26/11/2019

CADERNETA PRETA - 8






8. Fervor Sim mas Alarido Não

a) Segunda-feira, 4 de Novembro de 2019



Descobri hoje, em aleatória jornada leitora, que cada hoje é muitos dias. E foi por causa de ter passado a saber que, além de ser o do nascimento em Aracataca, Colômbia, do grande Gabriel García Márquez, 6 de Março de 1927 foi também o dia em que Bertrand Russell proferiu, no South London Branch da National Secular Society (ali no Battersea Townhall), a palestra, hoje justamente célebre, Why I Am Not a Christian.



b) Terça-feira, 5 de Novembro de 2019



O rosto de Jean Seberg é uma das pérolas da manhã (dita) nova. Outra pérola, outro rosto: o de Joseph Merrick, o Elephant Man. Acontecem ambos na minha atenção irrevogavelmente adulta. Tristuras diversas são. Ainda repercutem. Veios não tão subterrâneos quão isso. Sarah Kane, outro rosto na manhã moribunda. Aqueles insectos capazes de caminhar à flor da água, vêdes? E Dorothea Binz? Infinitude de toupeira arquivista – bem o sei. Kim Philby explicando-se para amnésia futura. Não será hoje que vai ao Batley Variety tomar umas bebidas valentes com alguém sem nome cristão. Tal Yorkshire é irreversível. Como, precisamente, a ex-nova manhã. Desmantelou-se sozinha qual companhia de teatro-de-variedades portátil & portáteis.
Cliff Richard de camisa azul-escura, óculos-fumados cor-de-chá. Shirley Bassey de blusa cintilante, folhos discretos. Bruma & maresia segregando-se mutuamente: além, à mão da lembrança só, que é a redactora. A inocência que se quiser. A Anita Ekberg que se puder. E quando escrevo Anita Ekberg – é na maravilha de ter por & para descobrir, eu mesmo, digo, o senhor Francis Ponge. E. que não demore muito tal empresa, pois que o corpo me não dá sinais de eternidade, ao avesso do que na nossa comum infância me prometeu. Ou iludiu, corrijo agora. Natalie Wood & Anouk Aimée valem também. Não no Lancashire. Não no Sabugal. ~

E então a noite deixa que os rostos se recatem, resguardados de escrituras, remorsos, quaisquer projectos. Por mim, preciso de vela nova para a cabeceira. Tratei já da louça, aliás mínima. Não tenho vela mas tenho muita via: Garrett, Calvino, Saraiva, Tennyson, entre outros nomes. Nomes como Adolfo, Messias, Pedro Gomes, Vieira Nunes, Constantino. Tamagnini, Brasfemes, Costa. 1988, ao alto das Quebra-Costas. 1977, no Jamor. 1981, Lagos. 2000, Largo de/do S. Carlos. 1994, Matosinhos. 1986, Braga. Santiago do Cacém, 1987. 1970, rua da Sofia. Não sei por vezes que fazer de tanta relíquia. Então a noite etc.

Ainda: um cavalheiro chamado Machado, patrão de um Luís & de uma Adelina; dos três, sei estarem mortos dois, sendo forte a probabilidade de o terceiro também já por cá não andar. A Machado, devo nada. Com Luís, entendi-me quanto a novidades. A Adelina, devo uma boa recordação de cariz norte-americano.



c) Quarta-feira, 6 de Novembro de 2019



Nada de Jean Seberg, hoje. Hoje, sim, cem anos do nascimento da poeta Sophia de M.B.A. E escrever hoje à guisa de grande absoluta legítima verdade – irrisória pretensão. Sophia legou muitos muito bons versos. Ficam no éter. Espargem claridade. São a verdade de si mesmos. Bem para lá (cá) do corpo já imprestável que os gerou. Lembra-me agora al-gures Al Berto. Deu as voltas dele. Dar voltas não tem cura. Já consigo cansar-me de me cansar. Também derivo no que vivo. Este corpo é quanto me sobra da nascença – volúvel, volátil, precária, preclara relíquia. Março de 1986, dia 1 – li Cortázar, recordo isso tão bem. Faltavam – sei-o p’ra-sempre-agora – 2-meses-22-dias: e não há mas, nem mais, nem adiante. Nada a fazer & tudo por fazer. Sim.

Mais gente sabe o respectivo signo horoscópico do que pessoas sabem o próprio tipo de sangue. Galáxias de idiotia. Oklahomas de acéfalos. Sedentária acefali’diotia geral. Brasis da mais pindérica anorexia mental – e moral, até. Aqui sim, adiante.

Sidónio Barreto, nosso vizinho, cultivava o mutismo mais inexorável. Parecia saber coisas siderais que o encerravam em beleza. Pedro Verde veio umas poucas vezes tomar chá com ele na companhia de Adão Formiga. Ricardo Recto, penso que não tanto. Quim-Tó Lua? Sim, visitou Sidónio. Tal como João Bom-Homem. Esperai – e João Entassobio. Mais: Ronaldo Jaime Deus; Jaime Morfilho; Leonardo Ferrado; Tiago Belga; Afonso Cerqueira. E Carlos Artur Muros. Este povo todo fantasmand’andando por aí, menos Adão, talvez. Novembro os guarda por trinta dias. Talvez mais, se eu ainda puder.

Difamaram José Q. – e pronto, abrasaram-no sem retorno. Durante tal, João Castor abandona o sanatório no exacto ano do nascimento daquele que viria a ser, deste, o último acamado: Alberto, filho de José & Joaquina. Deolinda morreu tenrinha, por-aí-Tempo. Itinerários polívocos, por assim dizer. Sem manual-de-instruções, o atirador-furtivo tripula a espera insensata. Sucessão, por assim dizer hieroglífica, de árvores em majestade inabordável. Andorinhas & cegonhas: xadrez puríssimo em tabuleiro de arrozais. Um animal dormindo enquanto Jorge, no Alentejo, felizmente desconhece o que (des)faz Luiza em Lisboa. O major Proença sepulta a mulher na planura natal, ao todo oito pessoas na cerimónia, padre, sacristão & gatos-pingados incluídos.

