27/04/2010

Tempo, minha Velha Puta

“'Bijoux' in Place Pigalle Bar,” by Brassaï, 1932


Pombal, manhã de 23 de Abril de 2010



Tempo, minha velha Puta, permite ao menos os rolamentos da manhã, a palavra gentil que enobrece o pobre, os bons-dias dados e recebidos à porta da mercearia do Carlos Augusto, Tempo, minha velha Puta.
Outubro, minha Cabra danada, infesta de rosas o meu tálamo, de cravos e hortênsias o meu caminho mais descalço, mas com uma gentil palavra, minha danada Cabra, Outubro.
Entenebrece-me um pouco pensar na dúvida de nos recordarem depois sim ou não, quando nos estiver e for consumado.
Sei algumas datas nossas, é certo, mas quem me as saberá quando a minha velha Puta, a minha velha Cabra?

26/04/2010

Viagem ao Fim da Manhã

I. QUANDO AS FILHAS FAZEM 40 ANOS, OS PAIS ESCREVEM POEMAS OU PIOR
Pombal, manhã de 22 de Abril de 2010

Fala-me um pouco enquanto a manhã não acaba
Os dias correm enxutos ao colo das pedras roladas
Os talhos funcionam à base de matadouros
E são mansas a minha filosofia, a minha vanidade.

Espero por ti onde o coreto deita sombra
Não é fácil ser feliz de tarde, tenho tentado
Diz-me da tua vida, dos teus negócios
Conta-me das rainhas da noite, das nespereiras.

Escolhes o mais macio dos casacos, sais sozinha
As luzes das montras são as jóias da tua noite
Os Correios estão fechados, pulsam os semáforos
Anda um pai a criar uma filha para isto.

II. QUANDO ESCREVO, NEM ANTES NEM P’LO CONTRÁRIO
Ibidem

Faço todos os dias por haver amanhã
Mas ontem é a minha condição, não a tua.
A rua vive de expedientes, o mais são gentes
e eu derivo por bancas de fruta e demais sílabas.

À luz do que sei, as sombras são
as veras companhias do homem só.
Pó recolho do casaco, dos sapatos pobres,
mas olha-me tu que um dia destes.

III. FORGIVE ME, S’IL VOUS PLAÎT
Ibidem

Ó absolvição feita manhã,
ó reparações de televisões, ó poesia:
dai-me a relojoeira romã,
dai-me o perdão da malvasia.

IV. RIO-ME MUITO POR COMOÇÃO
Ibidem

Rio-me muito por comoção ante a beleza
governada de casas e aves, finda a manhã.
A luz é tanta, minha senhora, que inunda
de mundo as coisas todas, as coisas todas.

A simples passadeira transversal,
que é signo branco & preto da passagem,
tem da zebra-barra a mesma imagem,
do nascer que morrer é natural.



Mais uma para o Papel Poeirento dos Caminhos

Pintura de Chokosai Eisho





Souto, Casa, tarde de 25 de Abril de 2010



Todas as décadas acabam sem que as acabem muitas pessoas, casas há até que lhes não resistem. Em Banville como em Liège assim é – e o resto do mundo habitado imita Liège e Banville e pessoas e décadas na perfeição. As famílias Lucas e Jeremias da infância do narrador penduram-se da luz como trapos estendidos a enxugar no arame do Tempo. Trapos coloridos, valha a verdade, na global cinzura. Do narrador? Também. Vidas são caligrafias pelo papel poeirento dos caminhos. Escrevem-se – sendo, indo. Casais fulguram (lâmpadas fracas, de cal) de arvoredos dentro, fábricas formigam metafísicas de segurança social, ourives ambulantes carroçam pelas feiras das vilas entre melões e quarentonas parideiras, a Senhora da Saúde arrasta uma cauda de procissão pelos rossios do catolicismo, corcéis são azuis e castanhos e olham a vermelho as outras infâncias da Grande Roda. Em uma casa, livros e jarras florescem sem ajuda de mãos. Em outra, um gato dorme um sonho de louça. Quem pode, vende um pinhal e monta uma carpintaria. Outros, outros esperam que a tiazinha morra para arrendar o rés-do-chão dela a um charcuteiro dos modernos. Tantas ítacas – e banvilles tantas quantas lièges.

25/04/2010

(já que é 25 de Abril...) Umas Coisas que Nenhum Governo




Pombal, tarde de 21 de Abril de 2010

Uma coisa que nenhum governo corrupto e corruptor, incompetente, lerdo, arrogante, capcioso e infestado de parasitas pode – é proibir aqueles dois passaritos de coroar o meio-céu de Pombal de uma caligrafia a mais graciosa e arabesca: ébria, eufórica tinta-da-China revoluteando em contra-esmalte.
O que nenhuma besta fria e torcionária atarraxada a uma gravata de seda pode – é vedar a esta meia-dúzia de crianças que periquitem de aguarela sonora a Praça Marquês de Pombal, batidas a bronze imemorial as quatro da tarde.
Não, o que nenhum pinochezito da Brandoa nem trostkyzito algum da Covilhã podem – é impedir o velho cauteleiro de, rainhassantamente, distribuir no Largo do Cardal, por doze pombas, a sorte-grande do pão que lhe sobrou em duodécimos.
Verdade, não é um qualquer cabrãozito vampirizador de ministérios que pode obstar a que o meu Amigo Adriano do Talho e eu lamentemos, a meio da Rua Capitão Tavares Dias, o passamento do engenheiro Victor Mendes, que aos 55 anos desceu a contemplar as raízes do céu, diz-me ele que esta noite.
Estas certezas inócuas valem-me ouro, a mim, que uso água castanha para filtrar a evidência das grandes nuvens que lá do alto dizem ao castelo da cidade “– Olha que maiores castelos somos do que tu, ó Castelo de Pombal!”
“– E como as nossas vidas, húmidas e efémeras, ó Nuvens!” – atiro-lhes eu, que nunca fui de ficar calado, sobretudo quando era razão para tal.
Sofro prazenteiramente de melancólica malícia. Sou um imbecil competente – mas não um canalha do terreiro-do-posso. Isto não tem nem interesse nem importância. Importante é topar com o senhor Joel na confluência da Rua dos Bombeiros Voluntários com a Professor Ernesto Domingues Tavares, vivos ambos na antemão da trovoada que se acerca. Usufruo de um esófago regular, de uma pâncreas justo, de um coração muscularmente bombeado pelas golfadas de um lirismo irreparável – ou seja, sei finalmente escrever, embora nada haja para dizer.
Mas digo: que governo nenhum de cabrão vil algum pode substituir na pessoa a Pessoa, larva nuclear do cosmo não finito, bufa de gás sideral, própria antimatéria de si-mesma.
É isto – e isto mesmo: nenhum desperdício-de-cona-de-mãe, por mais manhoso, nos pode roubar a pensativa delicadeza de Carlos de Oliveira, nem a portátil cruz-vermelha (naturalmente, vermelha) de Soeiro Pereira Gomes, nem nada.



