28/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 78 a 81

© DA.


78

Sábado,
27 de Fevereiro de 2021

Ruy Belo nasce hoje há 88 anos.
A poesia pensada dele demora.
Moço é ele dentre meus decanos.
Poesia sem fobia adentra a ágora.

79

Mais cedo que tarde, a vez soa de botar unha à liça.
Tenho em livro o viver, a coisa vai-se dando.
Vê-se daqui a Conchada, de luz acaso enfermiça.
É ’inda longe o mar, cuja luz sabe a quando
era fresca a boca, impoluto o corpo, salvo o país
de desastres de deus, toleimas do vil diabo.
Quem me dera um recomeço, mas sempre acabo
tirando da boca o pão, a que levo só anis.
Não me parece mal o enciclopédias folhear
enquanto chove-não-chove em este falso de-vagar.

80

    Um rapaz andou consertando com meia-dúzia de telhas novas o telhado das garagens traseiras do prédio, esse mesmo para que todos os dias atiro, em arroz & pão, o maná das aves livres. Assisti da marquise à obra do operário. Fez o trabalho depressa & bem. As telhas novas destoam das antigas pela claridade infante. Serão novas por algum tempo, depois a mesma pátina elemental as irmanará às demais. É da Lei – como é de lei que escrever isto seja reinventar a pólvora.

81

Entendimento imanente entre pessoa & campos de si derredor.
É instante secular, singular, cifra fechada a céu-aberto.
Entre o que é agro & o que é gente, nada nem ninguém.
A mente age no sentido da pertença a mais mútua.
Telurismo não é palavra bastante para tal comunhão.
Turismo, também não.

27/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 76 & 77

 

Quinta de São Domingos, Linda-a-Pastora
(fonte: "PANORAMA", Revista Portuguesa de Arte e Turismo, Nº 14, Abril de 1943, p. 29)



76

Sexta-feira,
26 de Fevereiro de 2021

    Tenho evitado, como sói dizer-se, procurar-por-todo-o-lado coisa que só se encontra quando procurada-em-lado-algum.
     Correnteza de casario baixo, azinhaga de caliça, mescla de pedra & barro com a mesma proporção de pão & vinho, no n.º 3 há uma Bíblia, no 7 empalidece uma primeira-edição de Cesário Verde.
    Tanto passa o amola-tesouras quanto o trio-gaiteiro: é idêntica procissão de solidões – como se tivesse plural, a solidão.
    É interdito ora ambular pelo lugar urbano. Sanidade & higiene impõem regras ao ovelhame bípede que somos todos. Já nem sombra própria atiramos ao chão comum.
    Funcionam a todo-o-gás (é o termo) os crematórios, famílias esperam uma semana pela jarra munida de um punhado de cinzas. Também isto, que se passa, há-de passar. À mesma praia outras missionárias naus aportarão.
    Ananases mui cheirosos em banca de praça. Esfrega a água o lajedo uma mulata cor-de-pardal. A pega do tacho tem embutida uma meia-rolha de cortiça assaz portuguesa.
    Tanto é de evitar a morbidez quanto o entusiasmo: ambos são desperdícios calóricos perfeitamente néscios. E eu não estou para esbanjamentos, não mais.
    O aspecto sensorial tem-me sido embrutecido por uma demorada crise ácido-úrica – até deitado coxeio. Por conseguinte, mais do que habitualmente gemo sempre que leio poesia má.
    Algum é porém o proveito. Certo modo de narrar-à-britânica apraz-me & aquieta-me a doidivanice barroca. Leio, pois: mas devagar & não muito. Entretenho a existência bocejando em verso.
    Não tenho casa-de-campo em Linda-a-Pastora nem tenda de pau em o Olho Marinho. Pena minha. Hei diversa permanência. Devasso outras barbacãs, por assim dizer.

77

    Perto da Sereia, no quiosque que desta havia nome de firma, livros em segunda-mão a bom preço. Era 1985, que não volta. Arnaldo Gama, Cesário Verde, Alexandre Herculano, William Faulkner – em formato-bolso e a vintes. Volvidos 36 anos, a pandora televisiva oferece derbies em vez de livros: Chaves-Vizela, Derby County-Nottingham Forest, Levante- Athletic Bilbao, Werder Bremen-Eintracht Frankfurt. Resultados respectivos: 2-2; 1-1; 1-1; 0-1. Mas talvez esta notação esteja para a literatura como o rebuçado de mentol para a feira de enchidos. Talvez – mas que se dane. Quando de nada mais, sou dono disto, destas linhas sem consequência mas em sequência. Num episódio da série Magnum (fraquita & simpática série) aparece como estrela convidada o senhor Frank Sinatra, o grande crooner. No episódio, chama-se Doheny. É cena de 1987, salvo erro. Lá vai.
    Quanto ao Gama, ao Cesário, ao Herculano e ao Faulkner, ainda por aqui vigoram, benfazejos companheiros no Grande-Nada. De resto, o Karlsruher foi a Darmstadt vencer os locais por 0-1, golo do sul-coreano Choi.