David Gil Moura & Rogério Águas consolidam papelaria (D.) & livraria (R.) em pujante prosperidade. Pensada fortuna os irmana. Encerram sempre de 30 de Dezembro a 7 de Janeiro. David tem amada em Viena de Áustria, é no Prater que ela o recebe. Rogério leva a mulher com quatro filhos para a Pensão Gerez, em Adelaide, hospedaria de minhotos há décadas radicados no continente austral.

Um que era João Perfume, atónito tonito coitado presa de putas ditas finas, acabou exilado entre roseiras menos húmidas & espinhosas do que elas.

Acendiam a luz crudelíssima do salão quando o baile acabava. Era pela matinée dominical. Lixos humildes pontuavam o soalho há muito por encerar. Era afinal tudo no âmbito da estrita paroquialidade. Jazz sem dédalo. Salão vácuo, não o varrerão antes da seguinte sexta-feira, noite do torneio de sueca. Palmira Carrofilho veio a horas a buscar o homem dela. Tragédia simples. Não há anfiteatro nem coliseu para isto.

Vêde aquilo dos filmes pornográficos: muita acção, história nenhuma. Desde-que-paguem-certinho-é-deixar-andar.

Tânia Nicola, morena, solar, amiga de Germana Adão, clara, verde. Filhas ambas de homens bem-postos na administração-pública. Não tenho rasto das mães. Chuvada intensa na quarta-feira em que a solar & a verde vão ao cinema do hipercentro. Antes do filme, jantam saladas nos comedouros de néon ofuscante. Conversam miudezas pré-gravadas, dessas que alguma grande-literatura não enjeita. O filme aborda os caminhos criminais de Eduardo Duarte Maio, o taxista matador de prostitutas da zona litoral-oeste. A história de Maio perturba-as. Decidem não voltar de táxi a casa. Vem busca-las a madrasta de Tânia, enfermeira desenxabida com fúria de viver. É ex-mulher de um histrião da inspecção sanitário-alimentar. No dia seguinte, ninguém se lembra de ninguém.

E.D. Maio foi achado & detido a meio de uma manhã até por tal perfeita. O meretricida comprava legumes no mercado municipal, nem deu por que o caçavam sem estrépito, fervor sim mas alarido não. O inspector judiciário era Tomás Alano Esteves. No filme, o guionista chamou-lhe João  Robles Aguafilho. Ao assassino, Afonso Pedro Sanches. O filme que Germana & Tânia foram ver não foi a Cannes, Berlim ou Veneza. Maio ou Menos ficou.

(“Da literatura piegas nos livre Deus, sobre todas as coisas.” – isto é Garrett, em Lisboa, Janeiro de 1853, pela introdução que fez a Fábulas e Contos.)

Quanta veracidade ensejo, quanta ficciono. É na calma da casa que a noite dá já por tomada. Vai cegarregando o não-lento relógio. Na cozinha, urdi há pouco o caldo noctívago, não exagerei o azeite, guardado tinha o bocado de ontem, pão ainda se chama. Agora que o conto, isto está mais no contar do que no contado. Quando respiro, de piscos olhos vogando pelos muros do quarto, inspiro outros nomes, cujas sílabas fremem ao favónio do-que-vier.

Mena Calboa, jóia de moça atristurada que gostava de alongar a sombra ali por raias da Torre de Belém, onde a luz a tudo decreta a um só tempo, bendita e bem dita seja Lisboa. Namorou-a um que era de Almada, Saul Martim, rapaz da Mercante que não preava literaturas. Estiveram casados dois anos, três juntos, saiu sem dor cada um para seu lado. Ela voltou para casa dos pais, ali ao Campo Grande. Ele, já não sei, ainda não escrevi.

Para talhante na Alemanha foi Cristino Vergel em busca de salario que num portugal-futuro lhe telhasse casa. Levou nada e pouco trouxe. Amargou insolências, mais nacionais que socialistas, ali por bandas do lago Konstanz, ou assim coiso. Assisou-se, amandou a Alemanha para o lado do cu, albergou-se na Suíça francófona, tão-cedo não volta.

Volto eu – à janela-porta de vidro alto, mirando o presépio ínfimo dos bairros em que ricos não moram. Nesta (com)postura tenho pensado muito em coisas livrescas, aquele médico moço em Monsanto, aquele novel professor em Évora, ou seja, Namora aquele & Vergílio este, apetecendo-me reler, ao cabo de tantos-mas-tantos anos, Seara de Vento de Manuel da Fonseca, A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, O País das Uvas de Fialho de Almeida, In Illo Tempore de Trindade Coelho. Reler com esta nova idade de velho que é a minha e de quem sou. E Alexandre Bissexto de Armando Silva Carvalho. E o que (ainda) tiver de João Miguel Fernandes Jorge. Sou leal a prazeres antigos, nem sempre vetustade se volve vinagre.
Retorno sem ânsias à poltrona, retomo o meu taful Garrett, tão bem escreveu o janota, morreu sem chegar a velho (ou antes: morreu com a idade que é a minha agora; já agora também, a mesma conta final de Eça – 55), penso mais nisso do que talvez deva, Ruy-Belo-45-anos, Fernando-Pessoa-47, de Sebastião da Gama nem é bom falar, nem de Cristovam Pavia, meus pobres Cesário & Anto Nobre. Sim, Mário Botas.
Sim, livra-me da pobreza este viver em índice-remissivo. É remediado tesouro que ao colo me aconchega.