24/04/2010

Rosário Breve nº 151 - www.oribatejo.pt

Vulcão como nós

A relação entre certo Poder e certa Corrupção atingiu a proverbial razão directa entre a cavadela e a minhoca. Mas não faz mal, porque já não somos povo mas público apenas. Não é isso porém o que hoje aqui me move.
Para entreter o público, e nem de propósito, tivemos aquela maluqueira do vulcão com sua nuvem de cinza à escala multicontinental. Julgo que foi providencial, a gireza do fenómeno. Pela primeira vez, e só porque encurralados nos nossos aeroportos de feira popular, os estrangeiros turistas perceberam o que os Portugueses sofrem há coisa de cinco anitos: não poderem sair daqui nem terem alternativa de ir a nenhures.
Só pela graça de Deus é que o nevoeiro vulcânico não coincidiu com a visita próxima do chefe de vendas máximo do mesmo alegado Deus. Sua, dele, Santidade, em o Maio que aí vem, já poderá imitar o voo dos anjos com escala na nuvem que quiser. E reforçar em Fátima que a pedofilia é coisa dos homossexuais, não dos padres irlandeses, norte-americanos, alemães, canadianos ou da nossa viática e viriática Beira Alta etc.
Com ou sem vulcão, quem não há-de voar longe é o poeta Alegre, esse grande Exilado de Argel, esse Bardo de Águeda, essa vítima recorrente do Marajá das Seychelles, vulgo Mário Soares. Há-de ser tão próximo Presidente para o ano como o Sporting campeão este.
Tudo isto, afinal, é justo e bom. E o público agradece, até por vingançazita daquela meia dúzia de meses que o poeta Alegre esteve na folha de pagamentos da Emissora Paroquial, ou Nacional, a ponto da reforma de uns milhares de tostões dos novos que só por isso lhe cabe. Quando, e se, chegar a votos, há perceber que há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz vulcão.
Deixando o senhor por ora em paz, tenho algum receio do dia seguinte ao do levantamento da tal nuvem do tal vulcão. O meu receio provém da certeza-certezinha de que, por mais límpida e solar venha a próxima manhã, nos continuaremos a não enxergar como Povo nem um palmo à frente do nariz.

21/04/2010

MUITAS COISAS PARTIDAS - XII








Somos o vento na ponte.
Todo o rio ardemos de ponte e alma.

RETRATO DA QUE ERA PARA VIR MAS NÃO VEIO A UM CERTO PONTO DO MEU INVERNO EM BALTIMORE

Pombal,tarde de 20 de Abril de 2010





Daqui vejo-a, ainda assim. Ocupa um canto sem alternativa da minha casa verbal. É de pupilas negras como negras esmeraldas, que um branco muito puro, de concha fresca, esmalta em torno. A boca dela fecha e abre, à maneira da dos peixes, legendas de ar em bolha como a imaginação dos caracteres de banda desenhada. Move-se na ventania aquosa com uma transparência de medusa. Arrasta longamente a longa cauda. Tem momentos de clarão em que aparece acabada de nascer. Não sei quem lhe sejam os pais. Talvez já tenha filhos, só pode. Floresce murchamente em algum emprego de repartição ou retrosaria. Mas é a mais bela de quantas são belas porque os meus olhos a escrevem – se eu soubesse música ou pintura, calar-me-ia: e dar-vo-la-ia a ver e a escutar. Assim sendo, digo dela os pés que levitam mercê de colaterais asinhas de madrepérola. Pestaneja cinzas furta-cores, que esmigalham pelas coisas redundantes mil caleidoscòpiozinhos insensatos e febris e éléssedês e bonitos. Perturba decerto um pouco, pensar que se pode amar alguém assim, que não é nem está, que não veio nem virá. Digo, todavia, que sem perturbação se não vive. E que a maior possibilidade de alguma coisa é a falta de tudo. A um canto inocupável da casa verbal que sou, a beleza dela alimenta o olhar como um vaso bem cuidado. Ela corresponde a certos trechos de parede ordenados pela sabedoria estranha das mulheres: aquele retrato do avô entre a estampa inglesa do hipódromo e a reprodução do veleiro antárctico que nunca mais voltará nem de 1911 nem de aonde foi.

19/04/2010

Espera pela Ordem Final no Outono Filipino

Souto, Casa, fim da tarde e noite de 17 de Abril de 2010



Escrev(ej)o outonalmente.
Não importa a altura do ano.
Não importa o ano.
Escrevo, vejo e vivo no outono.
Sou de boca doente mas de bom coração.
Sonho resgatar sobreviventes das Filipinas em Outubro de 1944.
Poderia habitar Manila um par de semanas, frequentar a solidão histórica das praias de Leyte, contar os mortos, contar as areias.
Sou terrenamente uma força aérea.
Cuido do jardim interior possível.
Em Ramitelli, na Itália, pessoas como nós vegetam como nós existências carnívoras.
Em Blechmann, na Polónia, é igual, incluindo os católicos.
Combates, embates, abates: fúria e rotina, o homem chamado Shelby, o homem chamado Westbrook, o homem chamado Klaus, o homem chamado Irving.
Latas de ração de combate, chávenas de café sintético tomadas a sós com o coração.
Cavalos enfermos de nostalgia dos pastos escoceses olham-me nos olhos com uma resignação mortal.
Adquiro vibrações terríveis no sangue, custa-me respirar o que penso.
Ao largo de Samar, homens de caqui binoculam objectivos terminais.
Todos sentimos profusamente, o nosso dever é seguir vivos nas casas apagadas, nos meses-árvores, nas angústias-arbustos, nos prédios que a autarquia preenche de inadaptados à selvajaria do capitalismo.
Uma mulher chamada Pérola-de-Chá, uma mulher chamada Potestade-do-Céu, uma mulher chamada Ave-em-Laranjeira, uma mulher chamada Maria-da-Purificação.
Em Bruyères, França, gente sentada em torno de mesas de madeira curtindo o couro da luz que lhes molha as mãos.
Os homens da 442, os rapazes paramédicos, a traição da tosse irreprimível no escuro da emboscada, a fuga em desespero das aves de Hiroshima: cinzas de aves em pleno voo, radiografias de si mesmas.
Sobreviver às emoções e às armas que ensarilham as ex-hortas da paz.
Alpes Negros, Jugoslávia; a principesca Lua causticando as infâncias tremendas; a improbabilidade do resgate pela escrita, a mais outonal embora; a tenacidade dela, porém e também.
Esquadrilhas e escotilhas, o homem chamado Pioni e o homem chamado Goldstein e o homem chamado Pier e o homem chamado Yukio.
Espero a ordem final, a que deixará dormir.
Espero a solidão extrema, a extrema nudez.
Cordilheira dos Vosges, França; Aix-en-Provence; Chartres; Besançon; Idaho; Calgary; Warsaw; Leeds; Sheffield, algures.
Estrela de Prata, Estrela de Bronze, Coração Púrpura, Torre e Espada.
Não posso senão viver kamikazemente: quem o poderá?

Rijo Tempo






Souto, Casa, noite de 18 de Abril de 2010


Mais de meio século depois, o rosto de Charles Starkweather, perturbadora versão de um James Dean homicida, continua a assombrar os arquivos vivos dos séri’assassinos da América. Estive parte da tarde de domingo a receber esse rosto lapidado pela brutalidade da indiferença. Aquilo, aquele rosto – nem é insensibilidade, é a brutalidade da indiferença. Mas agora espero, enfim, aquilo a que os Ingleses chamam “a manhã seguinte à noite prévia” – expressão que colhi no Malaparte de Kaputt, na precisa página mesma onde ele regista o fatalismo que nasce de um hábito demasiado prolongado e íntimo da ilusão”. Coisas de papel & tinta, boas afinal para um domingo de pantufas em parte metralhado pela chuva, rijo tempo, stark weather.



