31/12/2005

2006 feliz


Sois vós a dar sentido a este sítio. Ah pois sois. Feliz 2006, gente!

Seguimento

Algumas mulheres (nem todas, é certo) exercem um poder fundador.
Adquiriram algures, não sei como nem quando nem para quê, o direito de cidade.
Exercem-no, é tudo quanto sei.
Daí que a economia, a da casa como a da rua, lhes fique bem entregue.
Algumas caminham mercê de colunas sobre que o perdido homem de Deus fundaria o Seu templo.
Não no pode.
O mais que pode, é entregar à mulher o seu dízimo de esperma e a confiança total quanto à hora do pão.
Depois, seguir-se-á o festim das nascenças, o carnaval oblíquo das parecenças, a insensatez do amor regular.
Nada lhes importa, a elas.
Seguem monstruosamente erigindo a ossatura tabernácula da solidão por mor da cria.
Pode ser, também, que nada disto seja assim.
Tudo bem nesse caso, ó sô Zé.
Siga.
Tondela, anoitecer de 30 de Dezembro de 2005

30/12/2005

O Olhar do Pedreiro de Jazigos

para o Fernando Nabais, amigo máximo



As casas resistem ainda ao olhar
um pouco menos do que à chuva
mais porém do que o pedreiro
e a pontuação
É da natureza das coisas ser da natureza dos dias
como da natureza das noites é
fundir tudo em uma amalgamada cristalina
natura
Por exemplo escuros pêssegos escuros cães escuros pátios
escuras amêndoas escuras avós
escuros medos
Tive um claro sonho
claro não seria se não tão claramente
o não recordasse ainda
isto vos conto
Jogar-se-ia a bola a um cesto num cemitério
em hora e dia de visita aos amados defuntos
a que permanecemos mais que eles
fiéis
marias joaquinas carlos ruis serafins manuéis
eu estava demorando por ali meus ossos vivos
meu vivo sangue minha carne viva
minha aberta ferida de ter
também eu
um morto a quem visitar
um som soou a bola acabou
rodaram de pedra as portas
os brancos mortos
mortas fotografias de si mesmos
em carne não viva de si mesma
apareceram
que tristeza foi aparecerem
à própria visita
em suas mesmas casas
resistindo à chuva
à pontuação
e ao olhar do pedreiro.



Botulho, noite de 27 de Dezembro de 2005

21/12/2005

Boletim Agrário

A fria noite amarfanha suas irritadas crianças
Confinadas aos quartos como aranhas de gelo
Nos pátios cristalizam os inúteis cães de caça acorrentados
As figueiras vigiam as demandas dos livres gatos
A Lua borra de cal molhada o céu de aviões
As aldeias papilam no veludo como giz esmigalhado
Conto os passos pelo esmigalhar da brita
Finjo tratar-se de areia sob outros pés os mesmos em pequeno
A outra temperatura longe da montanha glaciar
As pastelarias espaciais viajam na solidão sideral
Uma após outra no espaço-alma-tempo-ser
Frases rápidas parecem versos ditos a ninguém
Reclamos luminosos escaqueiram latim eléctrico
Nec ultra sine pro ab super cum a de te plus
Amanhã começa outro ontem
As pombas e os falcões assinalados sobre a rotunda
As casadas e as púberes e os malquistos e os imigrantes
As taxas de juro e o comércio e a feira de máquinas
E a nova novela do horário a que chamam nobre
E a esperança essa velha paspalhona.
O futuro semeia-se todos os ontens
Conforme o frio.


Tondela, noite de 20 de Dezembro de 2005

20/12/2005

As Pastelarias Espaciais

As pastelarias da modernidade são máquinas espaciais.
Não se deve mexer nos comandos nem na tripulação - a caixa registadora, as empregadas.
Cada viajante deve embarcar sozinho e assim se manter todo o inverno da viagem.
O televisor assegura a anestesia da memória.
As manhãs do televisor são para as velhinhas.
O casal de apresentadoras, composto de uma mulher amarela e de um mulheromem, parece um par de catarinetas fermentadas.
As refeições servidas a bordo separam os blocos de sono.
As tardes têm cantores de pleibéque inodoro.
As noites dão crimes solúveis como café sintético.
Há bolos.
Tondela, tarde de 20 de Dezembro de 2005

Carta Militar

Tondela, 10.XII.05

Aurora, meu amor, minha nespereira

Que me importa a mim que o teu amor esteja morto, se o meu nasce todos os dias em honra do teu nome? Escrevo-te na messe da imaginação. Escrevo Aurora de noite. Escrevo-te sempre, até, ou sobretudo, quando não escrevo fisicamente. Quando instruo rapazes mal-homens, quando marcho picadas incultiváveis, quando armo mãos e braços improváveis, quando atravesso rios de águas que não são para beber nunca mais, continentes, cabeças de gado que não pode compreender homens que não compreendem como gado. A guerra de fora, sabes, nada é, comparada com esta minha de dentro. Já perdi ambas, bem no sei de sobra. Ainda assim, não soçobro. Que valente herói sou e pareço, que não pereço. Por ti? Não, Aurora. Por mim. A rejeição acaba por voltar o amor contra um si mesmo, como uma pistola de suicida. Assim me despeço, como disparando. Adeus, Aurora. Amo-me.
Valentim, alferes de Artilharia

19/12/2005

Tanguinho Valseado para Mentir a Meninas

TANGUINHO VALSEADO PARA MENTIR A MENINAS
mais outras canções de desagravo



para o Zeca Medeiros, Amigo


1. TANGUINHO VALSEADO PARA MENTIR A MENINAS

Vê se me tiras de cima
Os quilos do teu coração
Preciso duma aspirina
Pr’àsfixia da paixão

Eu preciso de sossego
Já sou meio secular
Durmo de dia sou morcego
À noite só quero luar

Na rua sou cão vadio
Passo fome passo frio
Minha própria sombra puxo
Vísceras roo corações
Já não lato por salões
Como os teus cães de luxo

Em bairros de fama triste
Fadistei outrora em riste
Navalhagens circunspectas
Hoje reformei viola
Nem bilhar nem carambola
Nem tacadas predilectas

Vê pois se me abandonas
E se me deixas partir
Para mais muito ressonas
Quero morrer quero dormir.