26/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 72 a 75

© Heonwoo Kwon



72

Quarta-feira,
24 de Fevereiro de 2021


Mortamente a Lua é apedrejada às cegas no vazio
Cá em baixo ressentem-na as marés relojoeiras
De nada nos valerão oiro, pão, tesão & cio
Melhor é ’inda ver o florescer das amendoeiras.

Corri cidades & lugarejos
Locais universais sem novidade
Furtivamente fiz matas & brejos
Pouco me faz mossa de saudade.

73

Quinta-feira,
25 de Fevereiro de 2021

    A sofreguidão mecânica do Tempo obriga a esforços sérios no sentido da auto-preservação, a começar pela mental, essa ínsua onde mais florescem asneiras do que tangerineiras.
    Não sei Março.

74

Invejo a pachorrenta malta bovina?
Não invejo – mas em diverso hoje me gostaria.
A era não vale sequer a lã-canina.
Refúgio, só na mente por estesia.

À larga, a vida não s’oxida tanto.
Arvoredos & retratos há sem moldura.
A doença é a promessa mais segura,
cornada em poste ao chutar p’ra canto.

75

    É acontecimento na vida, a fotografia que fixa a menina de ainda-nem-seis-anitos curtindo a proximidade da lareira acesa quando lá fora a invernal autoridade coalha o éter respiratório.


25/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 70 & 71

© DA.



70

Terça & Quarta-feira,
23 & 24 de Fevereiro de 2021

    Uma de Vila Franca trouxe-nos papéis de Duarte Gusmão Belomano, que discreta existência penou por Coimbra até a Câmara lhe ceder aconchego na vala-comum da Conchada. Essa vilafranquense atarraxava mal das sinapses – mas foi valiosa a sua dádiva, a verdade valha & dita seja.
    Havia uma Xerox no escritório da Reginaconta (com t), que era então o emprego do Bartolomeu Fiapo Adrede. Houve cópias para todos, a 27$50 o bico. Carote mas justo. Conservo a minha resma policopiada.
    De tesouros afins municio o meu pecúlio, que empilho no roupeiro. Quando chove & quando luz sol, sei que posso contar com tal companhia papeleira, que humana ou outra não tenho. Nisto ao menos, não minto.
    Uma de Figueiró, amásia do Firmino-Zé d’Andrade, foi a tractora do cacho de cartas que Freire Manso de Goes escreveu aos do Círculo de Penalva. Em quatro delas está esboçado o índice programático anti-realista. Maçonaria em barda, claro.
    Não receio enumerar procedências: já tudo morreu, sou o restante derradeiro respiradouro. Não procuro nem encontro editor para coisas decerto boas – mas estateladas em desuso neste tristonho tempo de infomaquinetas. No 71 seguinte, disporei em decente ordem algumas linhas do meu roupeiro.

71

(…)
panos de sombra davam fresco às toalhas de relva
salgueiros-da-babilónia sentinelavam o riacho
viver não era ainda indecorosa lei-da-selva
pelo menos assim achava – & ainda acho
(…)
não lhe escrevi antes porque muito me tem achacado o ácido-úrico, ando pagando em gota o que abusei em pinga, queira perdoar-me o senhor, já que o Senhor me não escusa
(…)
são a minha gente pátria, estas papeladas atormentadas de tinta
(…)
pestes do passado
pragas do presente
estamos de lado
nunca mais de frente
(…)
o doutor Olavo é quem pode mais bem indicar-lhe os tutores do programa Quinino-Parker, dom Júlio, ele & mais ninguém
(…)
há toda uma parafernália de necessários & aprazíveis que podemos, já a partir de Fevereiro, portar para o Ateneu, tais como o serviço-china para o chá que nos une a (quase) todos, o Sócrates em marfim para a consola da lareira, os números da assinatura já recebidos, discos de Brahms, Händel, essa gloriosa pandilha – e do mais que o senhor Professor se lembrar entre esta & a próxima. Etc.
(…)
da sala de direcção ao bufete. Era no Ateneu, quando ainda
(…)


24/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 69



© Maurits Escher

69

Terça-feira,
23 de Fevereiro de 2021


Esta parte do mundo teve hoje direito a horas claras.
Florescem já algumas árvores de aqui perto.
Sigo pensando, não m’armando em esperto,
que trombas não são rostos & rostos não são caras.

Parece haver algo possível ainda, no que resta.
Algumas voltas a dar em sozinha procissão.
À mão, a outra mão, irmã que não molesta
a peculiar singular individual condição.



23/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 68

© DA.



68

Segunda-feira,
22 de Fevereiro de 2021

    Não semelhando procurar muito, é tudo afinal o que procuro: novidade & permanência.
    No baldio onde (há quinhentos-mil anos) armaram o pobríssimo circo a que o meu Irmão Rui me levou pela mão, andam obras – parece que de construção de um caixote novo.
    Saí a tratar de uma burocracia simples, tratada foi & está. A Cidade parece & está deprimente. Má época para demandar por ela qualquer sentido, mormente o da vida. Os bancos públicos estão fitados de interdição: nem ao cu se permite repouso, por mais passageiro. E já se rosna que Março vai ser mais-do-mesmo-mesma-merda.

