voltar por voltar. Voltar para viver. Ainda. Um pouco. Mais. Ainda que não física ou geograficamente, voltar para e em frente da lembrança. Tenho (temos todos) uma máquina-do-tempo para o efeito. Chama-se Memória.
O amor é cego.
A memória é o cão do cego.
Assim pude escrever, resgatando-me, mercê deste dístico, há uns poucos anos e em sítio e para gente a que não voltarei, de uma manhã parda, vivia eu então numa merdaleja qualquer certas minhas horas más de anos não bons.
Fora de portas, a Realidade rosnava ameaças peremptórias: pobreza, desemprego, álcool a mais, fins-de-linha. Ainda rosna, mas retorquindo-lhe lhe vou, a instantâneo prazo, em, por assim dizer, r-existência. Escoro-lhe de livros bons as horas más. Esturrico-lhe de versos tónicos as veleidades materiais. E desminto dela, em paleta arco-irisada, o pretobranquismo de suas práticas e feias fauces.
Estragou-se-me ontem o telemóvel, não tenho dinheiro para outro e não quero saber. Quem quiser falar comigo, que me escreva. Outra coisa não tenho feito estes já tantos anos todos. Tenho andado mais macambúzio que de costume por causa de um documentário que há dias revi pela TV. Era sobre a breve vida (mas perene obra) de um grand’enorme artista: Mário Botas (1952-1983), português da Nazaré. Morreu aos 31 anos, como o meu irmão Jorge. Mário e Jorge gostavam ambos de Egon Schiele (1890-1918). Outro que morreu tão novo.
Por contraponto, acabo saudando o ter vivido já os meus 49. Ninguém mos tira, por mais torçam Deus e o Diabo os respectivos rabichos de saca-rolhas de bacorinho. Assim contra os canhões marcho, afinal, no esplendor de Junho, se não de Portugal.

20/06/2013

Rosário Breve n.º 314 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt

Vai devagar antes que tomates alguém

Não foi ainda desta que me fiz presente na sempre aparato-grandiosa e scalabitana Feira Nacional de Agricultura (FNA). Não por culpa da Organização mas por causa da minha matripatrimonial senhora, que pouco me deixa sair de casa. (A não ser por escrito – embora uma só vez por semana e só até 3500 caracteres em página última. Misérias suaves, enfim, as minhas. Adiante.)
Por modos que não fui à já hemissecular FNA (acrónimo a que só falta um C final para vender best-sellers e cêdêvêdês com fartura ou um T terminal para homografar a estadonovista antecessora do INATEL que Deus tem). Não fui eu mas foi o Portas, o inefável Portas, o cândido Paulinho, esse exímio fandanguista de arraiais, esse incansável e quase lúbrico osculador de peixeiras, esse ASAE bonzinho que mais depressa caça um voto à viúva zarolha dos tremoços e ao cigano contrafactor da Benetton de Avintes do que o Diabo se esfrega o terceiro-olho à Lobsang Rampa. A falta que lá não fiz, fá-la-ia o adocicado PP, ex-enfant-terrible do gorado e não saudoso Independente, fotocopista licencioso e multiusos de documentos da Defesa Nacional, hoje tão depressa feirante da diplomacia como amanhã diplomata das feiras. O preclaro Portas! Utente malapato e malacafento de uma “clareza” no explicar-se chapeada a rebites de onzeneiro judeu à la Gil Vicente, beato como um guarda-redes de mesa de matraquilhos em salão paroquial, o PP do PP está para a sinceridade como o Gaspar para a rapidez fonética, o Relvas para os estudos, o Crato para uma decente carreira docente, o Alvarinho para o livro Anita Procura Emprego, o Coelho a cantar a Nini, o Soares para a mocidade (portuguesa), o Seguro para a maturidade, o Alegre para a poesia a sério, o Goucha para a Playboy e eu, nem que uma vez só na vida, para a FNA.
Não fui. Perdi eu. O mais longe que fui, foi ali à Rita, primeiro, e à Rosa, depois. Ambos os estabelecimentos são de boa índole cafeíno-licorosa, ambos graciosamente oferecem a leitura sempre auspiciosa do purulento Correio da Manhã. A propósito deste periódico (recorrente tripulante, aliás, da nave da minha mundivisão), dia 15 passado foi um bom dia. Na rubrica Mundo Louco (súmula, afinal, de todo o jornal), auferi a alvíssara de não ter ido à FNA. Era a páginas 29. Um alegado poeta colombiano chamado Brochero (pois…), frustrado com a indiferença que em sua/dele nativa América do Sul lhe devotam ao respectivo escrevinhanço, propunha-se fazer uma viagem à Europa no intuito de divulgar o seu/dele livro mais fresco, uma decerto pataratice intitulada “Poesia pela Paz”. O problema dele era o que o nosso é: dinheiro, nicles. Vai daí, no propósito sempre louvável da angariação de verba pró-verbo poético, lembrou-se, o palerma, de leiloar os próprios testículos. Sim, as próprias bolsas gónadas. E isto a partir de uma licitação de coisa de 15 mil euros. A sete mil e ½ o guizo, portanto.
Notai, meu fiel leitor e deslumbrante leitora minha, que bem mais bocejo eu do que pasmo, na idade não ínclita mas madurota já a que já cheguei – e que é de apenas menos um do que os cinquenta anos nesta edição festiva e justamente celebrados pela FNA. Mas perante coisa assim, confesso, pasmei. É que nem dá para gozar. (Ou dará?)
Pacificou-me todavia uma arte que mui hei desenvolvido até ao presente hoje-dia: a da contrastaria.