2. SOMBRA

Sombra transparente pasta por mim
Indecente como gente afinal
Animal inclinado que de mim somente
Dormente cai meu lastro letal

Branca de gaze cortina
Sombra minha de menina
Fátua forma fantasmal
Um homem outro no chão
Dormindo o próprio coração
Aos pés tão vivo o animal

Consciência medo existente
Quarto fechado poente
Liga a luz ó meu amor
Eu prometo não ser sombrio
Liga a luz eu tenho frio
Nua sombra sou de vapor


3. CAPITÃO

Trinta vezes sou capaz
Uma vez repetirei
Meia vez serei rapaz
Duas vezes meio rei

E tu só minha rainha
Trinta filhos esponsais
Cem amantes à tardinha
Juro eu que nunca mais

Leitões faisões douram espetos
Sáveis e maracujás
Convidados diplomatas
Grães-vizires e marajás

Capelães e capelistas
Saiotes e espadeirames
Caparão nossas revistas
Pintarão os macadames

Seremos reino dourado
Coutadas sem fim à vista
Sacos de oiro não contado
Capelão e capelista

Os pobres não serão pobres
Antes nobres serão todos
Todos servidos de cobres
Todos com bolos e bodos

Os palafréns arreados
De mortalhas de organdi
E os donzéis mais virginados
Com virgens de lazúli

Será este o nosso amor
Daqui até ser Sião
Deixa-me só por favor
Ser eu o teu capitão.


4. DEIXAMENTO


Deixa-me só por favor
Quando é companhia que quero
Não me acompanhes no perto
Quando é por longe que te espero
A loucura tem matizes
Como as bolas coloridas
Como os olhos e os narizes
Dos palhaços suas vidas
Suas lonas alfarrábias
Suas risadas loucas sábias
Suas tendas estendidas
Deixa-me longe sem favor
Me amar sem ser amor


5. FADO COM SAÍDA À FRANCESA

(Entrada sincera, dizendo

A minha alma é uma criança mal educada pelo vento. Deita-se na erva de barriga para o ar e espera que o sol a alimente de borla. A minha alma não gosta de trabalhar. Canta fados e depois espera que chova só lá fora.

Canta)


Figuras magras de viela mal acesa
Que da pobreza mal retratam o bolor
Barcos sem mar que um dia por tristeza
Fizeram de seu mal um dó menor

Gatos e ratos cascas solas de sapatos
Bacias espinhas peixes divorciados
Polícias penhores loiças facas e retratos
Casas de tias sobrinhos vinhos fados

Não há Lisboa p’ra ninguém
De onde vim mais ninguém vem
Deixei tudo arrumadinho
Agora azeitonas queijo e broa
Não há pátria não há Lisboa
Que haja ao menos um jarro de vinho.

(Saída à francesa, dizendo

O meu corpo vai-se embora um dia e há-de ser de noite, aposto. Dez contra um, mil contra um, contra nada, contra mim. Eu já cantei. Assim seja, que há-de ser assim.)





Daniel Abrunheiro
Tondela, 16 de Dezembro de 2005




14/12/2005

Natal Cínico

Natal não é assunto de que me apeteça falar em Dezembro, até porque a quadra começa cada vez mais cedo, Novembro, Outubro, Setembro, qualquer ano havemos de estar na praia em Agosto ou Julho e uma sacana duma avioneta há-de passar com um pai-natal insuflável no rabo a dar às barbas vendilhonas nos céus comerciais.
Natal? Na tal coisa de que falamos, a sociedade anónima empanturra-se de nada que brilha muito, comprando muito o que vale nada. As criancinhas aprendem nos hipers a cobiça consumista, os velhinhos resmungam nos lares a artrite e a artrose, os adultos passeiam nas ruas a falência envergonhada e os ricos musculam nas assembleias a vergonha falida.
Nas lojas honestas, os comerciantes sustentam as moscas antigas com vinagre novo. Nas estátuas novas, floresce já o musgo do esquecimento. Nas cervejarias, as classes envelhecidas das antigas primárias tremoçam e imperializam como reis magos que foram beber e deixaram os camelos lá fora.
Tudo isto é, admito-o sem rebuço, algo cínico. É da minha infância sem catolicismo, explico. Cresci sem mistério. Boa vontade a sério, só a do merceeiro. Paz na terra, só quando a tasca fechava cedo. Amor e tal, só de ouvir dizer. Cinismo é, aliás, uma corrente filosófica grega cuja raiz etimológica é cão. Segundo essa filosofia, o ideal humano seria a imitação do comportamento animal, no que ele tem de puro, de não interesseiro, de genuíno, de vital.
Pensando bem, se o Natal humano fosse mais assumidamente cínico e menos, por assim dizer, natalício, talvez fosse mais cristão. E menos humano. Isto é, menos vendilhão. Ou não. Talvez eu esteja só a ser camelo.