22/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 65 a 67

© DA.


65

Domingo,
21 de Fevereiro de 2021

    Vi hoje alguém que, vivo, não devo voltar a ver. É pouquíssimo provável, para ser o mais franco. Sofre de maleita grave, que no rosto traz inscrita a sépia. Recolhi depois a casa, onde contristadamente almocei. A morte-certa sentida como contumélia – não a própria mas a alheia, se a alheia ceifa alguém de bondade. E era o caso desta manhã dominical já extinta.
    No televisor, rapazes milionários correm de calções para escoucinhar a bola. O filme é comentado por dois papagaios iletrados que zurram interjeições eufóricas. Em Lisboa, um idiota do PS quer ver demolido o Padrão dos Descobrimentos – a esta caca sustentamos em sacrossanta democracia.

66

    Homem em fotografias dispersas pela mesa da saleta.
    Chegou o seu tempo de impotência sem resignação à vista.
    As imagens ilustram o tempo deveras perdido, ilusoriamente vencido aqui-ali, muitos são ora mortos os então vivos fotografados.
    Nem as nove da noite são já, já a sombra uniforme enregela a bela vacuidade do mundo. Doutrina nenhuma. Estores cerrados. Não sei ainda que fazer ainda deste homem.

67

Décimo Manuel Horta Galeano
Homem da terra como os bichos
De silente olhar tal os mochos
Dono alfim de seu destino.

Nora Maria de Vera Alícia
Dama de teres, haveres & quereres
Prantou queixa na polícia
D’encontro a duas mulheres.

Não na vida se hão-de cruzar
Cada um à sua vai
Esta história que contei
Já não tem mais que contar.



21/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 62 a 64



62

Sábado,
20 de Fevereiro de 2021

    Vaz, Rebelo, Conceição, Carriço, José Mendes, Cardoso, Octávio, Matine, José Maria, José Torres, Jacinto João “Jota Jota”, Duda, Guerreiro, Victor Baptista, Tomé, Arcanjo, Rebelo – alguns nomes sadinos que andam comigo há bem & bom meio-século. Colei-os de costas à caderneta de cromos. Vitória Futebol Clube, claro, honroso emblema da classe operária setubalense. São todos, como os escritores, autores também. Eram bravos. Integram a mundivisão portuguesa que é indissociável do meu modo mesmo.

63

Acontece hoje um formoso dia invernal.
Pena apenas não poder divagar devagar por ele em o exterior.
Em outros pontos há inundações, chatices, prejuízos.
Nesta casa não, está-se ao lume da roupa, há chá novo.
Já sei que amanhã de manhã saio um pouco.
Vou visitar um casal amigo, fui ao casamento deles.
Foi a 20 de Maio de 1973, a saúde era outra, primaverávamos.
Continua assisado viver em particular, sem desmandos públicos.

64

Aconteceu já o dia, invernal foi, invernal se vai.
Gosto de ouvir, da cama, a externa intempérie.
Tenho por enquanto onde, o amanhã é desconhecimento quase pleno.
Escutei (id est, li) mulheres retomando décadas suas.
Lembraram as cores das batas uniformes de quando liceais.
Dispus em boa ordem algumas vitualhas.
Hei bolachas para a noite & rebuçados de fruta.
Em maná, alheia literatura volvo própria, por discente.

20/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 61

© DA.



61

Sexta-feira,
19 de Fevereiro de 2021

    Deixou os papéis em perfeita ordem na mesa-de-trabalho antes de ir compor o semblante ao quarto-de-banho. Tomou chá morno, de pé, na cozinha. Atrelou o cachorro. Saíram. Em que ano foi isto? Em um qualquer, já não importa.
    Onze horas do dia onze do mês onze de um ano perdido. Ninguém está a salvo de ter nascido. Os Papéis-Clarke, como são conhecidos, foram doados à Biblioteca Geral. Foi Veiga Molina a dar-no-los em preciosa, honestíssima edição-crítica. Também isto desimporta.

19/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 59 & 60

River and Brussels in Belgium

© Eugène Boudin

59

Quinta-feira,
18 de Fevereiro de 2021

    Dois homens de Portugal: Luiz de Freitas Branco & Fernando Lopes-Graça. Temo que, mais ainda do que esquecidos, sejam ignorados. Este é um país difícil. Difícil & precário. Pouca gente com quem conversar a sério. O arrastado confinamento também não ajuda. Pierre Gamarra, de Toulouse. O galês Dylan Thomas. Também em Bruxelas nascem argentinos: Cortázar, no ano-primo da Grande Guerra. Ontem, no parque de estacionamento de uma hipermercearia, reli fragmentos de Proust (cf. 56). Coisas sozinhas – sem gravidade & sem remédio.