Na lisbonense Rua Carlos Mardel vivia uma magrita da família Félix da Praça do Chile, chamavam-lhe Kia por diminutiva ternura, sei que era Lúcia como aquela bisonha das fraudaparições da Cova. Lembrei-me de Kia por me ter lembrado de (mais) livralhada. Lúcia Félix venerava Al Berto & Nick Cave, correspondência aliás coerente, artista de idêntico lirismo, acho eu, que também gosto dos dois. Isto é matéria do tempo em que eu subia – a pé sempre, como sempre & para sempre – até o cemitério do Alto de S. João pela Morais Soares. Muito andei eu. Fiz Xabregas-Chelas, Prazeres-Areeiro, Telheiras-Alcântara, S. Bento-Santana. Praça do Chile, Ismael apresentou-me a Kia. Simpatizámo-nos, falámos logo de Cave & de Al B. Quando ela me soube nascido em Coimbra, saiu-se logo com – “Aquele homem lindo também”. Eu redargui que – “Sim, o Al Berto por lá nasceu em 1948, mas fez vida por outros mundos, em Janeiro de ’92 foi lá ler poesia mas deu-se mal com os imbecis ruidosos da plateia, mandacaralhou-os e foi-se embora, nem sei se alguma vez lá voltou.” Ela teve pena. Al Berto morreu pouquíssimos anos depois, dizem que daquilo dos homohomens, não sei, não quero, nem preciso de saber. Ainda a vi algumas vezes, aliás poucas, uma das vezes foi por ela ser bilheteira da CP. Espuma, não pedra, tudo.

Já agora que, por assim dizer, ulissiponho lembranças de há vintes & tais anos, havia uma Rosa cega que pela esmola cantava na Rua ou Augusta ou Áurea, a voz dela entrava no coração distraído e contraía-o logo, macerava a pessoa que não pede & só passa & vê a luz. Havia mais bípede mundo em Lisboa. No Carmo, um sósia de Estaline que era reformado da estiva; no Camões, um dandy que ciciava indecênciazinhas a todo o rabo-de-saia dos 7 aos 77 como o Tintin; no Areeiro, um maluquito inofensivo era o clone estampado do Ciccio Ingrassia, aquele do Voglio una donnaaaa! no filme do Fellini, este Ciccio fardava-se à cobradora da Carris, o homem do Café dava-lhe a sopa diária; na João XXI, a solidão estalava ao sol como lacraus de madeira; as Amoreiras já então sofriam daqueles cagalhões arquitectónicos do coiso; na Pontinha, um moço de pastelaria doudejava innuendos gayzolas a todo o cós-de-calça dos 8 aos 88 como o Tintin um ano depois. Nem bom nem mau de mais, tal meu tempo – passou, não volta, puta-que-o-pariu.   






24/11/2019

CADERNETA PRETA - 7




7. Nem Parecem Mortíferas as Sombras

a) Quinta-feira, 31 de Outubro de 2019



Em sossego atento, escutando a Carlos Fuentes, o descomunal mexicano de superlativas elegância & sabedoria-em-prática. Aproveito muito, enquanto chove no mundo local. Sinto-me gratificado por esta invernosa despedida de Outubro. Tirando a tosse cavernosa, estou bem na hora. Por o tempo destas linhas, não saí ainda de casa. Tenho de fazê-lo hoje, sem mais procrastinação. Prédio afora, terei tanto de reencontro quanto de achamento – já o sei.
À cautela, raspei ontem à noite a pilosa queixada. Subirei na vertical ao duche, daqui a um par de hora, para fruir a chuva domesticada.
Fuentes elabora, redivivo. Nomes & lances manam daquela consciência tão clara. Monstro da literatura duradoura – e dura de ouro.

(Tusso até me subir à boca o coração.)

Sempre saí, chuviscava, não achei frio nem frio me achei. Resolvi duas coisas, duas outras ficam esperando-me no porvir, se vier.

Revi parciais do meu mundo, de que constam operários em fim de jornada, vêm dessedentar-se ao bebedouro de pobres que há anos nidifico.

Poalha, a moinha toma tudo.
Relapsa a nostalgia p’la Cidade.
Idêntica idade, identidade
apõe a todos-os-santos ao entrudo.

Achegam-se os mais velhos à lareira,
em funcho há castanha em cozedura.
A dor dos outros é sempre futura.
‘manhã vamos de barco à Figueira.

Tardia, a comoção já nos não leva
pela mãozinha dócil de manteiga.
Tardia é a alegria. A dor, primeva.
Envelhecer é coisa nada meiga.

Morreu Dias (José), fui dele amigo,
nove dias depois só mo disseram.
O q’escrevi com ele, não escreveram
os ensimesmados a sós consigo.

Um triste (de bigode rarefeito)
pede fiado ao amo bebedouro:
este lhe serve cálix morredouro,
aquele rechupa sede pelo peito.

Ser testemunha antiga sem mais fala
q’a da avó mais velha analfabeta
– ser deposta boca de quem se cala,
       matina q’a noite faz obsoleta.

       O Sílvio (contas certas) não obriga
       quem de fora lhe vem por a visita.
O Álvaro Martinho traz cantiga
que à força do passado revisita.



b) Sábado, 2 de Novembro de 2019



Sinto a infiltração da idade – e nem sempre por algum mote negativo. Mesmo ante as contrariedades devindas que, activa ou passivamente, engendrei eu mesmo – mesmo ante essas (con)sequências, encolho bastas vezes os ombros & assobio enquanto sigo o(s) meu(s) (des)caminho(s).
Falo com & para mui pouca gente-gente. Nos sonhos, por igual, sou mais ouvinte do que falante. Tenho sonhado muito. Acordo sempre algo aturdido pela lógica implacável desse universo-alternativo da nebulosa-cerebral. Esqueço rapidamente as peripécias. Não são pesadelos nem jardins, os filmes que sonho. São outra roupa num corpo diverso. Nem menino nem senil, é como se tivesse experimentado uma espécie de eternidade limitada ao stock existente. Já acordado, sacudo o pêlo, bebo água da garrafa á cabeceira, fumo se tiver à mão, iço-me para a hora nova. Mudo, as mais vezes. Surdo, não. Há cantos da casa mais propícios à música. Não telefono nem me telefonam. Está tudo bem – responderia eu se mo perguntassem. Ainda bem, porém, que mo não perguntam, escuso de aldrabar, seja quem (não) for.

