1. Naquele tempo primário, havia por cima do quadro da escola uma imagem de Cristo. Mas, em vez da companhia das doces figuras animais do Presépio, Jesus sofria então a escolta dos retratos de Américo Thomaz e Marcello Caetano. Nesta recordação, encontro um ensinamento: não basta ser bom; é preciso, também, evitar as más companhias.
2. Falei de ensinamentos. Continuo nesse rumo. Acredito piamente que, naqueles anos e naquela sala, Jesus encontrava uma especial compensação para a dor de se ver assim tão duplamente crucificado. Falo do Professor. De seu nome, Elias. Como o profeta. E se os profetas não enganam, este é o caminho que ele me ensinou. Aqui estou, senhor Professor.
3. Figura enxuta, nariz magro e transparente, dente de fumo e bago de arroz. Fato mais limpo que a luz do dia. Bandeira viva: da honra, do respeito, da ortografia, da lealdade. Às vezes, eu e outros miúdos desse tempo encontramo-nos em algum café. Falamos das nossas vidas, falamos daquilo em que se transformou o rumo de cada um: trabalho, filhos, futebol, copos, casas, horários. E nunca falha: falamos do Professor Elias. E nunca falha: falamos bem.
4. Intervalo. Uma palavra pode sofrer, da sua origem aos nossos dias, dois tipos de evolução. A evolução por via erudita e a evolução por via popular. Exemplo: o superlativo latino “pauperrimus” (= “o mais pobre de todos”) deu, por via erudita, “paupérrimo”; por via popular, deu “pobríssimo”. Nenhuma das formas é “melhor” que a outra. A riqueza está em conhecer ambas. E depois? A que propósito vem o “sermão” gramatical? Lá vamos: serve para dizer que o mesmo aconteceu ao termo “parábola”. Parábola e palavra são o mesmo. Mas a primeira forma (erudita) é usada para formulação de uma história exemplar (as parábolas bíblicas, por exemplo). A segunda forma, “palavra”, sofreu a evolução do uso popular e consiste na unidade mínima da frase. Serve às maravilhas na expressão “palavra de honra”.
5. Já cheguei aonde queria. Esta crónica falava (quem se lembra ainda?) de Jesus escoltado pelos chefes do Estado Novo na parede da escola. E falava de um homem chamado Elias. Oqual, por obra e graça da humanidade que carregava consigo, aliviava o Salvador de um peso político que Ele não merecia.
Elias Rodrigues Faro. Senhor Professor: onde quer que estas palavras o encontrem, saiba que são para si. São palavras aprendidas nas suas mãos. Como poderíamos nós, crianças da sua sala, não lhe devolver esta parábola de honra?
Diário de Coimbra, 27 de Setembro de 1996
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