Contrastei assim: para publicar um livro, posso não ter os tomates provisórios do Brochero, mas também de nada me adiantaria, para efeito de me ver em prelo e escaparate e JL e tudo, cercear-me a virilidade dos jardins-suspensos ligeiramente refrigerados na sub-reentrância das axilas de baixo. Ou seja: nem cortá-los para pública haste, nem ter ido ao 10 de Junho a Elvas, efeméride e sítio onde o senhor Presidente da República, discursando, também se pôs a falar de uns tomates que naquele certame em particular não havia, como os figurativamente não há no resto do arraial político deste eunuco País.

13/06/2013

Rosário Breve n.º 313 - in O RIBATEJO de 13 de Junho de 2013 - www.oribatejo.pt



Exemplares (&) portugueses

Estou certo de que o farei para o resto da vida. Digo: a observação avulsa de exemplares portugueses. Em pessoa(s), claro. Ruas & Cafés constituem as torres-de-vigia ideais para a consumpção do mirone observatório. Revisto-me, para o efeito, de discreto vestuário (cinzentos, castanhos, azuis obscuros) e ponho-me a receber de boca fechada (em cujo imo se abre a Língua) o aparato mundial à escala local.
O primeiro exemplar de hoje é uma febra pequenita de seus/dela cinquentas e picos. Ardem-lhe por faces duas rosáceas sanguíneas, a que presidem uns olhos aguados e tristolentos amaila cera amarfinada de umas orelhas pingonas e ratiformes. Inquiro dela em sede da Rosa do Colonial, que dela me garante a bonomia pessoal, não obstante certa vocação para o encornanço de quanto macho lhe logrou cravejar até hoje (até ontem mesmo, digo) a (de)posição horizonte-ventral. Chamemos-lhe Dina. Dina Men.
O exemplar segundo é um ronceiro barrigudo de pelagem arbustiva (peito, barriga, pulsos, sobrancelhas, pezunhos) com muitos anos de França mas nenhuns de Voltaire ou Prévert. Arca-encourou umas milenas jeitosas. A primeira coisa que fez no retorno definitivo ao torrão pátrio foi contra o torrão pátrio: votar no Cavaco, passando depois a eleger os seus (dele, Cavaco) derivados, incluindo os do PS. Usa botinas de elástico preto envernizadas a cuspo e boné à Pedroto. Tem mais q.b. do que q.i., pelo que investe em tremoços o que pelo mesmo preço lhe ficaria em camarões. Chamemos-lhe nomes.
O terceiro espécime, encontro-o sem surpresa nem alarde ao espelho do lavatório do Café. Finge um olhar que já tive e de que só me sobraram os olhos bagáceos e piscos. Conta-que-Deus-não-fez, este n.º 3 arroga-se colunista encartado, arriscando em verso o que lhe não sobra em prosa ou raciocínio fundamentado. Veste todavia com razoável discrição: cinzento, castanho & obscuro azul. Chamemos-lhe Vazdeluiz.
Servirá este penúltimo parágrafo de recensão sinóptica ao motivo vero da presente crónica: ser português tornou-se, de vez, um ofício triste. É verdade que nos barbeiros ainda o Jornal de Notícias serve de evangelho, mas a delícia porno-rosa do Correio da Manhã é que enxameia os Cafés e as almas de uma enxúndia crápulo-criminológica cuja suma nadice é homiliada aos domingos por esse portento da vacuidade Moita Flores chamado (sempre a páginas dois). É por igual verdade que a manjericação santantoninha perfuma de assada sardinha o País que sobra de Lisboa, a Macrocéfala sem Cabeça, mas o mais é a maltosa de aquém-Aveiras e de além-Barreiro ter de lhe(s) pagar as Expos, as (a)Fundações Soares e afins rendimentos máximos garantidos. No fundo & por cá, tudo é verdade, a começar pela mentira. Nisto, o parágrafo cede vez & voz ao epílogo aliás discretamente preparado: o trocadilho em tríade para bom entendedor. Esta porra toda para que:

nem isto Portugal, nem eu Camões, nem ela Dinamene. 

06/06/2013

Rosário Breve n.º 312 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt

Carlos, Ionesco e N’Dinga

Os livros bons são os que procuram (e encontram) gente que coincida com eles. Há anos que porfio as estopinhas para ser capaz de um – até hoje, porém, nem um dos que já fiz ao desbarato dos anos me trouxe população a suficiente para uma matraquilhada completa: a minha carreira por assim dizer literária tem sido jogar sozinho ao varão da baliza e ao idem do ataque. Cheiro a óleo e a pano de desperdício, mas coincido comigo. É justo. Mas.
Mas, aqui há dias poucos, aconteceu-me uma epifania gentil. Foi no Café Colonial (o da Rosa, vós sabeis, aquele ali além). É lá que me dedico às minhas três principais tarefas: escrever, escreviver & escrebeber. Cada uma leva às outras duas. (Posto assim, parece magia – e é-a.)
Foi portanto no Colonial da Rosa. Tinha eu acabado de revisitar uma frase portentosa de um gajo romeno chamado Ionesco: “Cada um de nós é o primeiro a morrer.” Senti-me logo coincidido. Verdade. Um gajo nasce como toda a gente, mas morre só como só um. A vida é tipo Maria-vem-como-as-outras. A morte faz-nos príncipes, aniversariantes do mesmo eterno dia. Pena que tal palaciana glória dure tão pouco, pena tanto gás para tão pouco champanhe. Mas adiante.  
Foi então que ele entrou. Chama-se Carlos. Cavalheiro freguês, há bem mais décadas do que eu, do Colonial, é de olhos líquidos, vívidos e vividos. Delicado no falar e no manusear, a primeira e talvez mais definitiva impressão que dá – é a de alguém que gosta de viver. E do que viveu. E do que viver lhe falta, por tanta falta sentir que viver lhe faz.
Este senhor costuma tomar o abatanado e a meia-torrada em mesa da minha vizinha. Deve ter pensado, se calhar mal, que eu seria capaz de escrever a história dele. Que é esta:
A 17 de Julho de 2005 foi-lhe diagnosticado um linfoma sublingual. Cancro. Cancro tem seis letras, a primeira é C – como Carlos. Ele tinha completado 57 anos oito dias antes: era um rapaz, portanto. Moço de mais para saber se Ionesco está ou não certo.
Até então, uma vida de trabalho resgatada aos trabalhos da vida: moço-de-recados aos 13 anos, contabilista aos 19 (idade em que se casa com outra criança como ele), supervisor turístico aos 24. Falida a Torralta para que trabalhava, embarca a partir dos primeiros tempos pós-25 de Abril no ofício de “olheiro” de futebol em África. Para Vitória de Guimarães, Desportivo de Chaves, Leixões, Rio Ave e FCP, viaja e “olha” por Gana, Zimbabwe, Congo(s), Mali.
Acumulando-se representante de vinhos alentejanos e durienses na zona Centro do País, conhece finalmente Ivone, que para médica estudava em Coimbra. Casa-se com ela logo que pôde, que só olhar, mesmo por ofício, não chega, mesmo para o caçador de talentos nela, mulher, confirmado. Trinta anos passam num fósforo. Até esse 17 de Julho de 2005. Linfoma. Na base da língua. Cancro. A morte na boca antes de no papo.
– Daniel, é uma rua escura. Não tem luz. Não tem janelas.”
Mas tem Ivone.
Sabe o povo, e di-lo bem, que quem se ionesca ao mar, ivona-se em terra. Médica sempre, mas esposa para sempre, revolve céus e lezírias em prol do pai da sua Catarina. Voltam ambos à Coimbra do tempo primeiro em comum. Vão ao IPO, onde o(s) acolhe(m) o doutor Arnaldo Guimarães e respectiva equipa.
Há oito anos que a tal “rua” voltou a ter “janelas”.
Digo eu, sem errar muito talvez, que janelas são o lapso espácio-temporal por que transitam o dentro e o fora.
É neste ponto que o Carlos, levando como todos os dias o almoço à mãe (aos 64 anos, ainda tem mãe, o danado, o felizardo), me sopra uma manchete que o Tempo me torna impublicável: sussurra-me ele que, há coisa de valentes anos, esteve vai-não-vem para trazer o Ionesco para o Guimarães, mas que a coisa só se não concretizou porque os vitorianos preferiram o zairense N’Dinga, que não era romeno nem jamais constou que, como Carlos, fosse gajo para morrer primeiro, ou para, restabelecida a igualdade no marcador, não ser, para sempre, o primeiro a viver.