Mercê de curiosidade selectiva, vou (col)matando a pouca conversação: interesso-me por papéis vivos, linhas vivas, imagens capazes de vergar o Tempo em espirais alternativas. Um duplo-homicídio na Irlanda, ano 1921. Um sêxtuplo (salvo erro) em miseráveis subúrbios de Glasgow, acho que em 1984. O andrógino Rapaz Jorge em 1981. Correrias em Munique nas décadas 20 & 30 do XX. É corrupio-de-pandora, por assim dizer. Dou de comer ao lápis, tinta por vezes. À dor, nem tanto.

Em povoação tomada de invernia, pela noite, é ainda possível ambular sem prejuízo do mundo. É além a casa do Ambulante. Por ter de manhã cedo azeitado as juntas do portão, o ferro não chia. Em surdina, o rádio rastilha valsas. No lar, o brasido remanescente pede reforço de provisão. O cão, muito velho, abre um olho, boceja, quase dá ao rabo uma voluta de boa-vinda. A mesa expõe tesouros da horta, do mar & da serra: cebolas, bacalhau, queijo. A cafeteira azul, uma vez reanimado o lume, já mana perfume. Da rede-mosquiteira suspensa, toucinho salgado & manteiga abordam a mesa. A luz é cediça. Ergue-se vento no pátio, fremem no pomar as macieiras. O noticiário da radiofonia reporta a um exterior demasiado longínquo (felizmente). Jornais antigos esperam a enésima releitura. Hoje, porém, talvez não. Agora, a doçura mela os olhos. A poltrona, a prudente meia-distância da lenha viva, serve de placenta. As valsas voltam. Fios rarefeitos de sentido medusam pela mente já só semiciente. Estraleja o pinho, casado com o pedaço de oliveira no altar ígneo. Nem lembrança nem espera. Nem espera nem lembrança.

Truz-truz.
Da casa, ó senhor!
Quem luz?
Senhoria, é Leonor!
Entra pois, Leonorita,
entra e toma tu assento.
Entro sim, só um momento:
venho lá da Dona Rita.
E que me quer a boa Rita?
Pois é isso, já vos não quer.
Que me dizes, Leonorita?
Já lhe não vem por mulher…

Ao contrário dos católicos, vivo de desaparições. Não há nisto gravidade. Graves deveras, são raras as coisas. E as coisas apresentam-se duramente concatenadas. Se um ror de palavras me pede alinhamento, sou grato. A mocidade foi. E não volta. Não é natura dela. Chegou, morou por aqui um bocadito – e pôs-se nas putas, bem fez ela. Em o lugar dela, range ossos certa condição que não é ela, é outra coisa, conspícua recolecção, lentidão agravada, não outra pessoa mas menos pessoas nessa pessoa. Força-se aqui – mas sem desespero – um ensaio de matrícula na noção compreensiva. Versos muito mais felizes já o terão eventualmente logrado – não importa. Ou: não me importa. Importa-me, isso sim, muito sim, a palavra-justa (assim com hífen para substantivar foros de, precisamente, justa-posição). Ela é por-si, consigo, em-si – vida melhorada. E não só livros habita. Bocas que pelo mundo não escrevem – também dela são capazes. Tenho recolhido muitas, que em solidão frúo na ciência antecipada de comigo as não poder levar lá para onde foram os que já não podem ler. Posso deixá-las, isso sim, posso. Mais digo: todos os meus anos falantes são mormente ouvintes. Entre eles, deles, faço de secretário.
Vou à janel’alta da sala, miro a obra da noite neste trecho do mundo. Atrás de mim, nem cão nem lareira, nem rádio valsante nem pomar de macieiras – mas.
Mas pontilhada a ouro é a tela que se me abre à janela alta. A hora evacuou as vias, nem parecem mortíferas as sombras. A colmeia humana aceita o anoitecimento, milénios de resignação são imperiosa escola. Sinto em palavra o recolhimento. Nem demência nem euforia. Nem baile, felizmente.
Atrás de mim, esparsos móveis dão de si, emitem acústicas mínimas. Roupa-de-cama faz de mãe. Restos de refeição já arqueológicos, assinatura da hora perdida.
Sim, há justiça no caos – até cortesia, digo. Não mais forjarei um sentido – sequer alguma porta.
Certa vez (que esta noite demonstra improvável), a uma mesa jantando em companhia de outros oito filhos-de-suas-mães, calei-me mais que de costume. Penso que se celebrava uma notícia de noivado. Fumei no quintal. Os carros visitantes afocinhavam o pinhal d’em-torno. Talvez o mote do jantar não fosse noivado. Pode até ser que fosse alegria de recém-divórcio. Antigamente, havia certo pudor. Agora, parece ser razão de júbilo. Depende, se calhar. Comia-se, enfim. Aquela assembleia não era especialmente bebedora, pelo que mais me restou. Voltei ao quintal a pretexto de outro cigarro, trouxe comigo a botelha de conhaque, sentei-me numa pedra trabalhada, recebi da Lua o clarão hipnótico. Essa gente (e a mocidade dela) já não é. Sumiu-se na natura de sua via, eu na minha. O conhaque era bom, era um heterónimo da seda, o fresco da exposição fez-me bem. Todavia, também me não demorei. Agradeci boleia até à gare, esperei menos de uma hora pelo comboio. Então, ardendo de prata, os arrozais emoldurados desfilaram. Pensei logo em um dia escrever isto no pretérito – o que ora se faz presente, amanhã não.