60

    Referem algures alguém que tombou sem regresso de uma miocardiopatia hipertrófica. Não sei o que seja tal monstro. Também não apurei de quem se tratava. Era alguém, ora é ninguém. Nos dias correntes, sempre é novidade referir-se um óbito que não por causa do vírus-chinoca. Parece que nunca as Artes foram tão preciosas. Encafuaram a malta. Os negócios miúdos vão dando o berro & esticando o pernil. Há muito quem procure comida nas caridades. Não é bonito.
    De qualquer modo, Ávalos Simeão Mendo Agra vai levando a sua a bom-porto. Nasceu em berço forrado a ouro. Não estragou a benesse. Há quase setenta anos que regra & pauta a vida por normas fáceis, curiais, sensatas, suficientes. Desde o meu (doce) tempo de liceal que o lobrigo pela Praceta de Berna, jornal entalado na axila, vestido com aquele tipo de impecabilidade chamada asseio. O seu atavio, tenho procurado emulá-lo com viva enargia (NB: não confundir com energia; ide ver a palavra, que é gira.)


18/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 56 a 58

© DA.


56

Quarta-feira,
17 de Fevereiro de 2021

    “O nosso amor pela vida não passa de uma velha ligação da qual não sabemos desembaraçar-nos. A sua força está na sua permanência. Mas a morte que a rompe curar-nos-á do desejo de imortalidade.”

    (Proust, algures na Recherche.)

57

    Não deve contar-se com a misericórdia alheia. Com a própria para consigo mesmo, menos ainda. Não é pela caridade mas pela claridade que lá vamos.
    Certa acalmia, ao de leve angustiante & angustiada, emoldura a saída de casa, hoje, a outra partida do mundo. Faz um tempo enxuto, opaco porém, a campânula nublada não deixa raiar sol. Já a noite dá de si em objectos por enquanto vivos. Uma árvore pergaminha a pantalha oriental. Vejo uma ave negra à flor do Mondego, depois da Portela já, caminho da serra. É senhora do contraste de viver: isto sobre águas que correm, sem pressa, velocíssimas.
    E então a noite, lição perene.

(58)

(O que escrevi no 57 não carece de explanação – que resultaria expletiva.)



17/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 53 a 55

© DA.

53

Terça-feira,
16 de Fevereiro de 2021

    Descemos da sala de direcção ao bufete. Era no Ateneu, quando ainda funcionava. Já então para todos nós era vetusto existir. Valeriano ofereceu o chá & os biscoitos. Laureano preferiu ponche a ferver com uma unha de limão. Razoavelmente, chovia lá fora, mal se distinguia a catedral través a bruma d’água. Não éramos infelizes nem eufóricos. Demétrio trouxe uma braçada de lenha, Aurélio acendeu o fogão ao meio da sala. Anoiteceu sem dor aquele nosso mundo. O doutor Belmiro recordou primórdios da mocidade académica que lhe coube. Gasparilho foi buscar o tabuleiro, jogou uma partida infinita com Calvino. Eu mirava a chuva aumentando a noite. O gato do Ateneu chamava-se Tenório, como o atum de lata. Era manso como a morte alheia. Nada disto é já – nem eu sou, senão esta tinta neste papel, este papel de que Aurélio se serve para acendalha.

54

Lassos laços torno ’inda mais brandos
mercê de indiferenças sossegadas.
Nem grandes nem pequenos são meus nadas.
Daqui já não sai broa p’ra malandros.

Lascarinhos não topo nem suporto.
Tragédias de tostão já não assino.
Tudo é, enfim, vidinha, é destino,
que o Tempo só se vence quando morto.

55

    Várias vezes me ocorreu já sentir que o enredo de A Tempestade se reporta a algo acontecido aqui na vizinhança. (Não, não me refiro à peça de Shakespeare mas à narrativa de Ferreira de Castro.) Sei & não sei porquê. Não só essa leitura se me emaranha com os reais vividos. Outras páginas me parecem dias com suas noites. A Aventura do Serpente Emplumada, de Pierre Gamarra, ainda me faz estremecer de júbilo: “Tudo começou numa noite de Dezembro, uma noite de tempestade, em que toda a montanha estremecia sob as rajadas do vento.” Tentando adormecer sem gravidade, é nessa aldeia mesma de Fabiac, nos Pirenéus, que tento. A vida paginada é mais preciosa. Neste quarto mesmo, a pilha de volumes conhece a espera. Tem sido sempre assim – mesmo quando errei fora daqui.







16/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 52

© DA.

 

52

Segunda-feira,
15 de Fevereiro de 2021

    O silêncio é afinal um silvo contínuo: no quarto como na cabeça. Fora, o vento fala, diz de si a frase longa de ásperas sílabas contundentes. É o que está a acontecer. Uma vez escrito, cada acontecimento torna-se a-contemporâneo, volvendo-se coevo do acto de (eventual) leitura.
    Lista não-exaustiva de figurações presenciadas hoje:

    Pedinte muito velho cantarolando entre colegas;
    Mulher elogiando a longevidade amorosa de seus vizinhos;
    Cavalheiro muito velho optando pela mudez revoltada;
    Nonagésimo aniversário do jornal comunista português;
    Tremenda beleza de cinco-mulheres-cinco-milagres.