10/12/2005

Nacional de Hipérboles Peca por Exagero



Realizou-se na Cova da Piedade, com manifesto gozo da Piedade, o I Nacional de Hipérboles.
O primeiro concorrente era cá de Setúbal e tirou do nariz matéria primata a suficiente para calafetar um petroleiro sueco.
Seguiu-se-lhe uma senhora virgem de Fátima, que foi eliminada por falta de originalidade. E por descúnfia.
Concorreu também um autarca que garantia, sem se rir, ser a favor da limitação de mandatos, além da limitação de felgueiras, valentins e de autarcas a sério. O concorrente chamava-se Miguel Bombarda, calçava sapatilhas brancas e tem sido avistado a cravar cigarros e a beber vermutes nas crónicas de António Lobo Antunes.
Camões concorreu postumamente sob o pseudónimo “Vasco Graça Moura e Pereça”, o transsexual que, sob o heterónimo “Guta”, foi recentemente corrido do CCB por causa dos seus lindos olhos e por ter conseguido casar com a filha de Miguel Torga. Teve má fortuna e aguardente. Não o torne o tempo a dar.
A última concorrente era dupla, na pessoa geminada de um matrimónio siamês de espanhol com holandês mais um cabrão maltês arrecobicho 1-2-3.
De modo que a coisa foi ganha por Teresa Guilherme, secretamente casada com Manuel Luís Goucha, o também apresentadora que assumiu chamar-se doravante (camarada) Manuel Luís Gouchilherme.

09/12/2005

Stock

(O que ganho destes dias é a tapeçaria nervosa de referências para memória futura. Passo, aliás, a enumerar antes que me esqueça:)

Os azulejos daquela casa azul onde não vive alguém
O cão solitário que mira as laranjas para ele cinzentas
As vivendas-cogumelos a que acorrem as famílias-musgos
A robustez leitosa da moçoila que freme dedos de farinheira ao lavar de adeuses a janela
A tinta-da-china do pinheiro manso no papel-de-seda da respiração
As notas do piano dentro da cabeça para mais ninguém
O fumo do cigarro em repouso subindo a prumo perfeito antes de enlouquecer
Os automóveis em fila na noite como carneiros heterónimos
O caos arrumadinho da existência em stock

(Para consulta integral do stock, virar tapeçaria do avesso.)



Tondela, Padaria-Pastelaria Rosicar 2, noite de 9 de Dezembro de 2005

Alguns Outros Dias

1. XZ
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005



Palpititilações luminosas de município fililampam ao longo do rio e das autovias. Faz um frio que aperta o ar em torno de ferro. Carros piriluzem mínimos. Pobres-de-pedir ombreiam cartões-embalagens de fogões sem fogões dentro. Fitas de strapex pendem dos pobres como suspensórios de duro plástico agrafado aos pobres. Temperatura do ar: xis. Hora: zê. Autocarro carregado de fadistas conduzido à viola por homem de patilhas com caspa – passa no frio escuro da noite como uma árvore de natal deitada a preto-e-branco. Igreja antiga restaurada em centro comercial: bancas de florista, troféus & medalhas, snack, perfumaria, mercearia, chinês, cabeleireira. Ontem, hoje e amanhã. Escola nocturna: entrada e saída de trintões e quarentões em busca do liceu perdido. Gárgula do fontanário, mercado municipal fedendo a peixe e a tripas de couve, elevador dos ceguinhos da lotaria, previdência, cisnes, palmeiras chicoteadas por si mesmas, bancos nocturnos polidos por cus aposentados, avenida inclinada como um copo e uma boca, a praça republicana, o jardim lúgubre onde a pederastia coxeia o sexo abútreo e tristonho de um desejo por rotina. Paragem para uma chávena escaldada no café com nome grego, escadarias já antigas que abrem para o absurdo, absurdo não sei porquê, a evidência aí está. Globos cor-de-laranja haloados de pó de chuva, farfalhados pela ramaria das árvores mais circunspecta do mundo, passos teqteqteqteq na calçada, um pouco de fadiga muscular. Decidir-me pela direita, curvando depois à esquerda descendente como o comboio da canção, desembocando na garagem do sapateiro, depois na garagem do fruteiro, no papa curto, no S. Sebastião aliviado de flechas, sentindo já a paraplegia académica de la tradition, os volumétricos colhões d’el-rey D. Dinis, o território dizimado da antiga Alta. Nasceu por aqui muita gente, de X a Z.

2. O que É
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005

É o meu mundo.
Vou querendo outros.
Enquanto assim, menos mal.

3. Diagrama
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005

Extrema delicadeza no desenho
feito pelos pássaros no ar.
O mesmo a dizer das árvores,
com menos acção embora.
Os homens que trabalham na estrada
formigam de crude e máquinas.
Também desenham, por grosso
e atacado. Reservam forças para a
noite, para as mulheres, para
outros homens.
Tudo isto visto do cimo, dá um
diagrama mais do que apenas
humano. A arvorestação, o
picotado da passaragem, a
linha hominiviária.
É um diagrama, isso sim, muito
delicado: é um diagrama
extremo.

4. Conta
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005


Estamos por nossa conta
no espaço sideral
aberto ao infinito
além da escotilha do avião.
Inumeráveis nuvens-ovelhas
róseas-argênteas da eterna alba-noite.
Não é já a vida.
Não é a morte ainda.
É apenas a nossa conta.