Outra coisa: a morte como hoje-perpétuo. Perpétuo até que o planeta se desfaça, depois disso o Nada Maiúsculo Sideral. Adeus, sentimento; adeus, pobreza; adeus, nossa casa.
Todos temos alguns já. Quietíssimos viajantes, amados nossos que de nós amor não urgem. Impermeáveis à febre, à geografia, à fortunam ao carnaval erótico – e à infâmia chamada Religião. Afortunados afinal, portanto.
Raspa-nos – não a eles já – o sal dos anos. Temos visto cegamente tanta coisa. Fendemo-nos, ofendemo-nos – mas pouco nos defendemos da malevolência consuetudinária. Nunca é o melhor dia para que finalmente alguma coisa etc.

Mutilados – menos do corpo do que doutra coisa. Cada vez mais fácil, topá-los. Um Eduardo entre eles. Conversei com ele algumas vezes. Se tinha alguma coisa, partilhava: pão como vinho, velha ceia. Ou deus frugal. Luís, outro que tal. Valdemar, filho de Sofia Sirius. Ernesto Calendas, há muito falecido. Sepultados na vala municipal. António Polícia, mais amigo de cães que da vida. Pepe Célere, famélico, imparável, colhido pelo exacto comboio em que vinha Filinto Prates, o poeta de Memória Corrupta e de Peregrina Imitação.
De mutiladas, sei menos. Não que as haja menos. Menor é tão-só o meu conhecimento. A franqueza suporta este parágrafo. Maria Irlanda, eis uma. Nos melhores anos, alourava o derredor de si. Manipulava, qual grão-mestre xadrezista, pessoas, situações, negócios, influências. Uma manhã de Maio, acabou. Junho nada repôs. Encostou-se ao tudo o que viesse por nada que fosse. Não vou explicar tudo. Não sei tudo – mas sei mais do que não digo. Maria Irlanda, era uma vez. Mutilada, mortífera sombra.  

21/11/2019

CADERNETA PRETA - 6




6. Esferovite & Bailes-Ateneus

a) Domingo, 27 de Outubro de 2019



Recebamos & assimilemos, um pouco ainda, este Outubro não de todo desprovido de glória, esta estação tão predatória quão as melhores.
Já anteriores linhas deram de si nomes confundidos pela omnipotência dessa lembrança elaborada & voluntariosa chamada esquecimento. É mas não é, segue sendo no sido qualquer-coisa-1970. 
Como ver em um Victor Hugo apenas um velhote barbado de branco numa ilha do Canal.
Como achar na mais gélida madrugada o cadáver etílico de um Edgar Corvo.
Esses dois na multidão espectral de um gajo outonecido à sua própria custa, aqui, portador de uma carta recebida em data, como todas, definitivamente provisória.
Como Jonita Miguel, rapariga escapada à imensidão canadiana, chegada enfim ao barulho-das-luzes das maiores metrópoles que a sul congeminam o império & a carnificina sistemática.
Em outra linha de outro novelo, o galego Jacob Letício rumando a equivalente sul ele também, onde o aguardava a futura dinastia.
Em obliquidade, um Donato Faldar reporta-se a um celeiro pela época das colheitas, à noite os migrantes tocavam rabeca à face do fogão-a-lenha enquanto as papas ferviam.
Estigo-o-Muito-Claro trepou às faldas da encosta, susteve-se para repor oxigénio, bebeu água do fio que vinha gelando do cume, nenhuma fêmea o turvava nem já nem jamais.
Estas acções invisíveis percutem címbalos inauditos. A manhã espraia-se pelo caderno em feitoria sem mal nem bem. A véspera, nada isenta de certa doçura inócua, produziu seu lote.
Massivo nevão sitia o lugarejo. Dele debandou o grosso de homens em idade viril. Vivem longe, ficaram os velhos e o padre. Até Cristo tem frio. Já pouco gado ferve nos curros. Agosto fica longe como um país ao sol. É mais dura a pedra, mais afiada. No Verão, pela festa, os moços deixaram os paióis plenos de lenha. Criança alguma celebra a terra. A infância acabou como vela soprada. Não Vos deixeis emaranhar de tristura. É como é, são o que são as coisas, uma capela não faz Deus. Soalhos de castanho estendidos em melhor tempo. Na venda, latas guardam alimentos prontos, ferramentas esperam mãos que tão-breve não virão, o olor é compósito: naftalina, bacalhau, café, sabão, cera, vinho, plástico gretado. A rádio murmura lisboas improváveis.

Vai para cinquenta nevões, houve aqui nomes. Sei alguns. Alguns resistem como podem ao meu lápis, tinta por vezes. António Pratas, António Simões de Abadia, José Leão, Joaquim Pratas, Arnaldo Benje Caniço, Augusta Sério, Norberto Corvo (irmão de Edgar), Nina Veríssimo, Nino Júlia Mário, José Maria Morais, Maria Francisco Morais, Rogério Nunes, Jaime Velindro, Alberto Rebelo Ribeiro, Alcides Botelho, Augusto Quintas Borges, Elói Carvalho Elias, Carlos Eduardo, António Lopes Lucas, Edite Maricato, Teresa Pais, Victoria Douta, Fernanda Mota Américo, Augusta Catarino, Anabela Jeremias.

Poucas ruas não diminuem o labirinto. Aqui sitiei a minha casa terminal. Leio pelas veredas o sânscrito de ramitos & galhos caídos no cascalho ralo. Aramaica literatura minha, fácil afinal se se tiver em conta o que por ’í vai de bom vinho.

Tinha armas em casa, o velho João Barbeiro Notel. Não era caçador, amava os animais, todos eles, era buda de nem moscas matar. Herdou o rifle de seu avô Benedito; a caçadeira, de seu tio Álvaro Diamantino. Nunca usou maldade. Esteve todavia a ponto de fazê-lo – mas contra si mesmo, quando a mulher o deixou por um criado-da-lavoura, como é de papel-selado nestes folhetins da camiliana vida. Ficou-lhe leal o mulato Assis. De ambos, resta nada senão isto: um rodapé de livro nenhum, caderneta-alguma.