    Do caldo de ontem fiz jantar, ceando já tardote malga de leite com bolachas escuras. Entreteve-me depois um filme-de-meter-susto, género que me faz sorrir sempre. Evitei os noticiários: o jornal(eir)ismo lusoportuga está cada vez mais pindérico/parolo/chunga/soez.
    Ao deitar, hesitei um pouco. Resisti à oscilação. Escrevi a azul. Fechei dia & caderno, abri-me ao dúplice silvo.



15/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 50 & 51

© DA.


50

    Tenho adentrado algumas imagens de (às vezes vaga, outras densa) plenitude. Cada um pode (se calhar deve) dizer de si: “Sou apenas um.” Também: muitos zeros multiplicados (elemento-absorvente).
    Pertenço agora – de novo – a um animal. Tenho-me nele. Rotinamo-nos no confinamento desta era. Brincamos muito. Dormimos em cercadura. Proporcionando os dois tipos de existência (humano apud felídeo), as horas dele valem-me anos; os meus anos contam-lhe horas.
    Tratei bem de certo quintal. Conservo esse segmento de tempo como eternidade pessoal & intransmissível. Tenho feito muita literatura dela. Sou meu mesmo herdeiro.

51

Confundo Budapeste com Praga.
Não é que confunda as cidades.
Confundo as cidades que ele me contou.
Talvez Praga, talvez Budapeste, talvez Viena até.
Odessa? Bergen? Coimbra?
Sei que o conto abrange metade de uma noite.
Estiro-me no divã verde-musgo, anjos de humidade no tecto.
Não chegarei aos oitenta vivo.
Ele estende-me uma chávena de cacau fumegante.
Temos ambos tabaco, estamos prontos.

Ele diz ter sido capaz de estimar alguém.
Uma mulher estrangeira, precisou sem ser preciso.



14/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 47 a 49



47

Domingo,
14de Fevereiro de 2021

    Jozef Gabčík & Jan Kubiš, heróis reais: em realidade como em realeza. Mataram um monstro justamente codificado como Antropóide.
    Não muito, mas acontece, digo: o real ser mais belo do que a ficção. Estes dois homens sobrepassam a fantasia. Inserem-se num escol rarefeito. Para diante como para trás, rompem os séculos.
    Muito pode porém o esquecimento. No domingo novo, a luz branca vai aguarelando os sucessivos vácuos. Uma casa vermelha exclama de si a presença sobre verde & azul. Miniaturas longínquas: humanos atrelados a caniches. Boa coisa: pouquíssimas viaturas, um pouco de Nicola Porpora (1686-1768) sempre ajuda a suportar o meio-dia.
    É isto por enquanto mais que por encanto.

48

    Rol completo (v. 47, primeira linha) de Heróis:

  Jan Kubiš, Jozef Gabčík, Adolf Opálka, Josef Valčik, Josef Bublik, Jan Hrubý, Jaroslav Švarc.

49

Entretenho pela atenção elementos nem todos fantasiosos.
Floresta por que deambulam secretas formas vivas.
Praga, a cidade, por que deambula Franz K.
O pior de tudo é ser de sensibilidade inteligente.
Muito marulha a noz-mioleira em uma só existência.
É possível aprender, usar o saber contra a degradação.
Ver como outros fizeram, topar acerto & erro.

Assim é ganha a manhã de exposto ouro.


PARNADA IDEMUNO - 44 a 46 (conclusão de 13.2.21)



44

    Um chamado Pragal ajuda os velhotes isolados na falda da serra, dá-se a oriente o pouco casario, que de manhã recebe em cheio a púrpura do renascimento. Ajuda-os portando na carroça coisas que eles não podem fabricar, mercearias mais raras, remédios, utensílios – e correio. Pagam-lhe com ovos, pitas, laranjas, nêsperas, alguma pecita de ouro-velho. As partes entendem-se, não houve jamais razão para barulho. Nem para literatura, verdade seja dita.

45

No imo de casas vai moendo-se a si mesmo o lume.
Em a de Bruno Canto, parece azul a paz sonhada.
Nada o demoveria de aqui restar sendo de si o nome.
Medíocre apelo o não caça, não já, nesta vida.

Outra não há.

46

    Havia perto daqui (sendo aqui o papel onde é escrito) duas irmãs vivendo juntas. Ambas eram de bondade. Tomavam conta de uma retrosaria pequenina como um berço – e inocente como este. Agulhas, rendas, botões, panitos de cozinha: como meninas brincavam elas, que filhas não tiveram. Passavam os julhos na Figueira da Foz. Era na Travessa dos Banhos que arrendavam uma caixa-de-fósforos com açoteia para a vilegiatura. A morte de uma chamou, em sete semanas tão-só, a da outra. Houve genuína consternação: se não no bairro, neste caderno sim.