5. O Leal Jardineiro
(para John Le Carré)


Tondela, 6 de Dezembro de 2005


Pode a tarde ser deserta,
Ser sombria e invernosa.
Tens a escrita pulsaberta:
Refulge e explode, feita rosa.

6. Relatório
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

(Escrevo à noite, dedicatório, votivo.)
Perfumado ainda dos pinhais de ontem.
Visão perfuratória dos animais.
Cabelo contado.
Pele esfregada a sabão.
Frio concreto como cimento líquido.
Árvores mais densas.
Senhoras velhas mais velhas.
Roda dos dias amaciada pelo
deitar-cedo-cedo-erguer.
Inflamação no olho esquerdo
resolvida ao espelho, como
tudo.
Detroit continua a dois e 20,
por enquanto.
BT prepara Operação Natal&AnoNovo.
Alguma música (pouca) nos
interstícios das horas.
A paciência feita saber.
A amizade tida por certa
e a regularidade da caligrafia.

7. Saudades à Prima
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

Cercada pela geometria implacável da vilacidade, a floresta primeva resiste, implacável também e mais ainda até. Sobreviverá aos incendiários, mais que ela combustíveis, e ao cimento. Tem a pedra do lado dela. O tijolo escaqueira-se como os ossos. O mar voltará a estas areias montanhosas e escuras. Sinto-o com nitidez, a milénios de distância (para trás, para a frente) o sinto. Nem me preocupa a eventualidade de ter razão. Estaremos, então (para a frente, para trás), devidamente disseminados pelas fluências combativas: o mar de nuvens-medusas, o horizonte de árvores-barbatanas, os ranchos de peixes falantes, as desaldeias de casas submarinas.
Calma: todas as saudades terão sido mortas.

8. Palavras Encruzilhadas
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

O homem-silhueta parado-a na encruzilhada.
Vai-se embora o homem.
Fica a silhueta.
Nasce o Sol, o homem volta.
A Lua leva-a.

9. A Criação Húmida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

O homem molha a mulher
que absorve a hum(na)idade
do homem que buscou na mulher
a morte temporária do
orgabismo
e a encontrou.
Olhada
molhada
a mulher
que ama na cama
a carne de lama
do homem que quer
sente a trepadura
adentro de ela
da nova criatura
o novo homem-ele
a nova mulher-ela
que do abismorganiza
a trepadela.

10. Ração
Tondela, 7 de Dezembro de 2005


Por uma questão de economia emocional,
racionar a dor em porções de alegria.
E ir ao talho como à peixaria.

11. Teias
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

No tálamo, enrodilhar
os olhos nas teias de várias
aranhas: os amores secos
como moscas.

12. Estação de Ferrovida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005

Enquanto não é tempo do comboio
curtir a estação as estações
a primavera das revistas do quiosque
o inverno da cafetaria
o verão das mulheres que esperam de pé
o outono dos pássaros nas linhas de música dos telefones

13. Relógio
Tondela, 8 de Dezembro de 2005



O Sol, muito aberto, não subsidia a leitura, que se quer fechada em si mesma e penetrada, só, dos ventos molhados dos outros dias que rastejam chuvas horizontais sobre pedras negras. Hoje, assim não é. Pelo contrário. É tudo oiro novo. Parece que toda a gente lavou os carros e a cara. Famílias pastelejam com avidez e cafécomleitam-se em manada manhã cedo, rouquejam, grunhas, propinas e impropérios de ralhete alimentício-carnal, com celofanes de folhado farinhento adejando nas beiças lustrais. No fim, semelham gatarrões saciados de nutrição sustentando a sangue mole moscas diagonais nos vértices egípcios das orelhas. Para piorar muito o cenário, é dia feriado. Religioso, ainda por cima: da Senhora da Conceição de uma religião anticoncepcional.
Tenho algumas horas para ser feliz. Neste momento, uma figura chamada Justin Quayle viaja em busca da compreensão do passado. Revisita as acções de sua defunta esposa Tessa. Vou na página 192. Se chovesse, leria decerto mais depressa. Mas tudo tem o seu tempo. Hoje, o tempo é marcado, e aberto, pelo relógio do sol.

14. Ela-Leão
Tondela, 8 de Dezembro de 2005


Cabeleira de um fogo ensanguentado. Sardas no rosto de um desenho forte. Olhos preocupados com a savana interior. No exterior, roupa negra: seda e couro. Argolas de prata sinalizam a audição, dentes rijos marcam a natureza e a função predatória do animal. Recebe uma amiga com uma imitação de sorriso-delta. Agradece ao empregado o gesto de abaixar o estore. O sol incendiava-lhe, mais ainda, o sangue da cabeça poderosa: leão em chamas. Não leoa mas leão, dada a juba.




07/12/2005

O Cedro e a Lua - XV - 18 de Novembro de 2005 - Alta

HSC, 18 de Novembro de 2005, 6ª feira, 8h09

Derradeira manhã inicial. Despertar às rigorosas 7h00. Banho. Nada para comer na gaveta da cabeceira. Vestir. Descer, ir às laranjas. Colhi uma mão-cheia para consumo da casa. Não muito doces, mas totalmente frias e totalmente de oiro. A boca agro-agradecida. Um começo vitamínico. A malta vai surgindo no terraço. Dois jogam matraquilhos na sala-de-convívio. Ab., de boné verde e excelente disposição, demonstra um sentido de humor que me encanta sem reservas. Conversa de matinadores.