Freixos & choupos bordam similares aléns a poente, para lá arfa a instância aromática do mar.
Nisto, Branquinho da Fonseca na Nazaré. Raul Brandão no Baleal. Fialho de Almeida pitoresco pela Galiza. Forjaz Sampaio também pela mulher traído. Um Zamora em processo histórico (capa verde). Kurt Tucholsky & José Cid, ambos hoje-ontem-amanhã. Camilo de Oliveira & João Gaspar Simões naquela Figueira que não volta. Maria do Céu Guerra & João Perry nessa mesma dita, mas depois que ora é já tão antes.
Bato no escuro. Trago à claridade. Não leste, escrevesses.

Pessoas ardendo à face do país local: inscrevo-as na caderneta-razão em paralelo às minhas mansas – tão mansas – mentiritas. Das mãos: uma quer, outra pode. Chama-se Sânscrito – ou Freixo – ou Arma – ou Pratas.

Recolhe-se a casa Daniel, esteve de plantão nocturno em sua farmácia de serviço, toma café-com-leite com Alice, a mulher, & Alicita, de ambos a Filha Querida & Tida. Deita-se no sofá da sala, não liga o televisor, farto anda ele de tanto Sócrates, tanto futebol, tanta ex-mulher morta à porrada, tanta brasuquice novelesca. Daniel é sardento, é franzino e Barbosa Adamantino. Não chegou a estudar para enfermeiro, os velhos não podiam prover Coimbra, propinas, pensão, sapatos, viagens, comer, livros, uma bica por festa. Não lhes guarda rancor, longe disso. A coisa é o que é, enfermeiros & chapéus ele há muitos, doutor Vasquinho & suas tias no Zoológico, o que nos rimos, Daniel, sim, Alice, o que nos namorámos domingueirazitamente.

Ai tanta voz, Filipe Costa! Foste a escutar João Sebastião naquela noite de nortada a mais cuteleira? Foste. E feliz foste & oratório & tomista & tudo. Ainda nem mínimo indício te ameaçava depressão. Ainda não eras, de ti mesmo, menos uma hora – como os Açores são.

Mishima & Salazar em 70/XX foram a enterrar. Deram ambos na rádio. O Pai ouviu as novas em silêncio. Consultou depois a velha oliveira, deserta então de pardais. Alimentou pombos, gatos, cães, patos, voltou à oficina para desligar a luz, veio pelo pátio com um belo sorriso pátrio no rosto remoçado, beijou Hélia, a mulher, e deitou-se com um suspiro de menino, assim-seja.

Piedade & Ricardo, Luiza & David – r/c-esq.º, Miranda & Soeiro, Pinto & Paula – r/c-d.tº: ninguém no primeiro-esquerdo; Saul a sós no direito; Carlos Alberto na mansarda, a sós ele também.

Eu sei, eu sei: é de esferovite o meu nevão. Não deixa, por tal, de ser gracioso, como graciosa era a entrada a raparigas nos bailes-ateneus. É muito, muito a norte deste cá. Mas olhai, isto não é hermetismo, isto é como tudo conVosco, nada de novo debaixo da neve, tudo tranquilo na frente central. Menos tolerável seria se nos conhecêssemos, os segredos de uns contra outros. A privacidade dá-nos ao menos a ilusão do tesouro próprio, íntimo, gananciosamente intransmissível. Em cursiva escritura, não é menos assim. Daí que eu vença etapas na Revelação Aldrabona, ah pois é. Nem de existir mesmo precisais, Vós. A voz, sim. Essa sim. Ouvi-a Vós:

Ouvi a Voz. De novo a ouvi – mas não era já fármaco-depressiva como em anos piores, esses em que Álvaro, Manuel & Cesaltino naufragavam de pé uma & outra & ainda & sempre & mais uma vez. Não, já não. A minha mudez garantia-a. Era comigo como alguma coisa a tiracolo. Dela eu próprio me agasalhei. Agora que o conto, chove bem no país local. Terei de desandar de casa por algumas horas, espero que poucas. Levo comigo uma carta, talvez me faça cortar o cabelo, aleluias hossanarei ao balcão de Zé Carlos & Fátima, lá onde o viaduto se volve, de Camões-Calhabé, Norton e Matos. E, se não tinta, lápis então.

Contado como vou contar, pode parecer mais rápido do que foi sendo – mas não tão brusco quão o ter-sido. Vamos:

I

Aldina Jorge, filha de Dário dos Anjos, rumou a norte depois de concluir com certidão o estágio industrial. Esperava-a uma colocação naquela fábrica têxtil sita onde a serra sobe. Pôs-se a ganhar a vida sem soluços.
Antes do primeiro Natal, integrou o grupo de cavaquinhos da associação recreativa da vila. Nessa qualidade, viajou a certames municipais de gastronomia & artesanato. Ocupando a casa pequena a partir da qual só pinhais respiravam, dispôs do logradouro como quis, até horta-jardim exerceu.
Tinha vizinhos a setenta metros, o guarda-caça Ismael Rosas & sua mulher Angelina, costureira para fora. Alguns homens rondaram-na, que ela repeliu com gentileza, primeiro, e assertiva rispidez, depois.
Depois do segundo Natal, foi promovida a encarregada-geral, não interessa ser ou não boato que se fizera amásia do patrão fabril. Nesse mesmo Janeiro, comprou carro. Foi nele a buscar Dário dos Anjos, cuja solidão, escreveram por carta a ’Dina, o vinha tornando impermeável à vontade de viver.
Na casa dos pinhais, o pai remoçou como salsa à chuva. Fez de pronto amizade com o guarda-caça, cuja Angelina não descansou enquanto lhe não passajou meias & camisas que a longa viuvez tornara lamentáveis & lamentosas.
O cancro fulminou Ismael em menos de um semestre, pelo que no quarto Natal Cristo renasceu para levá-lo sem inquérito preliminar nem julgamento. Três anos volvidos, Angelina & Dário casaram-se pelo civil, as noites tornaram a ser azuis, ’Dina foi testemunha, a outra testemunha foi um rapaz chamado Raul Fausto, sobrinho da noiva.
Nesse ano, foi campeão o Sporting de Braga.

