27/06/2005

Pena de Vida

O Tempo, que nos mata por acumulação, é uma coisa estranha. Se ouvimos falar de um século que não é o nosso, o mais que podemos fazer é acreditar que existiu mesmo, esse Tempo sem nós. Por outro lado, quando fazemos filhos, fazemos o Tempo que há-de vir – o Tempo desses dias que não vamos viver por termos cumprido já, então, a nossa pena de vida.
Sobra-nos cuidar do Presente. Mas a estranheza continua. O Presente é, ao mesmo tempo, a contínua transformação do Futuro em Passado. Entalados no exacto fulcro desta roda descomunal, pouco nos é dado. Em consequência da fraqueza do corpo e da anemia da alma, tratamos mal o Presente.
Exemplos? No fim do ano passado, uns tipos engraçadinhos decidiram entrar para o Guiness, o Livro dos Recordes. Para tanto, fizeram um bolo com, salvo erro, dois quilómetros e meio de comprimento. O Guiness é mais do que apenas um livro ou um programa de televisão. O Guiness é o espelho da estupidez humana. Os fulanos do bolo quilométrico estão-se nas tintas para as filas humanas de refugiados do Ruanda e do Curdistão. Essa gente estropiada e faminta estende-se por bem mais que dois quilómetros e meio. Estende-se no Espaço e no Tempo. Estende-se pelos vários presentes da Humanidade.
Continuação da lição anterior. O Vaticano está revoltado com a atitude tomada pela Direcção de um liceu italiano. Em curtas linhas, que fez o director? Fez isto: mandou instalar na escola uma máquina de preservativos de fáceis acesso e manejamento. O nosso tempo é o da glória dos vírus assassinos: SIDA, Ebola, etc. No caso da SIDA, o preservativo parece que ajuda. Mas o Vaticano é doutro tempo. Confundir o preservativo com um dedo mole do Diabo, é o mesmo que afirmar que o Sol anda à volta da Terra. É o mesmo que atribuir à Bíblia as pistas práticas de uma posologia medicamentosa. É o mesmo que processar o Pai Natal por continuar solteiro, apesar de tantos filhos lhe puxarem a calça encarnada. É o mesmo que tratar mal o nosso Tempo.
Ora, acontece que, apesar de matador, o Tempo é tudo o que temos para continuar vivos. Por outras palavras, o Tempo é feito de pessoas, de cavalos-marinhos, de periquitos e de cronistas. Tratar mal o Tempo que e em que vivemos é tratar mal tudo o que existe. E o que existiu. E o que vai existir, apesar de tudo.



Diário de Coimbra, 17 de Janeiro de 1997

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Canzoada Assaltante