Mesma manhã, 8h53

Ontem à tarde, acabei a Mocidade do Conrad. E à noite, a magnífica 2ª Série dos Textos de Guerrilha do magnífico Pacheco. Impressionante, a demonstração cabal (cf. O Caso do Sonâmbulo Chupista) de como Fernando Namora plagiou Vergílio Ferreira. E como pode tudo isto ter ficado em águas-de-bacalhau? Se, via Nuno Moura, vier a conhecer, como espero, o Vítor Silva Tavares da &etc., gostarei de tirar esta porra a limpo. Esta e outras: Luiz Pacheco é um mundo. Na 1ª Série dos Textos de Guerrilha, ele até refere a passagem do Serviço de Alcoologia, em Coimbra, de Celas para o Sobral Cid. Trilhos comuns no desmesurado mundo breve.

Mesma manhã, 9h45

A doutora P. já cá está, cedo veio. S. ainda não chegou. Está uma manhã de santos. Vivi duas semanas e uma manhã sem sinais de trânsito quase, quase sem bulício doloroso. O velho senhor J., que passa a vida a perder dinheiro e objectos, vê-me a escrever.
– Isso é um bom entretém para passar o tempo – diz-me.
Escuso de dizer-lhe a minha verdade: “Senhor J., isto é o Tempo.”


FIM
(?)

06/12/2005

O Cedro e a Lua - XIV - 17 de Novembro de 2006

HSC, 17 de Novembro de 2005, 5ª feira, 7h49

Despertar pouco depois das 6h00, justatempo de estar revivo. Um kiwi, uma laranja, um banho forte, extenso, esfregado. Um cigarro fumado com mais dois camaradas no cubículo do lavatório-sanita. Risotas matinais. Cachopices adultas. Mais de uma hora para o pequeno-almoço. Já deu tempo para ler as seis páginas de Uma Viagem quase Trivial, história pachecal inserta na 2ª Série dos Textos de Guerrilha. Agora, uma volta ao ar livre, fino, frio e lavado do novo dia, rasando o cedro titular na manhã escrita.

Mesma manhã, 8h29

Duas voltas higio-respiratórias (mas com tabacório) em torno dos pavilhões 3, 2, 1. Primeiro, só com CMS. Depois, também com FP e JH. Na volta, comentamos a boa qualidade da terra para ervilhal na quinta de Terapia Ocupacional. E CMS dá-nos noção de poda de árvores. Não deixar medrar de mais, mantendo a folhagem. Recorre a palavras como “canoco” e “olhos”: palavras vegetais de uma ciência tão antiga. Ouço calado, vendo como salta, recolhe um “braço” frágil e o “limpa”. Gente da verdade das palavrárvores: gente de verdade, gente de palavra.

Mesma manhã, 10h59

A partir de segunda-feira recente, a mudança de certa pastilha tem-me dado uma seren(al)idade diferente: mais laxa/lassa, sobretudo no termo matutino, uma pax química desfrutadora de arborescências e oxigenações. Bons despertares, bons duches, bons pequenos-almoços. Mas, também, leitura mais vagarosa e mais lerda dos escritos alheios (Pacheco e Conrad, de momento). Não muitos cigarros. O café, em copos de plástico, muito apreciado, em aroma, calor e doce, na língua e no palato e na respiração. A caligrafia, ela-também, um tanto incipiente, escolar, pueril. Muita decisão necessária para um passeio ao ar livre, a escolha de má poltrona de napa na sala-de-convívio, a aceitação ou a declinação de um convite para um par de partidas de matraquilhos ou sueca. Erotismo, nenhum. Nenhum pendor recordatório-onanístico. Nenhuma epifania de pensão: nenhuma micção científica, portanto.

Tarde de 17, 14h10



Mulher oriental em renque de árvores:
japonesálea.
Homem de blusão amarelo: um português impermeável
de sapatilhas brancas.
Visões no regresso pós-prandial da cafetaria.
Sossego solar.
Digestão farmacológica e de bacalhau.
Calma.
Pés quentes, forrados a lã e cabedal.
Mulher passando na estrada (quinze
metros, ombro direito da visão), casaquinho
de lã cor-de-tijolo. Também
portuguesa: de óculos.




Mesma tarde, 16h20

Alta – amanhã de manhã. Consulta com a minha médica e a minha assistente social. Tudo encarreirado. S. amanhã, também, na consulta de saída. Boa notícia. Não beber. Viver. Escreviver.


Noite de 17, 18h17

A degradação continua. Nos termos do Hospital, a instituição não se responsabiliza por empréstimos, dívidas, negócios estabelecidos entre os doentes. Louco por tabaco, o deprimente/depressivo/deprimido/divorciado/doente/decadente/CMM acaba de vender o (bom) casaco por dez euros e um maço de Detroit a HM. Já está lá fora a fumar o primeiro dos 20 cigarros. Veio logo dizer-me que “quando receber os dez euros do casaco” (isto é, vendeu fiado), me paga o que lhe emprestadei. Disse-lhe que esquecesse. Vou-me embora amanhã. Isto entristece. JH usa a pulseira de prata ex-CMM. HM deve os dez euros a CMM, além de dois que pediu emprestados hoje à tarde a CMS para comprar um maço de tabaco (o mesmo com que “sinalizou” a aquisição do casaco a CMM). Hospital/hospício/presídio: alma, mala (em castelhano, ), lama (em português).