18/04/2010

Quatro Dias do meu Futuro Recente - IV

Pombal, manhã de 16 de Abril de 2010



Ante pessoas as mais desconhecidas embora, nunca deixo de nos sentir (a todas elas, a mim também) fluviais. É o termo. Isto não tem grande explicação porque decorre de uma espécie de benigno martírio: a vidente cegueira chamada Poesia. Acontece-me sempre e a todo o instante. Se vejo fantasmas? Vejo – e até os vivo. E toda a gente é fluvial. Espectros de rio: palavras-montante, gestos-jusante, olhos-nascente, sexos-foz. Margens de sentido. Chorões de pé na água. Sonhos translúcidos como peixes acabados de pescar. Laranjas caídas à flor: das águas. Ciganos, cigarros, carros abandonados, mansíssimos pederastas que vivem em mansas mansardas com mães velhíssimas. As sombras dos nossos Pais coruscando cursos, areias, limos, flúvios & eflúvios, fragmentos de cortiça, cacos de louça, estilhaços de outro século, jantares de ervilhas com olho-ovo escalfado, pequeníssimos ardis da ternura: a trança da Avó embalsamada entre fotografias pret&brancas, merendas outonais em quintas do povo. Tudo isto é tão fácil, feliz, fluvial e fantasmático. As pessoas todas, as conhecidas como as reconhecidas, as desconhecidas como as desaparecidas: veias fluviâmbulas do corpo da terra, metabolismos à base de seixos, cascalhos auríferos, vendedeiras de tremoços & pevides, torneiozitos de chinquilho em tardada operária-dominical. Coimbra, que é minha matriz, floreja choupalina na minha fantasmagoria gráfica. Tenho uma ideia de ter sido menino, depois rapaz, depois um quase-nada homem entre choupos, as pernas cortando vórtices de brisa sobre ponte de madeira, perto já da Quinta dos Borges, região de milagre sobrevoada de milhafres de absoluta lusitanidade local. A prodigiosa contenção de emoções sincretiza a quadra de ténis, a arquitectura do canavial-da-Índia, a casa verde do guarda-florestal e o barzito de madeira para um ovo cozido e uma cerveja preta. Algumas coisas também agridem. Isto é explicável: como sair impune da subida a Santa Clara sem que Filomena Maria Capêla Daniel de novo? No Real das Canas, ainda Maria Helena da Rocha Pereira e Carlos Alberto Louro da Fonseca? O Paulo, filho do senhor Fernando Mendes, morto por um automóvel sem governo quando cavalgava em descanso um motociclo parado, ao alto da Santa que é Clara e da Rainha que foi Santa? Rios, sôbolos todos (nós).
Agora: uma mulher de blusa preta com BENETTON inscrito a pedrículas brilhantes de quase-prata quase-nada acima do rebordo baiano das mamas. Antes: uma coruscação de mata-nacional, um lampejo-lapso de sol derradeirando eiras, garagens convertidas oficinas aposentadas, pessoas que – morrendo – nos morreram a nós. Um clarão morno do grande Nat King Cole, o relato de um Sporting-Barreirense, rios de rios de águas de pessoas. Os problemas das pessoas: o pobre com um molar apertado de pus, o chinês que mandarina uma emigração pós-maoísta, a reedição de Berlin Alexanderplatz de Döblin, os rapazes que enfermam de casas-de-putas onde são tratados como adultos ou patos-bravos da alvenaria autárquica. Técnicas de guitarra e manuais de instalação de escapes de automóvel. As Grandes Orquestras Casinantes de Ray Conniff, Fausto Papetti, James Last e Shegundo Galarza. Os anos que batem tijolos ao pórtico dos pavilhões auriculares. Cimbalinos e timbalões. O Conde de Valbom e a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. O cu desta rapariga: tangerina preta, descascável a dente.

Quatro Dias do meu Futuro Recente - III

Tondela, manhã de 15 de Abril de 2010

Flor especiosa da minha memória e da minha atenção, o amor às terras de Portugal faz-me bem. Não sei pô-lo de outra maneira: gosto desta porra de País. Há registos prediais, casas-de-pasto, baptistas, acácias, postos de turismo, quiosques, homens antigos cujo rosto repete o pergaminho do chão, pombas senhoris como figurinos franceses recortados de revistas salazarentas, táxis & taxistas, alfandegários, costureiras, assadores de frangos, azulejos do sécul’azul-XVII, distribuidores de pastelaria, confeiteiros graves como órgãos de igreja, igrejas, antenas de radiodifusão, técnicos instaladores de ar-condicionado, hermeneutas e hermenautas, ferradores, cavalos entrevistos da janela do Rápido das 4, audiências, corsários & flibusteiros, grainhas de uva nos interstícios das anfractuosidades, dentistas, cáries & corações, cardiologistas, barbeiros & papagaios, deuses fluviais, pardais, tondelenses, penamacorenses, caramulanos & scalabitanos, magistrados & magistrais, vacas azuis povoadoras de nuvens, cães muito amarelos e muito filósofos, relógios-de-sol & horas-de-sombra, as mais formosas mulheres do mundo, ínsuas & tangerineiras, rodapés de texto, turistas & puristas & juristas & epicuristas & arrivistas, narizes coxos e patas pingonas, pinga de catorze e meio, taças de badmington & de verdasco, soberanias dissipadas, pagelas dos padres Américo & Cruz, tomates do outro, o Inácio, gente chamada Manuel & gente chamada Maria, canções votivas dos rebuçados peitorais, Águas de Carvalhelhos, evangelistas do Caramelo de Badajoz & arautos do Torrão de Alicante, frequentadores de nespereiras, carrancas de chafariz, aipos & gaitas & sirigaitas, dias 6 de Novembro uma vez por ano, ossos em calabouços & tremoços em bouças, gente chamada Vasconcelos & gente chamada Lourosa, formandos & gente chamada Armando, Eustáquios & Samuéis & Ginásios Figueirenses & Camisolas TEBE,
(Meu Portugal inócuo e demorado,
minha terra de canas de milho,
minha serra de abelhas, meu vespeiro,
minha telúrica mãe-terra pobrezita…),
mel & cera, prospectos do LIDL de audiências, casaquinhos de caxemira rebordada a dragão dourado de chinês de Carnaval, fanecas fritas ao borralho em sertã de ferro por viúva também de ferro, estátuas verdes como fins de sonhos, cacos de milénios como de azulejos, bigodes engraxados a poalha de carvão, bichos-da-fruta & refilhíssimos-da-puta, lombos de serra em silhueta de mulher reclinada.

17/04/2010

Quatro Dias do meu Futuro Recente - II

II



Pombal, tarde de 14 de Abril de 2010


À bolina procelosa de interior vento,
suspendo a minha morte por instantes.
Serei ora não mais quanto fui dantes,
’ma sombra lapijada a traço lento.


Homem a contas com demónios
civilizados e pouco daninhos,
derivo vãos de escadas por domínios
e redijo alguns signos estremenhos.


Outras vezes, uma bandeira é o que
sinto ao ar frio do corpo da cidade.
Digo assim: sombra, sideração,
gesso, máquina, peixe-voador.


