27/06/2005

Super-Homem na Fontela

Cai-se sempre sem rede na adolescência. Os sinais da minha queda (hoje evidentes, mas então obscuros e exasperantes) encontraram substância na frequência do café da minha rua. Anoitecia e pronto, lá estava eu a olhar para os homens sós que comiam batatas e carne, um talher e um jarro de vinho por mesa. No fim de comer, bebiam café e fumavam. Eu só me atrevia a chás de limão. Em Novembro de 81, comecei a fumar e a mandar vir café.
E então? Então, agora sou um desses homens que jantam em pensões tomadas pelo desamparo. Janto sozinho, fumo sozinho e aguento sozinho com a invariável SIC. Os restaurantes de Lisboa estão todos ligados à Grande Irmã de Carnaxide. No penoso momento em que escrevo esta inutilidade, passa o programa Ai, os Homens!. A convidada do rapazelho Figueiras é aquela cachopa antiga que parece ter ido buscar aos miolos o plástico suficiente para os esticanços da pele das bochechas – O., a Amiga O..
A Amiga O. está debaixo de um penteado muito louro, muito amarelo-farmácia, com rabo de cavalo soerguido à maneira de quando os quadrúpedes se aliviam.
A minha mágoa é eu ser apenas este homem que mete comer na minha mesma barriga, é eu ser o portador desta mão direita impotente e calígrafa. De outro jeito dita a coisa, a minha mágoa é não ser o Super-Homem. Não o de Nietzsche, mas o Clark Kent. Que me lembre, o Clark Kent despia-se mais depressa que a Sofia Aparício e fuzilava a laser os bandidos siderais que desde sempre inquietaram os Estados Unidos. Se eu fosse o Super-Homem, nunca jantaria sozinho. Iria a voar em busca da Amiga O. e trazia-a para o restaurante. Punha-lhe bifes de cavalo à frente. E depois dizia-lhe assim (num Português com sotaque de Krypton): “Agora, come e cala-te; se não, ligo o laser.”
Em Junho de 1990 (menos de nove anos depois, portanto, de ter começado a fumar), vivi uma honra terrível: fui padrinho da Marcha da Fontela no S. João da Figueira. Ganhámos, claro. E digo “claro” sem quaisquer vaidades bufas. Sempre que participou no S. João, a Fontela ganhou. O dia virá, talvez, em que não vença a suave competição de tanto entusiasmo popular. Não interessa: nesse ano, a gente da Fontela tirou-me um pedaço do coração para que eu o pudesse ver, um dia, à lareira. E é o que estou a fazer sem quebras há seis anos e meio. A lareira está acesa e chama-se Memória.
Quando se fala de divertimento popular, não é obrigatório que a coisa seja pimba, foleira, pirosa. Pode ser alegre sem ser ridícula, pode ser preciosa sem ser joalheira, robusta sem ser gorda.
Entre o S. João da Figueira e a SIC, prefiro o santinho. Nesse Junho já remoto, senti-me como um super-homem. Mas não convidei a Amiga O. para jantar nem bebi chá de limão.


A Linha do Oeste, Figueira da Foz, 20 de Dezembro de 1996

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Canzoada Assaltante