II

Venceslau Agostinho, patrono dos árcades de Setúbal, foi bonecreiro dos oito aos noventa & dois anos, idade com que lindamente se finou – sem uma nódoa moral & sem dois tostões por junto. Enquanto árcade-mor, que o foi por quase meio-século, legou uma bem acima de razoável obra publicada – própria como, supervista por si, alheia.
Autor, criou Lamentação de Hermes, Penélope com Aquele de Que Ulisses Não Soube e Estela do Taumaturgo, além de crestomatias menores.
Editor, mecenou Carpo de Hollanda (Visões Legendárias), Melro Pasmaceno (Sonetos Autocratas Após Rebelião do Cometa), Dorivaldo Rionomar (Lusitânia Invencível) e Rosalina Guevara (Coração Armilar dos Trópicos).
Fora de versos e de bonecos, pode ser dito pouco mais de sua passagem pelo terreno caos. Se a alguém amou, nada consta em litera’ ou oratura. Se foi odiado, o mesmo. À uma, compareceu ao funeral uma meia-dúzia dos seus detractores académicos, vulgo Sibaritas Arrábidos, para quem o culto do soneto é a demonstração mais cabal de que Darwin era o vero AntiCristo. À outra, a viúva de Venceslau foi entrevista a rir-se mais do que uma vez durante o velório, não a sorrir-se condoída mas a rir-se-rir-se – todavia isso foi antes de saber que a junta do defunto não chegava a dois tostões. Terceiro, a amante não fugiu, antes deu de si a línguas & dentuças – mas dela radiou a invencível simetria de suas passadas, assim como o escândalo de ser bonita, não linda, não bela, não formosa, não toda-chicha, bonita sim: como as mãos lavadas, ou o cão esperando o dono crepuscular, ou uma manhã sem amanhã.
Sepultado Agostinho, fomo-nos dali a beber vinho.

III

Guadalupe da Paz Moreira, recebedora de fodas em pensões de quartos-à-meia-hora, cuidou da mãe velhinha até a doentinha se deslastrar deste morredouro de putas sem resposta ao motivo de por-que-raio-se-nasce.
Pé-de-meia da falecida empochado, retirou-se Guadalupe da tauromaquia de rapidinhas, asilando-se sem sobressaltos em uma vida litoral cuja decência era à prova de espanhóis endinheirados. Não vegetou, porém. Fez dois cursos profissionalizantes do instituto-d’emprego, um de encadernação, outro de restauração de dourados. Se fodeu alguma coisita, fê-lo ou por desfastio ou para não lhe perder a mão, que isto dá muita volta & o amailo nunca se sabe.
Não praticou eremitério: travou conhecimento com raparigas da sua geração, divorciadas quase todas, a quem acompanhou em hílares bailes-das-velhas.
Faustino Miguel Amaral, acordeonista-residente de um de tais antros onde a geriatria ainda se dá a espasmos pasodoblantes, pareceu-lhe o que era: simpático, simples & caseiro como a brisa nos cortinados, parceiro sem ardis & remediado de provisão. Juntaram-se.
Foi boa ideia. Guadalupe reconhecia, dele, a dedicação aos valores ditos pilares: casa, trabalho, parceria. Serralheiro de dia de segunda a sábado, músico às quartas & domingos (matinées) e noites de sexta & sábado, Faustino dava tudo e pedia muito pouco. Era a verdadeira & boa anti-história. Fazendo contas, ela arranjou emprego numa lavandaria, pondo-se de lado o que ele ganhava com o acordeão + o salário dela, vivendo o dia-a-dia com o pré de serralheiro. Deram entrada para um T1 perto da Misericórdia. Sem filhos, foram afagando cão agora, gato depois, por aí.
Quando Armando, irmão dele, morreu de leucemia, ela quis ir, mesmo sem aliança, ao funeral. A ex-mulher estava lá – mas não houve sarrafusca nem nada que se parecesse, há sempre uma altura em que para-quê-o-quê, não é verdade?
Um dos cães de Guadalupe & Faustino era tratado em casa por Mondego – mas no Bairro da Misericórdia era por Xerife que se dava. Morreu de hiperdiabetes & mais cego do que o Ray Charles, o Stevie Wonder, a Helen Keller & o nosso poeta Castilho juntos – a mania do pessoal era dar-lhe do açúcar das bicas no Café Social, ali entre a Misericórdia e o Grémio.
Guadalupe, alertada por uma enfermeira do Asilo, ralhava com o maralhal: – Não dêem lambarices ao meu Mondego que ele tem muito que comer em casa. O maralhal retorquia-lhe: – Mondego? Mas q’ais Mondego? A gente damos ó Xerife, mai’ nada.
O Mondego nunca conheceu cadela mas o Xerife apôs-se a muitas, pelo que há descendência com fartura por aquela vila-mar: netinhos, por assim dizer, de Faustino & Guadalupe. A vida ilude repetir-se nesses cachorros desmemoriados que nem ao açúcar ligam, agora que, felizmente, é mais corrente a noção de que os canídeos não metabolizam a doçura.
Já só falta falar do pai do Mondego-Xerife. Era Sidónio. Crismaram-no assim por ele mendigar a ração de cada dia na sopa-dos-pobres da Misericórdia. O Sidónio uivava como um lobo perdido sempre que lhe tocavam perto uma gaita-de-beiços. Infra-sons, ou coisa que os valha, no espectro auditivo dele, não sabemos. Sabemos porém que tal cena foi durante muitos anos um dos mais seguros êxitos de rua naquele pacato bairro a que Faustino & Guadalupe, em boa-hora, nos levaram.