Flâmula não extinta ainda da tarde,
ondulo verberações tão cidadãs
quão o perfil rugoso do castelo,
quão das árvores a humidade alada.


Belas maquinações, as ideias emocionadas
pelo tacto do ar, a rama das frases,
a vírgula toda gráfica das caudas dos cães,
a fonte perpétua que convoca a sede.


Meu Portugal inócuo e demorado,
minha terra de canas de milho,
minha serra de abelhas, meu vespeiro,
minha telúrica mãe-terra pobrezita.


Vivo de viver no idioma, cintiladas
a ouro-verde as manchas eucaliptais.
É muito bonito tocar com a mão
que não escreve o que fica escrito.


Uma doçura de crianças amoranga a visão
picotada a verde da reincidente primavera.
Meia dúzia de casas: um pasto:
a maciça vaca afinal leve, sentimental.


Um rio de homens cerceado de feminis margens
moira o duro dia de trabalho reparador.
Mil morenidões brunem o trigo do sol,
cuja rosa é gás branco, nuclear.


Às vezes fico à porta do meu coração
e nem campainha toco por cautela.
Sou feliz devagar no casulo da amargura,
viver contrai doenças, a mor é pensar.


Mas amo devagar o que e quem amo.
Gosto de ver as batas das cabeleireiras
branquejando a laca do ar da velha urbe.
Também me comove a velha dos sacos, dos gatos.


Um pouco de atenção basta a despistar
do perfil do vivo a silhueta morta:
números de um deus amnésico somos
todos até que ninguém se renove gente.


Um poeta foi ao cais sentir os barcos,
a língua da água paginava a pedra.
Ele era feliz dentro de um tal casulo,
as refeições magras tomadas em sobrelojas.


Sim, amor, quanta beleza decorre
da língua molhando os dentes, olhando os olhos.
Quanta demonstração um castelo é,
ou um divórcio, ou um verso cru.


Os viciados mais pobres colhem beatas
dos cinzeiros à porta das instituições.
Homens e mulheres são, só que se perderam
de algo, alguém, alguma coisa – ou quase nada.


Serena mansidão de águas azuis
catolicizam olhos de lagos siderais.
Eis o homem, ei-la a mulher, eis
as faldas do monte, os cumes de estrelas depois.


Sinceramente, a beleza é tanta: inumerada
e linda de si mesma como olhos em espelho.
Seminários, confeitarias, carros a gasóleo e bazares
albergam gente – e os sonhos dela.

Sabes esse rumor todo cardíaco da música de cinema?
Conheces o restolho outonal dos ossos em jazida?
Lembras-te de ser uma coisa verde, uma coisa azul?
Quando chove nas igrejas, não é triste que ficas?


Flébil débil dúctil inconsútil
ramagem verbosa da minha vida:
eu aconteço sombra em luz a plena
na praça de uma cidadela de província.


Rapazinhos repetem alheia a minha infância,
casas mudam de cor como acontecimentos,
a Norte os fios de oiro são vindimas outonais
– e nem sempre é fácil falar com a humana gente.


Revoadas de tensa chuva acodem a arrepiar
a pele do Tejo, caminho da Índia.
Se a morte te contrata, rescinde-a,
não sejas parvo nem estejas a armar.


Pupilas de meus verbais olhos não obnubilo,
é contra a Costa-de-África ser lusitano.
Outra melhor seria ir (fazer-me) ao Nilo,
não gastar em Pombal todo o meu ano.


Mas entretanto, Mãe, olhemos os gnomos
de laranja que passam cor-de-rosa:
as pessoas que não são salgueiromaia,
as pessoas que nem pessoas mas, enfim, gente.


Fui ontem integrante do féretro de Carlos Alberto Fernandes.
Foi na Pedrulha, Coimbra, dia ontem, 13.
A cara das pessoas na minha idade:
um pouquito mais cinza, mas também ainda,


como se diz?, a vida interior da vida,
um vento.

Quatro Dias do meu Futuro Recente - I

I

Pombal, fim da manhã e tarde de 12 de Abril de 2010

A derradeira frescura da manhã cede terra e ar e luz e arvoredos à ilusão do meio-dia. É segunda-feira na nossa vida. Cumprimentei o Zé da Redinha, o Amadeu do Mercadinho, o Adriano do Talho e um rapaz de neurónios amolgados de quem me não ocorre o nome. A manhã foi bonita a ponto de doer nos olhos. Ao pé do tribunal, passa uma mulher de cu alto como uma prateleira de cozinha. A seguir, deparo com um casal septuagenário de boníssimo semblante: ele, de rosto muito claro, óculos de aros de ouro, o nariz aparafusado à cara por miríades de veias miniaturais; ela, de cabelo de um negro retinto, de uma treva forte, saia-blusa de chita garrida: uma velhota gaiteira e provavelmente feliz.
Amanhã, terça-13, vou à Pedrulha ao funeral do pai do meu Amigo Fernando Jorge Pereira Fernandes, o senhor Carlos “Pintor”. Morreu na noite de sábado para domingo, incapaz de resistir mais dias ao cancro. Vai ser hora de reencontro com o Jorge e os irmãos dele: Carlos, Victor e Paulo. Os funerais dos pais dos amigos são amêndoas (amargas) que devolvo aos poucos pelas recebidas na hora do meu Velho, já lá vão (faz este dia 24) dezasseis anos.
Entretanto, aproveito o dia. Sinto-me vaidoso da meteorologia da nossa terra: este azulejo alto e lavado da tarde que nasce, este ouro florestal manicurando os dedos das ruas, esta profusão de perfumarias (as mulheres que passam, as mulheres melhoradas pela solidariedade solar de suas carnações, seus vestidos etéreos aéreos), a bondade dos cães livres, o realejo perpétuo das crianças, a lentidão dos professores reformados, os sapos de barro com que alguns lojistas afugentam alguns ciganos, os leitores de jornais à porta das sapatarias, o advogado que bebe uns copos com o jornalista local. Isto é tudo muito bonito, às vezes é uma pena morrer. Um rapaz de camisola de alças branca, a pele muito branca sarapintada de acne vermelho como bolas de árvore-de-natal. Já fuma. Alguns dezasseis, dezassete anos. Olhos azul-claros, nervoso como uma ventoinha de pé. Carros cinzento-metalizados como tubarões de lata dormem ao longo dos lancis. Então, para meu usufruto e por minha atenção, decorre uma casada de excelentíssima bacia parideira, larga de ilíacos e de tíbias fortes, de nádegas a’bunda’ndo em firmeza, a boa saia de ganga juntando as partes em um todo fértil, harmonioso, potente. Uma cigana de luto mas cabelo aloirado a tintas quentes adentra uma chávena grande de café-com-leite. Rapazinhos de camisola cor-de-rosa sapatilham imitações de basquetebol nort’americano contra uma parede de bairro social: nenhum Camões e hip-hop a mais. Sossego gentil na rua de Ansião, sol forte na do Quintalão. Ontem, domingo, conversa de qualidade com o amigo e arquitecto Carlos Vinhas, mais Adelino Leitão, G. Diogo e Jorge (filho do senhor Ilídio e da senhora Rosa da Casa-de-Pasto Cardigo): uma espécie de felicidade sediada no Palácio do Gelo: parte da vida. Rumor formigueiro-auricular de telefonemas. Procissão de comerciais a gasóleo: café, ar-condicionado, gesso projectado, canalizador-electricista, bombeiros que fazem uma perninha de securitas.
Amanhã, dia do senhor Carlos “Pintor” Alberto Fernandes, é dia de ir reverificar o que a morte implica de vida. O senhor Carlos já não é. Foi. Será na lembrança de que o amou. Um nome a lápis no meu caderno – uma vida. Espero que amanhã o dia seja bonito, irmão do de hoje em cara lavada e roupa natural: roupa de luz, roupa de cor, cara branca e azul e vermelha e verde e amarela. Tempo. E vida e morte. E Natureza e Coisas. Estranho (tão estranho) – haver vida, universo, haver Natureza & Coisas. A alternativa, nunca a pude sequer pressupor: o Nada (sem oposição a Tudo). Nada apenas nada. Inexistir. In-ser. A-estar. Ou. A-ser. Os dentes acrílicos daquela boca envelhecida. O saco de plástico cor de verde-ranho aos pés daquela boca envelhecida, saco de vísceras de frango de aviário para cozer com trinca-de-arroz para dar aos cães. Tempo nosso, nossa vida. Circula o astro-rei em circunvalação pelos altos paços cósmicos, diminui já a febre fulgurante da tarde, qualquer coisa de noite cheira a sombras e axilas.