03/06/2013

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 30 (manhã de 10 de Maio de 2013)

30


                                                                                                                                               

E do turíbulo do coração fumega o incenso moral.
Passa-se isto quando Peter “Columbo” Falk já morreu.
E quando o meu (re)conhecimento entra mortos adentro
para celebrar na mera laranja o rubi do fogo-ouro.
Suporto a tarde, é verdade, mas não sou vespertino.
Dirimo a íntima quezília, sou forte sem dados lançados.

Os presidiários conhecem os horrores diários
que aos ventos soltaram aziagamente.
Nem a vida deles paga os assassinados.
Não creio na bonomia da lei.
Quando músico-de-baile, ia ao bufete nos interlúdios.
Tomava o meu cálice e amargava sozinho.

Estou aqui que posso, não matei ninguém
e por vezes duas a alguém ajudei já a fazer.
O meu único pecado mortal,
ao Vosso igual,
é haver nascido.
O mesmo é dizer que uma mulher se me fez nascente.

Ora, acontece que nascer
não deveria ser
tão vinculativo.
Resgato-me na sabença de ler & escrever,
dois afins modos de ser
que me dão o estar, e o ser, vivo.

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 28 e 29 (manhã de 10 de Maio de 2013)



28

Ib.


Deixo o eu-corpo ir dar sem mim uma volta.
Dou-lhe o arroz que trouxe para efeito de pombas.
Em troca, ele deixa-me como de facto sou: em sombra.
Quando penso nos meus Amados Mortos, é o mesmo.
Tenho dinheiro para um par de cálices, meia-dúzia
de cigarros acalentam o bolso esquerdo do gibão.

Ao telemóvel, uma mulher louca queixa-se de quanto
engordou a uma remota outra Heloísa chamada.
Passa-se esta eternidade degradada no Café Colonial,
a que muitas vezes aplico tributariamente o nome de
Café da Rosa,
que hoje me (a)parece um seu tanto nervosa.

E quando as crianças sobem no ar como balões,
a gente madura sente a dor morna do ter-sido
às cores atmosféricas que o deslumbramento do Estio
volve estrelas capturadas em espelho nos fontenários.
E quando o senhor Carlos toma o seu chá & a sua torrada,
o que Leiria merenda é o pousio mais restaurador.