13/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 42 & 43

© DA.


42

Sábado,
13 de Fevereiro de 2021

      Franco, Regina, Simone.
    O primeiro reparava vedações e apascentava criação no noroeste australiano. As meninas eram cantoras-líricas em Leipzig. Li as memórias daquele e escutei os discos destas quando me metia drogas regularmente. Atenção: não das duras estirpes colombiana ou cambojana – mas das prescritas por senhores doutores entendidos em o que é & o que (des)faz o ácido-úrico.
    Franco cuidou bem daqueles vivos da árida amplidão de tão rara monção. Regina cantava bem. Simone, muitíssimo bem.
    Claro que nunca conheci em pessoa tais pessoas. Máquinas do século XXI me as proporcionaram. Estão disponíveis na rede. Relata-se que o trio é só memorial: o Tempo as tem.

43

    Aprendi a não ser do tipo de gente rancorosa por terem asas as moscas & água os rios.
    Em recato, uma pessoa pode escutar Karlheinz Stockhausen sem ter de apresentar as mais veementes desculpas ou esconder os remorsos mais vivos, mais ásperos, mais autocondescendentes. Assim é.


PARNADA IDEMUNO - 41

© DA.


41

Sexta-feira,
12 de Fevereiro de 2021


    Pode magoar a sério, isso de insistir na limpa indiferença do Tempo por todos & cada um. Tal indiferença é de facto limpa. Limpa, inexorável, inquebrantável, inamovível. É remédio, mèzinha, panaceia & placebo fingir indiferença por a indiferença. Quem crê poder, trabalha em sua departamentada tarefa. Um deles: Salomão.
    Salomão de Maria Brandão d’Arcos, residente na Ladeira da Paula, velho almocreve de antiqualhas paginadas. Chegou a muito velho: 101 anos, duas semanas & um dia durou. Inumou duas esposas e – hélas! – quatro dos doze filhos. Não deixou nome de rua nem fortuna em prédios, rurais ou urbanos que fossem. Deixou-se de tudo, sobretudo de si.

12/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 40


40


Sexta-feira,
12 de Fevereiro de 2021

    
    Apareceu uma rapariga de vint’&poucos contando alguma coisa de seus primeiros anos em zona manhosa da banda-d’além da capital. Parece, move-a hoje um entranhado amor à natação-sincronizada, afeição que partilha com amigas de Almada, Amadora, Algés, Linda-a-Velha, por aí.
    Da carruagem do metro onde ela vai, apeia-se um rapaz caboverdeano já adiantado em seus sessentas. Vai almoçar à Alameda, em uma casa-de-pasto a que afluem ilhéus daquela ex-colónia. O serviço é bom & barato, mormente bacalhau na brasa, chouriça na mesma, coisas assim que não dão grande trabalho.
    Isto acontece em 1995, tenho-o presente porque o confinamento deste segundo ano-chinês-viral me faz revolver leiras & prateleiras mentais há muito em pousio. Sei que não estamos em 1995: nós, não – mas eu, sim. Vou descendo a Almirante Reis, venho docemente fatigado do passeio-mirone que dei pelo Cemitério do Alto de S. João. Saudei lá o senhor Ramalho Ortigão & esposa. Desci depois a Morais Soares, fiz o Chile. Fiz o Martim Moniz por não ter cortado, acima, pela Pascoal de Melo até à Estefânia.
    Estou ante o amplo Tejo, é gloriosa a manhã. Lisboa é um pecado sem culpa nem escusa. Na noite de Coimbra (ano-chinês-2021), há calmaria imposta pelas circunstâncias. Uma pessoa, sim, uma pessoa habitua-se. Vou por uma Lisboa pessoal que se me volveu portátil, há um quarto-de-século que se me reitera essa cidade.
    Na do Arsenal estavam o Armando, o Lucídio, o Vide & o Mário. Andavam na lisboa-vai-ela: copo em cada loureiro, de vez em quando metiam um bolo-de-bacalhau para abafar. Não mais os reverei, tão certo como daqui à Lua não haver escadote: o Armando está no céu, o Lucídio no purgatório, o Vide no inferno & o Mário em Moimenta da Beira a viver com um gajo.
    Amanhã continua a ser 2021, as notícias vão ser requentadas das de ontem, as redes-ditas-sociais hão-de formigar na mesma de um tropel parado a uma revolução sem cantores. Não tenho pressa.
    Nisto, chego aos Prazeres.




11/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 38 & 39

© DA.


38

Quinta-feira,
11 de Fevereiro de 2021

    A máquina devolve ao pobre futuro a rapidez de um homem cuja vida foi o mais lenta que ele pôde.
    Dedicou-se desde cedo ao que queria dedicar-se. Não muitos há a dizer o mesmo de como existiram. Não como Doroteio fez, foi, andou & desandou.
    Só queria eu que vísseis como era a finitarde em que Doroteio se botou ao mundo de fora-casa. Ia ele a ver um ente seu parente que estava doente. Hora anilada, de um índigo já avioletado pela urgência de morrer do dia.
    Também tal já foi, como foi já, e não volta, Doroteio.

