31/05/2006

Praça da Alegria

Gosto de aqui vir todas as manhãs. Em horas mais frias, já vi a lareira acesa, sendo convocado pela magia hipnótica do fogo. Há vários dias que a não acendem: o sol subiu à serra para exercer o seu egipto. Na televisão, ocorre o programa da manhã para reformados e poetas inúteis.
Esta hora diária faz-me bem. A outra vida recolhe as garras, por uma hora. Entro no limbo, lendo. Aqui entrei na memória da senhora Phyllis Bentley, na cabeça de Pedro Juan Gutiérrez, na bonomia de Mário de Carvalho. A inglesa, o cubano e o lusitano (Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, que belo título) gostam, livrescos e cavalheirescos, de aqui estar – num café par(a)do da serra. Faço-lhes companhia. O resultado é uma obra de melhoramento: da solidão inelutável de todo (mas todo) o ser humano, da asfixia respiratória (há outro tipo de asfixias) de todo (mas todo) o ser vivente.
Também há as putas das moscas. Zamboam rente às orelhas. Têm de ser sacudidas com um gesto cabrão, irritado, contra Deus. Lá para dentro, há sala de restaurante. Ainda lá não fui comer. Hei-de ir. Ele há mais dias – assim se espera.
Esta é a última manhã (última para sempre) deste Maio irrepetível. Amanhã é Junho, o mês claro. Há um livro, que nunca li mas hei-de, com um título muito bonito: Inventário de Junho. Escreveu-o Teixeira Gomes. Gosto tanto de livros como de títulos. Há autores muito secos no que respeita ao baptismo do que escrevem e dão a lume. Moravia e Kundera são exemplos: do primeiro, A Atenção, O Desprezo e A Romana; do segundo, A Imortalidade e A Ignorância. Por exemplo(s). Outros há que mostram garbo na titulação. Mia Couto (fraco, simpático escritor) inventou Cada Homem é uma Raça. Esteve bem. Luís Filipe Costa, esse gigante, romanceou Agora e na Hora da Vossa Morte e Borboleta na Gaiola. Cardoso Pires, o espertalhaço, ancorou o anjo.
O meu Pai, que não era escritor (nem se disfarçava disso) titulou filhos e netos a partir do seu nome seméninaugural: Carlos Daniel, José Daniel, Daniel, Carlos Daniel, José Daniel, Rui Daniel, Daniela, Sofia Daniel, Leonor Daniel. Outras famílias igualmente tentaram, a cada nascimento, a reedição do livro patronímico respectivo. Joões, Josés, Antónios; Marias, Teresas, Joanas.
Onde eu já vou. Interrompo, vou ao balcão, converso com a senhora (Maria) sobre Fé. Conto-lhe de uma coisa que ontem soube e escrevi ontem, em crónica, para O Eco: que há um chico-esperto em Cascais a ganhar cacau (depósito directo ou transferência bancária) pagando promessas por outros. O gajo (diz que) vai a pé a Fátima na vez de quem não pode. A senhora Maria ouve isto e depois desconcerta-me: “Eu tinha uma promessa a Nossa Senhora também, mas o meu marido não me deixa ir. Falei com o senhor padre e paguei para que alguém fosse por mim.” O sangue arenou-me as rosetas. Balbuciei: “Mas pronto, a senhora é um caso.”
Um caso. Disse-lhe que respeitava a fé dos outros, que os meus pais me não tinham criado na fé. Respeitar, no meu caso, é calar-me. Ela disse-me que aqui na freguesia “há muitos jeovás, mas pessoas de respeito que se não metem com ninguém”. Depois foi para a cozinha. Eu fiquei sozinho na sala de café. Sozinho à confiança.
O programa da manhã não é apresentado pelo Malato, o bem-disposto-profissional que também é “jeová”. É apresentado pelo Jorge Gabriel, o neto ideal das avós de Portugal. Estou sozinho na sala de café: as vezes que isto me tem sucedido. Na fronteira calendária Maio-Junho. A Praça da Alegria suspende-se para intervalo publicitário.
Tenho alguma cultura. Querem ver? Antigamente, este programa era apresentado por uma das minhas fixações: o Goucha. O Manuel Luís: a neta ideal das avós de Portugal. Lembro-me de o gajo assinar, há mais de vinte anos, uma crónica no entretanto extinto O Jornal. A crónica era gastronómica-restaurantina e chamava-se Em Banho-Manel. Eram textos bem escritos, lembro-me. O fulano é tudo menos burro. O “pobo” gostaria de que ele, Manel, se casasse com essa inenarrável distracção de Deus chamada Teresa Guilherme. Mas ele, népias. Está no direito dele. Eu faria o mesmo. Eu também preferiria ser, sei lá, entrefolhante, por assim dizer.
Para minha pura alegria, dá-se uma banda filarmónica no programa. Filmada na rua, interpreta uma marcha de concerto. Vou ver se me dizem de que filarmónica se trata.
Já disseram: Sociedade Recreativa e Musical Loriguense (de Loriga). A roliça fresquinha curricular previsível idêntica pepsodêntica democrática larclínica gerontófila loura apresentadora salienta que falta menos de um mês para a comemoração do centenário da Banda. Do melhorzinho que o “pobo” se lembra, é de manter as bandas filarmónicas. Digo eu, que sou suspeito neste amor por bombardinos, tubas, requintas, tarolas, sopranos, flautins, trombones, maestros, secretários e foguetes.
E quando vou a ver, é meio-dia: rima com alegria. O sol amareleja nas resistências cromáticas: o azul-azulejo do céu, o verde-cedro dos cedros, o branco urbano dos casais e a negrura domesticada do meu coração. Dizem que as cores são criações do cérebro. Que somos nós a pintar o mundo. Que cães e gatos vêem a preto-e-branco. E eu, que gosto de pintores e de pintura, fico sempre na antemão desse prodígio. Posso dar um exemplo: quando era infante, acontecia ser de bom-tom gostar de “azul”. Gostar, não: preferir. “Qual é a tua cor preferida?”, perguntavam às crianças quando, no meu tempo, toda a gente era criança. “Azúli”, respondiam as crianças todas. Eu também respondi isso. Mas era mentira. Era mentira, e eu sabia. A minha era a que é hoje e há-de ser sempre – a cor amarela. Negociei esta lucidez (e outras, e outras) comigo mesmo. Chegado a tardio adolescente (SG Gigante a 44 escudos, primeiras cervejas), refilei: “Amarelo. Gosto mais do amarelo.” Isto aconteceu em 1981.
Em 1981, comecei a sair à noite. O candeeiro público flashava o cedro privado do prédio. Era ao pé da curva. O meu prédio era amarelo e verde: uma coisa tão linda como uma omeleta de janelas. Fomos para lá viver em Junho de 1964. Não me lembro disso, mas algum dos daniéis anteriores se lembrará. Passam-se dezassete anos num fósforo, e começo a sair à noite. Sextas e sábados, Café Nelídia. Rapaziada e homenziaria, fumo e ruído, bilhar e pacman, cerveja e sextissábado.
Parece que nos estou a ver. Os jogos eram lá dentro. Passava-se pelas grades empilhadas no corredor cor-de-tijolo e húmido de canalização. O pacman era a cinco paus. Eu só gastava os cinco paus: foi o (único) jogo da minha vida, cheguei à nona chave (mais de 500 mil pontos). Dando uma porrada seca na ranhura, o cérebro electrónico tinha uma trombose benigna e dava três créditos. 3 x 500 mil igual a um milhão e meio de pontos. Eu era feliz, fazia o milhão e meio, o meu irmão estava vivo, o mundo parecia uma coisa arrumável, mesmo que não fosse sexta ou sábado. Lembro-me de rir. Eu já ri. E as essências perfumadas da língua portuguesa já me adentravam: o padre António Vieira e o Correia Garção de