Por isso, podes imaginar em uma espécie de falida Detroit
inçada de motor-fantasmas, riscado o chão de poemas
a óleo. Quando o corpo me voltar, se voltar,
darei com ele a ronda do reconhecimento da luz,
que a 10 de Maio de 2013 tornou em glória franca.
E o Diabo dispara até com uma tranca.

29

Ib.
                                                                                                                                               

O Diabo até com uma tranca dispara
assim nos disse o Alferes Sardinha
em Mafra, Escola Prática de Infantaria,
acabava-se o Inverno de 1987/88.
Éramos homenzinhos verdes na parada,
marcianozitos do Serviço Militar Obrigatório.

O Abreu diz que vai deixar de fumar,
eu não fui ainda à Ereira, a Sesimbra sim.
A Trompa-de-Eustáquio silva o aquário cerebral.
Nada é tão lamentável quanto o viúvo entesoado.
Aqui na Colonial Rosa aparecem muitos,
com a agravante de as esposas serem ’inda vivas.

Leonor, ó minha gardénia clara,
volveste forte a minha vida e rara.
Teresa, jasminzito delicado,
volveste sorte a minha vinda e rara.
Não se pode errar tudo.
Esperar não é remédio.

A 8 de Março de 1988, adentrei o Convento de Mafra.
Nas arrecadações dele vive a tropa.
Aprendi a traçar o azimute & a disparar a tranca.
Cometi a melhor marca nos 80 metros: 9,4 segundos.
Disseram-me que só o Nené do Benfica tinha feito melhor.
Contei isso ao meu Pai, que viu logo que eu era para ser poeta.

02/06/2013

BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - 26 e 27

26

Leiria, manhã de10 de Maio de 2013, sexta-feira


É preciso ter passado, como eu passei, por vilas desertas ao domingo.
É preciso não ter nada em frente senão um salário.
Eu sabia que ia ficar para sempre na Música.
Sabia também que não me sustentaria dela mas para ela.
Suturava feridas invisíveis nascidas da fome de saber.
Como no Verão de 1991.

No Verão de 1991 trabalhei por conta de um homem que eu já era.
Perto, o regato mal respirava,
saturado de sol como estava.
Fazia as refeições num reservado invisível também:
como se celebrasse uma missa agnóstica
à impossibilidade de Deus e ao minério do Corpo.

Derredor, na volta da fonte, mulheres alheias cacarejavam
as notícias vilãs com essa tão portuguesa fúria alegre
que resulta do comentário da desgraça dos outros.
Habitava eu então um quarto muito branco
de cuja janela se me oferecia o mistério simples do dia,
que invariavelmente pintava cegonhas e campos de arroz.

Quando a alguém da Filarmónica morria um alguém seu,
fardava-me para integrar as honras da Música
à pessoa perdida. No fim, embebedávamo-nos sempre,
pois que é ponto assente a libação vínica contra
o desmando escandaloso da Morte.
E o jornal íntimo se me manchava em furor sereno.

27

Ib.


Não eram ainda as sete quando a alva me levantou.
Saí do poço que imita a morte, dei-me ao ofício de renascer.
Procurei no escuro o fato para não despertar a Mulher.
Açucarei água na cozinha, que bebi de pé não devagar.
Senti as escadas desdobrarem para mim a rua.
E depois cumprimentei o senhor Eduardo, que vinha com o neto.

Às tantas de ter 49 anos, uma pessoa já sabe o prémio do dia.
Na mercearia do bairro, caixas cantam alto a fruta.
De coxas gordas, varizmarmóreas, a senhora Juliana beijarica o canário,
que é claro como o limão e como o pão novo.
Nada me custa alcançar o Rio, sabendo nas costas o nascimento.
O nascimento & a morte.

Quando chego, estou de partida.
Assim como toda a gente toda a vida.
Exerço então o lápis qual florete,
esgrimindo o puro minério (a pura chispa) do Verbo.
Almoço a saturação da Música, das casas encerradas
à passagem do rei morto.

Canto para dentro o meu Sá, o meu Garção.
Finjo que não componho qualquer canção.
Ponho-me a arabescar as árvores maiores
enquanto desfloro rosinhas de, digamos, torrão-de-Alicante.
Então, a glória banha-me todo, torna-me lustral
como uma tocha de gelo, como um homem para o fogo.

Canzoada Assaltante