Mesma noite, 21h33

Antes do meu derradeiro chá-bolachas (a que aqui se chama “ceia”) deste internamento. Sessão vitoriosa de sueca. Eu e HM despachámos, primeiro, JH e CMS, depois FP e RC: parciais de 5-2 e 5-1, respectivamente. CMM, afinal, fica mais tempo. Falou com a assistente social. Vai ter visitas de família (talvez até do filho e da ex-mulher) na 2ª feira. Espero que lhe tragam roupa lavada e dinheiro. Por dignidade, que não por esmola. Quanto a mim, volto à civilização da barbárie. “Barbárie” começa, naturalmente, por “bar”: cuidado com o cão. Com o “alcãoól”. Raios partam o coparete. Desenvolver, quanto antes, a história de Camilo Ardenas. Estudar muito, ler muitíssimo. Dar explicações a xis euros à hora (falar com o Fernando Nabais a propósito): possibilidade. Ler Lowry, Beckett, Faulkner, Pinter, Platão, Sófocles. Tudo isto é tão fácil, que basta estar vivo e sóbrio. Só brio.

05/12/2005

O Cedro e a Lua - XIII - 16 de Novembro de 2005

HSC, 16 de Novembro de 2005, 4ª feira, 8h27

O clarim do despertar foi às 6h40: JH e FP já conversavam. Juntei-me à conversa, fomos às abluções. HM deixou-se ficar mais um pouco: a gripe deixou-me para o tomar a ele. A banana do jantar serviu de desjejum. Expedição às laranjas com CMS: um êxito retumbante. Em fura-regras, fomos à cafetaria dos doentes para um primeiro café clandestino. Lixámo-nos, eram só 8h00 e o tasco só abria meia hora depois. Regressámos para partilhar as laranjas. No caminho, vi no chão uma borboleta mínima e de perfeita simetria branco-prata. Consultei os pratos da gata: limpos, depois dela, pelos canitos da madrugada. Cena triste: CMM anda a perguntar a cada um dos outros “como é que pode ser amigo”. E tentou vender a pulseira de prata (de prata como a borboleta do chão) a Ab. por dois euros. Desesperado por tabaco. Dei-lhe um cigarro. Mas é um sem-fim: privado de cigarros, só pensa em cigarros. Vou dizer-lhe que fale com a assistente social para que o que lhe resta de família lhe envie algum dinheiro. Disse-lhe agora mesmo. Suspendi a escrita e fui dizer-lho. Respondeu-me que tentou ligar ontem para casa e não conseguiu. Ab. não aceitou o negócio da pulseira. Emprestadei-lhe dois euros e vinte cêntimos para um maço de Detroit, novidade no mercado.

Mesma manhã, 10h44

Não sei quanta, nem que qualidade de, verdade há na história, mas conto-a na mesma começando por – Parece que o Carlitos, do Pavilhão 2 (Crónicos Vitalícios), viu os pais morrer num acidente. Daí que hoje ainda, tantas décadas depois, diga “…’nha Mãe, ‘nha Mãe!...”. Não sei. Dou-lhe açúcar, laranjas, compro-lhe bolos (os maiores do expositor da cafetaria), limpo-lhe a boca e o queixo e componho-lhe as calças e o casaco. É o posso fazer de maternal.

Tarde de 16, 14h19

Entre as 11h30 e as 12h30, Terapia Ocupacional no piso superior do Pavilhão 3. Comovida, a terapeuta informou-nos de que as sessões vão acabar, pelo menos ali, por “decisão superior de serviço”. A tarefa da sessão era uma folha branca dividida em seis: Solidão, Felicidade, Medo, Sabedoria, Velhice, Amor. Tínhamos de desenhar simbolicamente os conceitos. Houve resultados lacrimosos, pensativos, humanos, decisivos, irrisórios, inapressáveis, inapreçáveis. E solitários, felizes, medrosos, sabedores, velhos e amorosos. Agora, acabam. Depois, continuam. Noutra sala, noutras vidas, noutros alcoolismos.

Noite de 16, 18h32

Cena chata: por volta das 16h00, eu e CMS (que agora à noite me apresentou os filhos em visita) fomos, à revelia do regulamento, tomar café e comprar cigarros à cafetaria. Azar: ele teve uma visita não prevista duma assistente social da zona de residência, que perguntou por ele, que não estava, que chegou à psiquiatra, que telefonou para a cafetaria, que respondeu termos lá estado. Resultado: ambos, um de cada vez, pedimos desculpa aos enfermeiros de turno, que levaram piçada da médica-chefe. Ainda por cima, sem culpa nenhuma dos enfermeiros, posto não ter sido no turno deles que a nossa infantilidade foi praticada. Outra coisa (bem mais) degradante: apesar de ter comprado cigarros com o dinheiro que lhe emprestadei, CMM continua a tentar vender a pulseira de prata. Acho que JH vai aproveitar a pechincha. CMM quer “dois euros e um maço de tabaco” por ela. JH só quer dar os dois euros. CMM diz que me paga os dois euros e vinte cêntimos “sábado ou domingo”. Vai-se embora, diz ele, por ter falado com a médica. Mais do que alcoolismo, o problema é a longa depressão decorrente da separação/divórcio. Ele não queria, a ex-mulher não queria outra coisa. Ele quer voltar ao trabalho. É carpinteiro de cofragens na construção civil, não ganha mal. “Ganhas para o tabaco”, penso eu. Diz que não pensa tanto nas coisas más, trabalhando. Tem razão, claro. Vou ver do negócio. Degradante, degratriste negócio de prata de borboleta deprimida.

Mesma noite, trinta segundos depois

Negócio feito: por dois euros e um cigarro. JH declara:

– Ó Daniel, eu já cá ando há muito tempo! A pulseira é para a minha mulher.