Largo 5 de Outubro. Pombal. É pela tarde madura, ainda. Duas bancas de senhoras: tremoços, pevides de abóbora, figos secos, azeitonas, pinhões, passas de uvas: muito Portugal dental. Ferragens e ferramentas e cutelarias. Zink Modas e Óptica Lourenço. A Social. Meio século de vida de Adelino Marques Leitão, advogado, cumprido hoje. O contrário siamês da pena-de-morte é a pena-de-vida. Tirar licenciatura em Direito. Saber um pouco mais, segundo Sena, do soneto quinhentista peninsular. Murphy. Molloy. MacAdam. Mister DeLuxe.

Tempo. Existência em stock a liquidar.

15/04/2010

Rosário Breve nº 150 - www.oribatejo.pt



Rainhas finimatinais da Primavera



A par do coriscante carvão lustral das andorinhas e da neve alada das cegonhas, uma das mais seguras maravilhas do regresso primaveril é a beleza das mulheres, que pelas ruas vejo passar sem grandes alvoroços da próstata mas com garantida euforia gráfica.
Ainda agora: uma senhora alta de cabeça coroada por um disciplinado incêndio loiro. Outra de há instantes: uma morena de apurada circunvalação bacial elevada acima de duas colunas roliças muito bem embrulhadas em ganga de marca. Ou então aquela ali: de decote fissurando a fartura láctea do colo, a nota dupla dos mamilos sugerindo duas gotas de figo, a boca muito encarnada desvelando dentes que esmaltam o coruscar da luz finimatinal.
Eu gosto muito de vê-las passar: deve ser bom, até, pertencer-lhes como filho, quanto mais marido. Se Deus existisse, haveria de concordar comigo. A beleza das mulheres desbanaliza a peca mesmidade masculina. Em procissão floral pelas ruas portuguesas, também elas, as mulheres, andorinham e cegonham o campo-santo dos vivos em geral e do cronista em particular. Deu-me hoje para dar-vos isto: este tributo caligráfico às rainhas da manhã que, inscientes de ficarem ortografadas em papel de jornal, são a moção mesma da Primavera e a alegria de quem as vê passar.

12/04/2010

Cão como Equinócio Fulvo

Pombal, manhã, e Louriçal, noite de 8 de Abril de 2010


O cão, fulvo como um equinócio, cruza a rua pela passadeira. Como eu, vê o mundo com a língua, que leva de fora em bússola. Vai em sossegada glória cheirar os contentores do bairro comercial. Belo animal de ninguém e dono de si, prova provada da inexistência de Deus com pulgas. Some-se por esquina propícia, eu fico, estou pronto para salivar cores e moções do mundo que amanheceu. Começo por aquela camisola de um azul-ferrete-da-Senhora-da-Piedade. Envolve um rapaz a tender para o gordo, de cintura pneumática angariadora da imagem da bola-de-Berlim. O rapaz abocanha um rissol morno, que intervala a golpes de laranjada americana. Manhã excelente para usar lentes fumadas e lápis macios. Os Móveis 80 desta cidade de Pombal têm uma exposição de 3.500 m2. Um jipe da GNR leva isto escrito nos flancos: GIPS. Falta ali um Y, digo eu. Tive uma sorte do caraças: é tão bastante sentar-me aqui e receber os palavreados do mundo! Olha, olha: um camião de galera encarnada com uma aglutinação: CASACTIVA. Por onde andará certa raiva que por vezes me alvoroça? E o cão de há pouco? Esta noite, sonhei lances e planos de mau filme com maus actores e péssimo enredo. Um pouco de Viseu (ainda) no sonho, um pouco do Caramulo, muita Coimbra, alguma Lisboa, um tanto da Guia como de Peniche – cenários que, afinal, reescrev(iv)o acordado. A minha gata mais nova teve cio, já lhe passou. Agora, é a mais velha que anda a serrar cabos com aquela voz do desejo, aquela imitação de choro de bebés, aquela precisão de eternidade subindo das entranhas genéticas dos cabos do mundo e de Darwin. Se pudesse, eu frequentaria abadias em manhãs frias – mas a vida não é isso, é ingressar às duas e meia da tarde no turno das duas e meia da tarde. E está muito bem assim. Em Setembro, levo-te a Seiça à festa da capela octogonal. Ser feliz não é difícil, difícil é não andar a reboque dos adjectivos. Mas – como não reconhecer de imediato o equinócio naquele fulvo daquele cão? Vai sendo Abril, mês inicial e final do meu Velho. Tenho aqui uma carta escrita / para ele / cara bonita. Tenho-a escrito em pleno inverno em Baltimore, aonde fui nunca e jamais irei. Vai-se-me Baltimore volvendo adjectivo. À minha amiga Graça C. P. não agrada o substantivo lucidez. Acho que a compreendo: vem de luz, mas rima com acidez. Entretanto, a tenda solar estica cordas. A claridade é a mais simultânea e ubíqua das coisas reais que hoje vigoram. Os quintais das vivendas ramalhetam em fulgor. Os raros pastos circunstantes sobem estátuas vivas: vacas, ovelhas, cabras, coelhos. Hesito, o lápis dextro e o cigarro sinistro em suspensão: sair um pouco a respirar luz ou fumar escrevendo um pouco mais? Decisão provisória: sair um pouco a respirar luz.

Ao Sol, coalham os taxistas em modo de espera, chega a hora-de-almoço, bancários em mangas de camisa elogiam os quatro do Messi ao Arsenal, duas raparigas emblusonadas de cor-de-laranja seguem a pé de capacetes motoqueiros enfiados nos antebraços.

Branca e amarela – a larga bandeira da tarde portuguesa.

Por portuguesa, esta pouca pureza de gostar de Portugal sem ser por causa dos nun’álvares, das manas medeiros do maestro, dos sempiternos figurantes-figurões da lusa mediocridade, dos santanas, dos soares, dos sampaios, dos marcelos com dois ll ou só com um, da merda em geral e da portuguesa em particular.

