27/06/2005

Noite

Se a vida são apenas dois dias, aproveitemos bem a noite que, unindo-os, os divide.
Em pleno inverno, não é má ideia chegar lenha ao lume, comer uma sopa de agrião, cheirar a quietude da casa, desrolhar uma garrafa de porto antigo e abrir um Maigret na primeira página.
O pior é ser, ou estar, sem-abrigo. Nesse caso, o melhor será dobrar O Correio e guardá-lo entre o peito e a camisola.
“Aproveita o dia”, como reza o adágio que nos legou a velha sabedoria. Aproveita a noite também, digo eu. A noite é quando não nos é possível enganarmo-nos sobre quem, verdadeiramente, somos. O dia é a planície do disfarce. A luz branca tapa os olhos. Mas, à noite, a máscara cai, assim como as artes e manhas da subserviência, da insinceridade, do constante adiamento. E nem sempre gostamos do rosto que mora sobre o nosso próprio pescoço.
De modo que o melhor é aproveitar tudo: a lição do mal, o ensaio do bem, a distância quase nula entre uma e outra coisas.
Que no caldo das horas ferva, sereno, o sal do instante. A serenidade é o que merecemos. Acontece que o que mais (nos) custa é, precisamente, aquilo que merecemos. Desconheço por que digo isto, hoje e aqui. Talvez porque se vá fazendo tarde. E, como é por demais consabido, a tarde é a mais larga porta para entrarmos na noite.



O Correio (Marinha Grande), 19 de Janeiro de 2001

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Canzoada Assaltante