E pronto. Afivela-a ao próprio pulso, em guarda de fiel depositário. Mankind must goes on, como dizem os de Setúbal.

Mesma noite, 19h30

A felicidade não resiste à análise.
O inverso é igualmente verdadeiro.
(Ou talvez ambos os raciocínios sejam da medicação.)

Mesma noite, 20h16


O Cedro e a Lua

O Cedro na noite.
No topo do Cedro, a Lua.
A Lua no topo do Cedro como
um pensamento de
banda desenhada.
Desenho o pensamento:
um homem-silhueta,
num terraço de alcoologia,
visto de costas.

03/12/2005

O Cedro e a Lua - XII - 15 de Novembro de 2005

HSC, 15 de Novembro de 2005, 3ª feira, 10h45

Falo com Ab., de perto do Senhor da Serra, Coimbra. Ao sol, no terraço, sob os chapéus de pano azul seguro por varetas brancas. Diz-me ter, como eu, duas filhas. Uma de 25, outra de 13. Diz mais. Tirou o filho mais velho de uma fossa, morto por intoxicação/afogamento. Outro filho nasceu-lhe morto. Estas pessoas, estas vidas, estas mortes, estas histórias, estes terraços ao sol, estas eternidades.

Tarde de 15, 13h56

Entre as 11h30 e as 12h30, uma sessão de Terapia Ocupacional. Representar “A Minha Família” através de recortes de revistas colados numa folha de papel. Pus velhos (Os Mais Velhos da Família), política e futebol (Aquilo de que se Fala). Não representei as minhas filhas. Depois, fiquei a olhar para a folha.

Mesma tarde, 15h49

Visita retemperadora de S.: solidariedade vital. Até que enfim.

Mesma tarde, 16h41

Discussão grossa. Vozearia no terraço a propósito do mais precioso e apreciado bem material de qualquer internamento (voluntário ou compulsivo, hospitalar ou prisional): o tabaco. CMM não tem dinheiro. Portanto, pede cigarros a toda a gente. Quase toda a gente lhos nega. CMS ralha com ele. Chama-lhe “chulo” à frente de toda a gente. Acusa-o de “explorar” o velho J., de ter tentado roubar um maço da mesinha-de-cabeceira de P.. Cena chata e constrangedora. O réu encolhe-se, a depressão que aqui o trouxe deve estar a aumentar graus e graus centígrados, o silêncio incrimina-o à vista armada. O acusador, impante de razão, tosse justiça. E puxa de um cigarro.

Princípio da noite de 15, 18h24

Na última incursão do dia à cafetaria dos doentes, aprendo o nome de duas árvores: carvalho-indiano e pimenta-do-reino. O HSC é, também, um Jardim Botânico. Mercê benigna, vá lá, do salazarento Bissaya, a folha do carvalho-indiano entontece de tão bela. À luz solar, enrubesce como uma deliciosa obscenidade geométrica. É de uma cor mais virtual que deste mundo. Ganhei absolutamente o dia, reconhecendo-lhe a cor e, graças ao enfermeiro V., conhecendo-lhe o nome.

Um minuto depois

Combinações secretas do Comité Secreto Para a Alimentação da Gata Benfica Contra a Ordem dos Enfermeiros (CSPAGBCOE): cortar uma garrafa de plástico de litro e meio de modo a obter um copo (que esconderei no meu saco de livros e cadernos) em que lhe levar os restos do jantar. Ontem, resultou em papel de guardanapo. Mas hoje, ao almoço, precipitei-me e fui detectado pela enfermeira, que topou a posta de raia embrulhada. A enfermeira, simpática, contemporizou e deixou andar. Eu e CMS presidimos, vogalizamos, fiscalizamos e assembleamos o CSPAGBCOE.

Mesma noite, 19h50

Operação CSPAGBCOE coroada de êxito: uma pratada de arroz de galinha para a gatosa. A comida foi acondicionada a preceito, o animal comeu até as orelhas lhe mudarem de sítio. Passei-lhe a mão pelo espinhaço. Ronronou como um cobertor lavado, mais que linda. Vejo-a agora: trepou para o balcão do terraço, recortando a silhueta farta e formosa e felina contra a matéria álgida e agra e argêntea da Lua Cheia. “Uma tremenda solidão animal”, sinto (e escrevo), sem bem precisar a que(m) me refiro. Só como um homem louco, desses que por aí vejo, como aquele que cospe – e o cuspo sai-lhe da boca em esparadrapo, grumando-se em trapézio à queixada. Mas só a solidão é afim da gata com o homem louco. Ela é muito limpa, muito lúcida, toda de inteligentes bigodes que vêem no escuro, de assassinas patinhas de feltro corr(o)edoras do silêncio da noite, da Lua. Belo bicho.

Mesma noite, 21h13

A Assembleiólica assiste ao futeboólatra: até ao momento, Irlanda do Norte, 0 – Portugal, 1. No intervalo da partida, cigarradas no terraço e combinação de surtida matinal às laranjas: CMS et moi. Tudo pela vitamina C, pela aventura, pelo retorno à infância cleptofrutívora. Daqui a umas horas. Entre estas linhas e as laranjas, o futuro de uma noite mais. Golo da Irlanda do Norte.