Crepúsculo nocturno. Quem viu (e ficou com) nunca alguma vez estes riscos pretos (pinheiros) unhando de dedos o último azul do último dia, até à data, de sua vida? De que serve isto a esta vida? Que farei destes pinheiros? E da minha vida, que equinócio farei da minha vida? Visão do caraças: pinhos negros sem voluntária decisão de negros – contrazul, contraluz. Os minutos não contam, não têm arte narrativa. Eu também a não tenho, mas conto. É a noite por todo o lado, o largo lençol preto português: pinheiros e casitas – e um preto que azul foi. Percebe, por favor ou delicadeza, a minha angústia: se mais não sucede, que hei-de senão a noite de pinheiros viver? Nada tenho contra o que regula os itens da revolta, da raiva, das filhinhas do maestro, que são giras, que são manas-medeiros, portuguesas apenas de Paris apenas portuguesas. A Finlândia destes pinhais portugueses é tão Noruega! Mansidão, bebés rurais, crocitar de cães domesticados à pena, os zambujais, os pachecos, os peixotos – e apesar de todos, nada; e de tudo, todos. Mas. Mas a nacionalidade destes pinheiros, a possibilidade total das sendas, das azinhagas, das veias de terra atapetadas de sílex imemorial: búfalos, bisontes bisonhos, bávaros pecos, pécoras bizantinas, clementinas lanas, dinares dinamarqueses e marqueses às vezes. Nem sempre sei, excepto quando quero muito. E agora quero:

Um toque de nespereiras adeja pepitas
Pequenitas dobras de bronze dão azulejo
Um beijo é quanto anil se pode obter
E ser é ser sem toque de nespereiras.

Bilhete a Avisar de Recado

Pombal, tarde de 9 de Abril de 2010



Amanhã se não estiveres deixo recado
ao lado da jarra com as flores azuis
vou àquele embora de que se não volta
sítio onde os amanhãs são todos hoje.


Não levo angústias nem desesperos no bornal
a hera verdenverniza a luz dos meus olhos
crepúsculos terás de t’aviar sozinha
ao lado azul da jarra com as flores.


Vou bem.

09/04/2010

Rosário Breve nº 149 - www.oribatejo.pt

Waltraud G., a própria


Os maridos de Waltraud G.


A história passa-se no Sul da Alemanha. Uma cantora lírica de 55 anos, Waltraud G., está presa por suspeita de ter “extraviado” o marido. O dela, note-se. O homem está muito provavelmente morto. A polícia suspeita que ela tratou disso a tempo e horas em Outubro passado. Mas o caso tem tudo de enredo operático, ou não fosse a suspeita uma profissional do Bel Canto. (Num blog francês, até designam o caso por novo Fantasma da Ópera.)
Quereis saber? A provável vítima chama-se Hermann Hilss, tinha 71 anos e estava na reforma. Mais velho 16 anos do que a esposa, foi um ar que lhe deu. Em vão o procuraram por todo o lado – menos onde ele está. Eis senão quando se descobre que a eventual viúva se fez acompanhar ao notário e ao advogado pelo “marido” em várias ocasiões. As aspas são justificadas: o acompanhante da senhora era um actor arregimentado por ela para fazer de duplo do desaparecido, que parecia ter umas massas boas. Maquilhado e compenetrado, o duplo desempenhou a função mais ou menos a contento. O problema foi quando o advogado telefonou à polícia dizendo que não procurasse mais o senhor, que ele, marido, estava ali com ele, advogado, e com a mulher dele, desaparecido, no seu, dele advogado, escritório. A polícia não esteve com mais nada: marcou um encontro ao “casal”. À hora marcada, o “marido”, a pretexto de uma breve viagem, não compareceu. Os investigadores (até por serem alemães) eriçaram-se de descúnfia. Até que em Janeiro, ao cabo de cerca de 250 pistas analisadas, a polícia apura que havia uma procuração “assinada” pelo desaparecido a favor da mulher. Tinha sido o actor a assinar, claro. A confissão do duplo está feita, a mulher está presa e muito calada. O corpo de Herman Hilss continua por dar à costa.
Como tenho a mania de que gosto de ópera, também gosto muito desta história – a ponto de a ter percebido toda, até mais do que a polícia alemã. Assim: aquele “G.” da senhora Waltraud significa, em tradução portuguesa, “Governo”. Português, claro. O tal “actor” – todos sabemos quem é.
E nós, os mansos calados subservientes desaparecidos vítimas (e)leitores, fazemos, por assim dizer e não desfazendo, de maridos, ou fantasmas, do G.

08/04/2010

Vol(vi)ver



Souto, Casa, manhã de 8 de Abril de 2010



Na manhã entre algures março e maio
manhã clara e alta como um vidro lavado
levo a vida numa das mãos decerto a esquerda
na outra a terminal irmã dela a dextra morte.


Posso agora tudo pois tudo é finalmente agora
agora as linhas telefónicas falando pássaros
o perfume feminil das laranjeiras ao vento
agora a vida e a morte e esquerda-direita
volver.

07/04/2010

MUITAS COISAS PARTIDAS - XI

Vi o homem
o fato escuro deste homem é uma máquina magoada, viril
eu era muito novo e o vento também vinha de lado como eu
reparei nele pela mesma sem-razão de nascermos
usava chapéu como usava os olhos: coisas de mais.
Cambaleava com as mãos
condição de gaivota ou
de homem dado à tristeza vitalícia do álcool.
Todo o dia toda a vida espero
toda a vida isto
estes pássaros
oblíquos pássaros negros
estes riscos.
Vem o domingo
morro em casa
chegando a noite
por noites de areia
e bosques de litografia
eu chegaria.
Devo estar a envelhecer porque sinceramente
tenho já menos certezas do que móveis
(lojas de móveis na noite parecem-me casas de que fugiu
gente)
o coração exposto aos lobos da velhice florestal
sem nada que dizer
ao futuro.

O Rosto da Mulher na Arte -


by Philip Scott Johnson

500 Years of Female Portraits in Western Art

Music: Bach's Sarabande from Suite for Solo Cello No. 1 in G Major, BWV 1007 performed by Yo-Yo Ma

Nominated as Most Creative Video
2nd Annual YouTube Awards

05/04/2010

MUITAS COISAS PARTIDAS - X

X



Os ouvintes de música estão sentados em bancos
com cartas nos joelhos.
É terrível
a ira do Senhor
que não existe.
Só a ira
existe.
O amor cai ao chão nos pomares amarelos.
O pensamento sai das pessoas e anda pelas ruas procurando os mortos.
As pessoas ficam em casa e nas pastelarias sem pensamento.
Outras vezes
saem as pessoas de casa
fica o pensamento
sozinho em casa
olhando dos olhos dos retratos
a casa vazia.
O tempo anda para trás no pensamento
quando o corpo não está em casa
excepto em retratos na sala.
Fazemos do coração uma casa-museu
e fechamos à segunda-feira
todos os dias.
Fingimos não esperar a ceifeira
sabendo-nos trigo.
Ouço música
corvo sentado
sentado num banco
com palavras nos joelhos.
Escrevo deitado há tantos anos
uma carta
por abrir.

Corvos na Árvore Japonesa (republicação)

Caramulo, manhã e entardenoitecer de 9 de Setembro de 2007





Dois corvos no cimo da árvore japonesa.
O sol já nasceu: uma dedada de sangue a ouro.
Todo o vale é leito de oceano: as nuvens caíram.
Todo o vale juncado de casas naufragadas.