39

    Paul Valéry em texto de 1927 (Images de la France, in Regards sur le Monde Actuel):

    “La poésie a quelquefois occupé mon esprit; et non seulement j’ai consumé quelques années de ma vie à composer divers poèmes; mais encore, je me suis plu assez souvent à examiner dans leur gravite la nature et les moyes de cette art.”


10/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 36 & 37


© DA.


36

Quarta-feira,
10 de Fevereiro de 2021

    Uma via liga as construções no cume da colina às do sopé da mesma. Serpenteia um pouco para aliviar a condição íngreme de tal trecho do mundo.
    Já muitas vezes a palmilhei a solitários penates. Umas vezes, de manhã muito cedo, muito fresco o mundo renascido. Outras, já noite cerrada, à solta os fantasmas próprios como idem os alheios.
    Refiro-a (estranha coisa) por saudade. Estranha por justificado mote: porque a tenho a poucos metros de casa & porque me obrigo a confinamento antiviral. Por tal mote, voltas não dou: daí a saudade.

37

    Entravam às dezasseis, despegavam à meia-noite. Na copa da cantina faziam sandes para comer de caminho. A doze quilómetros estacionavam em frente ao bar da estação-de-serviço, bebiam uma cerveja cada um, raramente duas, às vezes nem uma, bastava-lhes um abatanado bem quente. Era quase sempre inverno, nesses anos ainda não proscritos nem por escrito. Auferiam razoável remuneração, com a que sustinham as famílias. Conheci-os por eu próprio andar muito na estrada da noite, então. Jorge Marcamor & Télio Cigarra eles eram. Eu, Dionísio Arco, ao vosso conto.
    Mais três quilómetros a sul das bombas, e chegava-se à vilória onde nasceu Virgílio Melo, o reputado autor da Paródia de Cícero, essa ridente opereta que a tantas plateias sócio-recreativas tanta alegria deu. Virgílio Melo, o não conheci já, era eu bambino quando a tuberculose o enxugou. Represento-o aqui por já ninguém o representar alhures.
    Télio & Jorge sumiram-se nas respectivas brumas, como me sumi eu na minha, é da vida a lei natural & a coisa à ordem. Com mais néon e pior serviço, ainda lá é o bar da gasolineira. Só que já muito raro é eu anoitecer fora de casa. Envelheci, ganhei tudo já o que tinha a perder, nada nem ninguém me convoca para fora destas paredes a que encosto tantos manuscritos impublicáveis.




09/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 34 & 35

© DA.


34

Terça-feira,
9 de Fevereiro de 2021

    Aristóteles, Ptolomeu, Copérnico, Kepler, Galileo, Newton, Einstein – seita do caraças. A linguagem do céu & o idioma da terra abriram para eles o silabário elementar de tudo isto, este incessante espanto de ser, estar, ter sido, estado-ente.
    Matemática, Física, Música & Poesia não se repugnam. Energia, matéria, massa, luz, gravidade. Números, notas. Sentido: de rumo como de significação.

35

Interrogando o céu, a nós nos interrogamos mesmos.
Primevo é nosso desconcerto, que consertar tentamos ainda.
Ainda & aliás sempre, desde já o rupestre artista, sim.
Láctea, mineral, viaticamente, senhor-fora, ardemos pergunta.
É bonito este resto-zero de Tempo que nos é doado.
Compensamo-lo com recorrentes tragédias brutais.
Na manhã transparente, miremos a aranha tecendo.
Falsídia não conhece, fatacaz de ouro ou tracanaz de prata.
Crianças perpétuas, envelhece-nos a desatenção.
A nós atenta todavia, toda a vida, a morte, lembrados seremos.
E empós, em pó, esquecidos – portanto respondidos.


PARNADA IDEMUNO - 33

© DA.



33

Segunda-feira,
8 de Fevereiro de 2021

    Homens contaram lances de seus pretéritos profissionais. Concluída de cada um a carreira, há diversão de continuidade.
    Marto confessa alguma melancolia por não haver bravejado algo mais em a antiga senda. De alternativa, ocupa-se de cavalos de raça cultivada. Poupou bem em tempos, não investiu mal. Mas pensa no passado, naquela escolha que fez.
    Carmim fez por sua casa. Apoiou-o em tudo a mulher. A sala-de-estar em que nos recebe a par dela está decorada com contenção & intenção. Nota-se porém que, como as pessoas do campo, preferem a cozinha por núcleo do lar quotidiano.
    Houve mais homens contando-nos mais coisas – mas de tal não submeteremos (por) ora relatório. Distrai-nos outra lembrança, a que (a)cedemos, pousando todavia primeiro a caneta.







08/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 31 & 32


31

Segunda-feira,
8 de Fevereiro de 2021

    A estrela intermitente contra o fundo de estrelas naturais: lembrança do avião na alta noite, que em menino miro do meu pátio terreno. Hoje ainda, se a noite me faz erguer o olhar ao firmamento, sinto serena euforia se uma das estrelas é de humanos dentro. Humanos cumprindo um destino, como eu cumpro o meu, embora não voe nem a caminho vá de ter asas.