02/12/2005

O Cedro e a Lua - XI - 14 de Novembro de 2005







HSC, 14 de Novembro de 2005, 2ª feira, 9h04

Estado gripal incómodo. Começou ontem, domingo, no Botulho, em casa. Saudades da gata de lá, a Agostinha, e da Benfica de cá. Um dos enfermeiros quer acabar com a vizinhança do animal. Comi uma maçã e uma laranja, a ver se vitamino a gripose. Trouxe mais material para ler. À espera de uma resposta da Suzana Ramos, da Dinalivro, para trabalho de revisão do livro técnico (cuja tarefa não terminei, entretanto, mea culpa). Porra p’rà gripe. O pequeno-almoço ainda não está servido. Tempo húmido, mas não especialmente frio. A gripe é uma coisa melancolizadora.

Mesma manhã, 10h33

Nada de outro mundo, tudo deste – um pouco de febre. De tarde, o Artistonitólogo vai falar com a doutora. Hoje, às 7h30 foi a recolha de sangue em jejum para análise. Só depois a ingestão da maçã. Ao contrário, portanto, do Velho Testamento, livro em que a Maçã antecedeu o Sangue e a Análise. Uma imbecil mulher no imbecil programa televisivo da manhã: “Um sorriso de criança é um acto de amor”. Patati patatá. Ervilha-frita-batata-bonita. Não é que seja mentira. É só tão exausto, tão banal, trivial, lateiro, cristóide, evanjófilo, o-raio-que-os-parta. Impaciência – outro fruto do estado gripal, enfim.

Mesma manhã, 11h37

Conversa na sala-de-convívio com FP, da Mealhada. Já aqui esteve antes. Primeiro, como toxi: andou fumando pó hípico. Agora, repete a estadia na qualidade de orni. Uma filha de sete anos. Ele, 33.
– A ver se recupero o equilíbrio – professa. – E se mantenho o lugar de chefe de linha de montagem – segura.
FP trabalha com homens e com vidro: tudo coisas frágeis (“ESTE LADO PARA CIMA”). “Exactamente como a vida que levamos/nos leva”, concluo eu sem falar alto e armado em filósofo. Ou em parvo, o que dá no mesmo.

Tarde de 14, 15h35

Visões Gripais

Uma japonesa entre pinheiros mansos.
Uma japonesa mansa entre cedros.
Um louco só a vida toda louco a vida toda só.
Um guincho picotado de telefone a tocar no corredor de todas as esperas.
A gripe sem vírgulas.
Recordação de uma nascente aos pés de uma montanha com um castelo na cabeça a montanha.
Caligrafia mental busca e trova papel próprio.
Tinta roxa tinta verde.
Papel no nariz água de ranho.
Ouvidos de aterragem de avião.
Estacionados carros vermelhos vivos à espera de homens e mulheres directores de condução.
A condução humana.
A humanidão serva no navio da naifa.
Loucura controladora de palavras.
Controle de palavras loucas sós a vida toda só loucas todas a vida.
A japonesa-beleza-do-líbano-cedrina.
Não poder aromar-se por causa do entupimento das árvores.
Quartos-de-hora quartos-de-lua quartos-de-pensão terço-amor meia-foda zero-futuro.
O Gripartistonitólogo gripa-se pira-se.
Tintarroxa verdetinta página 28 do manusgripto.




Noite de 14, 18h14

O vírus faz do corpo um colchão-de-água com molas de ossos. A luz do dia, os esparsos cachorros mendigos de comida hospitalar, os pássaros rápidos, o medronheiro que excresce rubis rugosos – a realidade é sentida difusamente por causa do (ou “derivadó”) cabrão do vírus.

Mesma noite, 18h29

Saindo-se a sala-de-convívio, abrem-se o terraço, o jardim (sem flores, só relva circuncisada de passeios de pedra) e uma das ruas deste labirinto mental. A esta hora já invernosa, a noite instalou já, como se para sempre, um circo de estrelas. A visão do balcão do terraço é límpida, muito pura e quase triste sem remédio(s): recorda-me (sem ser por artifício de recordação pictórico-literária, juro), O Império das Luzes, tela do grandinorme artista René Magritte. Os candeeiros, semiocultos pela folhagem, dão à luz a ilusão de frios frutos. As árvores, negras de contraste, humanizam o espectador siderado pela evidência da finitude infinita de pensar sentido (como o Outro, de outro modo). E no céu, chumbado de frígidos cúmulos, a Lua lu(t)a por mostrar-se inteira. Recolho à sala-de-convívio, por esta hora plena de adormecidos gasalhados de lã, passo ao refeitório, onde, escritor de silêncio, me sinto e sento só. Pois muito bem.

Mesma noite, 20h56

Combati a chata da gripe com mais uma laranja roubada a uma das árvores do Hospital. Colhida de noite e da parte baixa da laranjeira, apareceu-me na mão toda verde por fora. Mas, descascada e comida, revelou um coração tão citrino como generoso. Arrefecida do relento, acidula-me agora no porão gástrico de mui prazenteiro modo. Guardei para a matina próxima o kiwi da sobremesa do jantar. O meu irmão Zé Daniel bem me ensinou como combater as griposes: “Avinha-te, abifa-te e abafa-te.” Avinhar-me, não no posso. Mas abifei-me, por assim dizer, com uma bela posta de peixe grelhado e uma hidrocarbono-lambada de puré cremoso de batata mais pão. E, indo para a cama, dormirei duplamente pijamado e de meias, de modo a suar o febrão no curso e no corso da noite. Enquanto não, sigo na leitura dos Textos de Guerrilha (2ª Série) do enormigrande Luiz Pacheco e de uma novela de Joseph Conrad, Mocidade. Poderia ser pior, convenhamos. E eu convenho, que remédio.

Canzoada Assaltante