A Quarta-Feira dá de si o que lhe apetece. A jornada, que foi particularmente pluvial, andou daqui para acolá – mas eu, eu não. Eu consumi algumas pastilhas de resino (de extracto seco de tomilho) a ver se enganava a tosse, estes arrancos cavernosos que me entontecem até ao escarro forçado, oblíquo, agónico. Mais umas horitas vãs, menos uma folha calendária, o dínamo-motriz não perde centelha, de estrelas a descomunal arcada é hoje opaca, glaucomou a massa nublada, altas águas por cima, gelo por baixo nós, disputam algures na China o World Open de snooker, ontem ri-me com gosto, recuperei da net um colóquio sobre o grande Cortázar, o grande Carlos Fuentes era um dos da mesa mas foi Aurora Bernárdez quem fez sorrir o mundo, contou ela que o Julio (então) dela não falhava o vestir do seu robe-de-chambre verde, invariavelmente o fazia, o que Aurora disse transformá-lo, dadas a cor da vestimenta & a altura do marido, numa espécie de “mesa-de-bilhar na vertical”, muito me ri, decerto também se riria El Gran Cronopio.

É amanhã que saio, assim parece. É por obrigação, não por devoção lírica. Alguma coisa aproveitarei, dando-me o corpo para tanto. Uma parte da geografia, por imperativo da função devida, é certa: sair do autocarro ali ao Palácio da Justiça, depois Correios perto da antiga Auto-Industrial, Bota-Abaixo depois, depois logo se vê. O certo é haver sempre fauna digna de linha escrita, não há que perdê-la. Ou como. Os percursos são sempre generosos, o olhar é remunerado em géneros mais especiosos. Todavia, não os antecipo. Fazendo-se idioma, entesouro-os avaramente no papel à mão. E não me entedia tal (aparente) repetição? Não. Nada. Pelo contrário, a revisita segura-me identidade, essoutro nome de pertença.
Sem escrita embora, a senhora minha Mãe fazia o mesmo. Ela chamava-lhe “jogos”. Observava, retinha, cotejava, especulava: rostos, roupas, sapatos, gestos. Casas – como eram. O que entretanto aqui construíram, o que aluíram. Certo trecho do Mondego (nome de rio, nome de cão), alturas da extinta Alta (crime dos fascistas no poder, décadas de 40/XX e ss.), nomes de fantasmas que ela me repetia para eu ser livro (&livre) um dia. Agora, portanto.

Em relance à minha espiral, convoco certa noite do século passado em Madrid, voguei pelas ruas apinhadas, agradou-me la movida, como eles chamam ao corrupio a que se dão em ócio ambulatório, acho que apresentavam Lope de Veja em um teatro de bela fronte, disso não estou seguro já, dei essas voltas sem papel nem lápis, imperdoável mas pronto, lá vai; ou outra em Sevilha, seis anos antes da de Madrid, o calor à meia-noite era de uma pujança alucinante, como alucinante era o fêmeo gado pass(e)ante, nunca-jamais-em-tempo-algum da minha vida vi tanta senhora comestível em tão pouco tempo; outra noite, aquela que em Braga ajanelei, seis anos, não, cinco, cinco anos antes dessa de Braga, era Janeiro, padeci sucessivas noites com seus dias de uma infecção bucal muito imperiosa, fartei-me de encomendar a mudez forçada ao diabo que ma carregara – pela boca, precisamente; sete anos antes de tal abcesso, no decurso do Mundial da Argentina (sob ditadura ferocíssima então, deveriam mas era ter boicotado aquela merda), jantei ao ar-livre, a comida era arroz-de-vaca com ervilhas, tépida era a vida & tépida a respiração, pois que perto oravam rosas ao luar que enfarinhava de prata o céu dos senhores meus Pais. Volto a esta, a que amanhã chamarei ontem. Dínamo, espiral, roda, (v)idas & vi(n)das.

Recortes, por colar, ui, são matéria que me não falta, nunca me faltou, sem esforço prevejo que me não faltarão.
Baptismo de um menino filho de casal amigo, perfume da comida feita pelas senhoras avoengas, indiscutível majestade dinástica daquela gente não-abastada mas ricamente provida de obra, foi em aldeia dormente que o sol tornou volitiva de festa & volante de ouro humílimo, boa lembrança, excelente recorte.
Casamento de P. com P., amicíssimos, ele já morreu, foi por acaso que encontrei a viúva no exacto 33.º aniversário esponsal (um Agosto), lágrimas nos quatro olhos, andemos.
Funeral de Luís M.V.M. (outro Agosto, outro desgosto), música dele tocada para ele pelos alunos dele, sol fortíssimo, intolerável mas tolerado, foi naquela cidadezinha que as cheias de outros invernos tomavam sem promessa de recuo.
Divórcio de J./C., esta é das presentes evocações (ou recortes) a mais antiga, houve amargura que transcendeu os desavindos, comentou-se muito o des-enlace, à boca-mordida se disse mal dele, à boca dita se mordeu nela.

Posso (e aliás pretendo) estar nisto a vida toda. Quando digo nisto, digo isto:

Bordadura arbórea por caminho que desço se vou á zona perfumada pela tenra Carolina J.;
Sapatos encarnados de Rogério Q., inesperada cor que esmifrou falas a ponto de murmurações em pleno velório, delicioso escândalozinho de lugarejo;
Polícia reformado que mulher & filha rejeitaram por causa de muitos vinhos & bebidas-finas, para além de pormenores onerosos de retenção-na-fonte, vendo-se ora, o ex-polícia, em aparato de sem-abrigo;
Baldio próximo da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, nele armou tenda um dos circos mais pobres do mundo de circa 1970 d.C., foi das primeiras & mais obstinadas tristuras que senti, ainda sinto, hei-de ressentir sempre, não hei como escoá-la;
Em remota aldeia de montanha, libertação de um gato que tinham enjaulado a pretexto de tinha, mal de pele que aquela gente de rarefeito juízo julgava marca demoníaca, libertação que me fez feliz, uma vez na vida. 

Canzoada Assaltante