32

    Alude de neve, gelo, lama, pedras, terra – mortos em barda em remo(r)to canto do mundo que nunca conhecerei em corpo.
    Em branda quietação, mirei da marquise a pátria local.
    Televisor desligado: proibido o acesso a papagaios vácuos.
    Das anotações mais recentes, um António do Norte, oficial de barbearia; um Afonso leitor de um Fernando, estando Fernando morto há 85 anos, sendo Afonso nascido há 17; uma Ilda de Gouveia, mãe de onze mancebos, nem uma rachita deu ela à luz; Guida, mulher-polícia, 42 anos, sonhou ser botânica no instituto universitário, voltas da vida.
    Desconheço se alguém do rol alinhavado supra cuida de música-descritiva do tipo obra sinfónica que foi beber à literatura, hagiográfica ou profana esta última. Desconheço, ignoro, não sei.


07/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 29 & 30

(1937-1992)



29

Sábado,
6 de Fevereiro de 2021m

Na cerração, cuidado já o gado, recolher ao lar.
O frio faz ranger o arvoredo de em torno, seiva gelando.
À porta, o cão da casa dá sinal de segurança, sem ladrar.
Composto o jantar, brande o lume rubis de morango.

30

    Um pouco de Constança Capdeville, na noite possível. Alguém no Tempo obrante. Pela utilidade livradora. Volatilidade & trabalho, isso sim, muito trabalho.
    Um pouco de Christopher Plummer, ora defunto aos 91 de nascido. Constança, de 1937. Christopher, de 1929. Pessoas da corrente fixação. Gente operando na contracorrente do transitório.


06/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 26 a 28



26

Sexta-feira,
5 de Fevereiro de 2021


    Graciano Jorge Valido Colaço, sereno senhor, pontual como dos Britânicos d’antigamente se dizia, sempre de fato completo, sempre de ataviada limpeza, tomador de carioca-de-café + cálice de menta, fumador de Sintra. Não sei que número é o de seu lote campal em Santo António dos Olivais. Gostava de basquetebol, de miniaturas ferroviárias & da mulher, Etelvina da Conceição Juno Valido Colaço. Também esta já mora, mas quis ser sepultada em Figueiró dos Vinhos – ninguém sabe porquê, à excepção de Coralina Maria, filha única do casal.
    Coralina, telefonista da companhia de seguros Valimento, descasou-se de Nivaldo Niterói, um arrivista brasileiro que lhe legou um policarpo de dívidas de jogo & de putanheirices compatrióticas (dele). Amancebou-se (ela) com um enfermeiro já avelhotado dono de casa própria no Troviscal. Não tenho presente o nome deste senhor. Presente, só o de Graciano, adepto do Sport Conimbricense & sabedor de que as grandes potestades imperiais do XIX cuidavam todas de criar, manter e aumentar uma poderosa rede de ferrovias.

27

    Dói-me a vida. – suspirou Adriana Paulo. – Às vezes, dói-me a vida. Era todavia pessoa forte. Suspirou aquilo por suspirar, às vezes acontece, isto porque sim, aquilo porque assado.

28

    Enredos de espionagem, narrativas de interesse com elementos como veículos modificados, máquinas de cifração, dinheiro ilimitado, certo messianismo individual servindo-se mais do sistema do que este do messias. Tem de ser em cidade estrangeira. Berlin é sempre possível. Dublin, idem. Clube de ricaços de ancestrais clãs. Tráfico de influências, claro. E de raparigas eslavas. Xenofobia, homofobia, plutocracia – de tudo, um muito. Mensagens que tilintam na madrugada. Na madrugada, o comboio quase deserto rumo ao norte. Entre a gare e a quinta, viagem feroz & veloz, claro que de BMW. Aí, o dramaturgo célebre, hoje sem esposa por perto; o patrono mais generoso da igreja protestante local; o cozinheiro-guarda-costas-motorista deste; e um representante do ministério do Interior.
    A orla do bosque surge anil quando a oferece a estrada toda prata, a páginas 125 de um livro por escrever.




05/02/2021

PARNADA IDEMUNO - 25

© DA.


25

Sexta-feira,
5 de Fevereiro de 2021

    O mesmo Juliano por ruas da cidade-natal. Chove a espaços. A pedra histórica parece cartão ensopado. Já pouco falta para se consumar o milénio-pátrio. Casario velho suportando inclemência. No Café Oásis merendou algumas vezes solitárias – mas uma houve que foi com a filha. Naquele largo comprou ele pão em uma feira de passada década. Como relógios, estas coisas continuam contando. A casa com lápide do famoso ensaiador das fogueiras. A casa de José Cerqueira quando estudante de Letras. A casa dos Cunhas. A taberna do Pratas. A Filantrópica do Amado. Um lençol de sol. O plinto de Diniz.

 


 

Canzoada Assaltante