Ao longe, a outra montanha deitada: como
uma mulher saciada.
A manhã revela películas de frio manchadas
de corvos.


Estou à varanda como uma menina envelhecida,
fumo como um carroceiro, tenho o olhar
nos corvos que subiram a árvore japonesa.


Apesar da vida, nasço outra vez: contabilista
de corvos.


A beleza bate-me uma tábua no peito.


Convalesço para morrer em perfeito estado
de saúde.


Uma hora, o mar levanta-se do vale.
Os corvos atiram-se a devorar os peixes,
as pessoas. Depois, pousam nas chaminés.


Muito branco, o sol arde ao gás dos milénios.


No parque, labaredas frias devoram as árvores:
as sombras.

 
Estou na rotunda da vila como um sinaleiro de bronze.
O vento levanta-me a um muro negro.
A outra montanha ergue-se: é um tornado de pedra.


A tarde: clarão angariador de cegos,
de corvos.


Bebedoras de luz sufocam na doçura insuportável
da não terna idade:
as plantas.


Pedras caminham dominós na montanha
de aqui.


A doçura atira-me uma pedra ao peito.


Desço ao mar alto do pico da montanha japonesa.
Crocito cerâmicas quebradas: fragmentos
de versos.
Gasto o coração engastado: onde batem
a tábua, a pedra.


Outra hora: estende a noite seu pano negro
como o muro.
A noite imita os corvos:
a noite imita a árvore japonesa:
a noite é negra contra tudo o que quis,
a sangue e a ouro,
nascer.


Outro mar sobe do vale, barcarolando as casas
natatórias um pouco, náufragas logo.


Estou na pastelaria desertada.
Estou sozinho dentro da cabeça.
Digo:

Jasmim


trazem-me licor.


A vida toda excede nascimento e morte.
Dois corvos no pico da árvore japonesa
conversam versos quebrados, fragmentárias
cerâmicas cozidas pelo sol, arrefecidas pela noite,
trazidas pelo vale aos pés do carroceiro,
aos pés da envelhecida menina.

04/04/2010

Mais Capítulos-Sítios para o livro O INVERNO EM BALTIMORE


CELEBRO A NOSSA SAÚDE FUTURA / QUERO MUITO EMBALSAMAR AS NOSSAS VIDAS / MALAPARTE NA FLORESTA DE RÀIKKOLA / MEMÓRIAS PARA O FUTURO / O MESMO FIO DENTAL PODE




I. CELEBRO A NOSSA SAÚDE FUTURA



Pombal (Café Ripa e Cervejália), tarde de 2 de Abril de 2010



Celebro a nossa saúde futura e o coração de toda a gente nas nossas mãos leitoras. Conheço finalmente algumas coisas, os perfis ceando sós cozido-à-portuguesa em tabernas frias. Sou muito mais esperto do que é preciso, pasto com os burros a palha rala da poesia. Aquele homem tem o pescoço cheio de cabelo vivo na pele muito vermelha de galo. As nossas mulheres alimentam de vasos a floresta setentrional das nossas casas ao sul. As nossas mulheres tornam-se mais e mais e mais ainda os retratos das nossas mães. Uma coisa é a gente andar aqui para não enganar ninguém mas alguém, até por pena. Quando revisito a minha terra primeva, sou outra vez o meu Pai à procura dos filhos, e eles nada. As coisas bonitas têm uma força que exulta, uma luz toda de dentro para fora, uma celebração. Custa-me pensar nas pessoas que se parquepublicam aos domingos, à beira do rio para nada. Outras vezes nada me custa, excepto viver. Vale-me que as vossas mãos (e as vossas mães) me lêem os vasos, as artérias, as matérias, o pêlo do pescoço.



Tempo das dimensões suavizadas pela cabeça, seu sistema electroneuronal, sua vida de bicho urbano. Nossa vida de cabeça pela rua sendo fruto preto.



II. QUERO MUITO EMBALSAMAR AS NOSSAS VIDAS



Pombal (Casas de Pasto Solmar e A Social), tarde de 3 de Abril de 2010



Quero muito embalsamar as nossas vidas tal que memória de ex-corpo delas reste em paz. Atum de marca Pescador, porto Alegre, brandy Croft, verde Tadeu, moscatel Mural. Um relógio de pêndulo retine o tempo de madeira. Sob um céu caixa-de-sapatos, há pouco, o vento lateral e a minha felicidade partilharam bandeiras. Sobretudo ao alto corredor da ponte sobre o Arunca, como sobre o Pavia antigamente, lá-vai-lá-vai. É muito bonito um rio chamar-se Homem. Trouxe pão endurecido e restos de frango, encontrei pombas e pardais e gatos e cães republicanos a quem tratei regiamente. Depois, leitura e pensamento de dois afixos funerários: o senhor Arlindo, de 90 anos, e a senhora Maria do Rosário, aos 88, deixaram de ser, residentes que foram. Também há muito deixaram de ser o Restaurante Verde Gaio e o Café Pérola. As pessoas deixam muito de ser – mas de uma vez. Os sítios reconfiguram-se, aguentam-se quanto podem. Um corpo feminino extraordinário passa em parada singular: beleza forte, beleza feliz, segura de si-mesma-ela-própria, mocidade e fulgor da carne irradiante. Quero muito embalsamar – sem tolas necrofilias porém – as nossas vidas. Pombal, um sábado. Voleibol na televisão. Recordo Castêlo da Maia. Recordo Baltimore. Agora não já, mas já fui a S. Bernardino e ao Baleal. Que luzeiros são estes na estival noite interior? Que gelos agulhados siderais dentro? Se eu morrer, que farei de tanto amor? Não é que os pense, mas (escre)vejo-os em recorrência: pátios poeirentos de traseiras de prédios, onde a nespereira enferruja de açúcar e ex-crianças movendo pneus a compasso de paus. Educam-nos (e amam-nos) para lebres, acabamos láparos. Mas tenho ainda alguma coisa que fazer. Tenho alguns sábados coleccionáveis em fascículos. Visão rápida na rua d’A Social: duas flores amarelas muito altas, uma delas de óculos. Macia sintaxe, morfologia escorreita, prazer de café-com-livros: e alguma solidão, vá lá, que não ando aqui para enganar ninguém. Este é o nosso sangue de roupa d’alma vestido. Estas são as nossas ruas – ou pelo menos as ruas por onde nós. A tardinha torna-nos finisseculares a todos. Calma. Calma, não se passa nada. Há pessoas fazendo filhos nuas apesar de ou contra outras a este instante mesmo. Sim, os Chineses vêm aí. É a licorosa, por assim dizer, força dos quanto vão adormecer no hipofrio.



III. MALAPARTE NA FLORESTA DE RÀIKKOLA



Pombal, tarde de 1 de Abril de 2010



Kurt/Curzio diz coisas da margem do Ládoga, na floresta de Ràikkola. Também refere a floresta de Inari e a foz do Juutuajonki. Renas, gatos, lobos, cães e pessoas velhas convivem com a ideia glacial: neve e morte, o branco e o preto das dimensões do olhar. A Lapónia, o Tirol e a Baviera não excluem a Península dos Pescadores. Estradas de Ivalo e de Petsamo, adidas a paragem em Sodankylä e a frente beligerante em Alakurti e Salla.



Depois, em momentos que por regra são excepção, as pessoas vingam estar vivas, movendo-se por atavismo, espectrando as montras vivas de suas, delas, condição moritura. São movimentos onomásticos e anónimos, são urbanizações corredoras em marcha-lenta. Cada uma pessoa saberá ou não de si e/ou de outra nota da escala: lá por dó, cá por só. Cada duas, pois não sei. Rumores verdes inaudíveis à espécie devinda desumana: o musgo, a urze, a giesta, o alegado parasitismo da acácia. Tradição de metros: gongorismo e www.ismo. A pressão dos rumores é acontecimento em si mesma: assim se amarela o branco das paredes. Mas depois, tudo depois, se ainda.



IV. MEMÓRIAS PARA O FUTURO



Pombal, fim da manhã de 31 de Março de 2010
(leitura da edição do dia do Correio da Manhã)



Em Rio de Mouro, há uma avenida chamada Sidónio Pais. No Linhó (Sintra), há um supermercado com Lda. no fim chamado Abel da Silva Reis. O Rio Sado é muito dado à apanha ilegal de meixão. Roubaram comida (arroz e massa) de uma escola das cercanias de Coimbra. Há um barco espanhol chamado Playa de Arbeyal. Nantes e Brest são em França. Randam é Recardães. O Mosteiro de Santa Maria é em Alcobaça. Serra do Bouro e Caldas da Rainha têm muito a ver uma com as outras. Há uma travessa em Lisboa que pertence a Santa Quitéria. Búlgaros, cabo-verdianos & romenos transitam com alguma facilidade pela capital da Nação. Toda a gente sabe, em princípio e à partida, que o Hospital de São João se demora no Porto. Os renaults Mégane e Laguna são desiguais. A Praça de Espanha é cá, não lá. O Bairro de São Pedro, em Elvas, costuma presenciar agressões de ciganos a bombeiros, ainda não se sabe muito bem porquê, ay. A barragem do Fridão é no Rio Tâmega. A Capela da Senhora da Ajuda e de São Tiago é em Aveiro. Tua e Pocinho integram a Linha do Douro. João Cravinho condena a corrupção íncola: é excepção. Nomes de algumas regiões da bela Itália, também temos: Ligúria, Emilia Romagna, Umbria, Basilicata, Toscana, Las Marcas e Apúlia. Mais: Lombardia e Veneto, Lazio e Campania, Calábria e Piemonte. Em Santa Clara de Cuba, há um hospital chamado Arnalfo Milian Castro. No oeste da Índia, mais precisamente no estado de Gujarat, parece haver uma empresa de navios mercantes chamada Kutch Vahanvati cujo dono também tem nome, que é Kasam Ali.



V. O MESMO FIO DENTAL PODE



Louriçal, manhã de 29 de Março de 2010



O mesmo fio mental pode atar os nomes e as obras de Beethoven e Herculano. Aconteceu-me esta manhã, no regresso do Grou, onde fui a conhecer uma serralharia industrial. O meu carro, a minha fisiologia e eu sulcávamos a manhã dúbia: céu de pasta de chumbo ocasionalmente tracejado a dardos solares, massa de pinhais invocando a espécie, casarios sem viv’alma à vista, laranjeiras currais com porcos, rádio acesa em Beethoven, daí que Herculano. Tive de parar no Café Figueiredo para satisfazer uma urgência bexigosa, deixei-me estar um bocadito a ler as últimas da padralhada pedófila nacional e estrangeira: um bolor de sacristia, uma tesão de catequese. Fruí a música de Ludwig, recordei as voltas tão portuguesas de Alexandre entre os anos 1853-54. Ontem, com o João Artur, toques de conversação afloraram o também grande Le Carré, além das ilhas do Oceano Pacífico (o zamericanos contra os japas na II Guerra Mundial). E hoje? Pasta de chumbo e massa de pinhais, jogo de cores-palavras, revoadas de luz e contraluz, música sempre muita e perturbadora sempre. Rapariga couraçada de fiambres coça uma reentrância nalgal em perfeita distracção e plena Praça D. Luís de Menezes ao Louriçal. Por mim, posso o que faço: registo o verde muito vivo da hera que trepa o antigo armazém do arroz, a fivela em casquinha que segura a bacia do pedreiro Damião, as letras verdes do Talho Argentino, a vivenda nomeada Aux Quatre Vents ali em cima no outeiro, o sangue afogueado em derme do rosto desta mulher de grenha ruça, os caçadores líricos de lepidópteros e de mulheres mais secretas ainda que de costume. Uma espécie de paz fulgura – e é o Tempo. Dou-me muito a pastas de pinhal e a massas de céu. Romances, rimanços e romanzeiras. Ribeiras, recatos e regatas. Beleza não pusilânime da nossa Língua. Ludwig e Alexandre. Esta segunda-feira, ainda, os viúvos do casario aferventam caldos sós. Conheço alguns na região. Eles vivem. Fervem postas de peixe-vermelho. Tomam clarete sem ser por festa. Nas salas breves e viúvas, sobem retratos esfumados, a cada um seu patrimatrimónio. São as boleskine-houses possíveis deles: Grou, Foz, Ratos, Foitos, Serafim, Vale das Moitas, Outeiro Martinho, Vieirinhos, Carriço, Matas, Torneira, Cochinchina. Uma certa e indeterminada inocência fluindo na hora: fragrância fria do ar corrente, mulher pequena e vermelha de botas de borracha pretas. Embalagens de bisc8s. Xadrez calceteiro dos passeios. Queres que te seja sincero? – Alguma solidão. Carrinha Ford azul-eléctrica operada por uma mulher gorda e atraente, cheia de viço e seivas lípidas, decote cartográfico com refegos digitalizáveis à unha. Rapaz barbado com camisola-de-treino de um azul carregado como nuvem azul em céu branco. Ouvi dizer que se dá, ele, um bocadito à infusão de ervas fumadas, o que o não impede de portar graciosa fraseação e modo gentil no cumprimentar. Entra o lampantanas do Inácio, desatando a chover grosso às 12h44m. O periquito Tito verdeja pelo chão à cata de migalhas cereais. O patrão Lucídio gosta de trocadilhar “chemisa” por “camisa”. Baltimore de Poe e Louriçal de nós: mesmo fio denmental. Cápsula plástica de vinho abafado caída pelas mossas do chão. Encerramento de centros de atendimento permanente nas vilórias: “vitórias” outras tantas da Demóniocracia destes filhos-da-puta todos. Maravilha luminotécnica de metonímia, de conventos à chuva (deles a tristeza histórica, grave) como agora o convento daqui sob a chuva daqui, de camiões carregados de cobre para Manuel Godinho. Pedofilia de astral católico: meninos pios e sacerdotes luminotécnicos. Uns cornos de plástico aferrolhados à testa dominante. Falar com um português: Pedro Santos de seu nome: a Junta, as obras pequenas (valetas, que, enfim, a Junta de Estradas, a “Cambra” etc. não limpam). A tarde grisa, tipo Leiria, mas Louriçal ainda. Ainda e sempre. Fixações de Beethoven, ou mera literatura pequeno-civil, ou apenas ter lido (muito!) Herculano.

Canzoada Assaltante