O louro chá no bule fumegando
De mandarins e brâmanes cercado
Ruiva manteiga em alvo pão torrado (…)


Que coisa. Levanto a cabeça. A cabeça levanta-me. Meio-dia e 25: não voltarei aqui este Maio.



Caramulo, manhã de 31 de Maio de 2006

29/05/2006

Deve Ser Cedo a Noite Porque Antes Faz-se Tarde

Estes dias, estes dias.
Calor e claridade. Mais papel e mais luz: Phyllis Bentley, Colin Wilson, John Osborne, Alan Sillitoe. Não só. Também Ian Brady, o assassino dos Moors, Inglaterra.
Visão, beleza e desfaçatez do Mundo.
O homem muito velho consultando um mapa de Portugal na esplanada do Avenida, Caramulo.
Estas palavras escritas a caneta verde sobre mesa redonda, de ferro, azul (o mesmo azul do caderno de que me servi para anotar António Sérgio, Ensaios-I, há 25 anos).
Estas coisas que ficam: uma cor ou duas.
O meu cão amarelo.
Uma dulcíssima fadiga.
Deus nenhures.
Só homens e mulheres formigando, alguma motorizada, carros a gasóleo.
Dois pardais. Um, com uma estrela de palha na boca. O outro, sem estrela.
O homem velho, a dois metros de esplanada, diz-me:
- Não fumo há mais de 25 anos.
Digo-lhe:
- O senhor é que tem juízo.
Eu fumo. Fumo devagar, passa das sete e meia da tarde, uma brisa tecla, uma a uma, as folhas dos plátanos.
Tenho um mau livro de poesia (ou um livro de poesia má) para acabar de ler. Preciso de ler também coisas más - para ver como se não deve fazer.
Depois de almoço, hoje, vi um homem praticando verbos: cambalear, tartamudear, exacerbar, perder, lembrar, beber. Era um bêbado-todos-os-dias. Esgazeou, também. Quando me levantei para ir pagar ao balcão, disse-me:
- Eu tive um rádio de altas frequências.
Eu não disse nada. Ele disse:
- E uma máquina de escrever.
E pôs-se a fazer com a mão direita gestos de caneta. Depois corrigiu-se e usou as duas mãos para fazer como a brisa às folhas dos plátanos.



Caramulo, tarde de 29 de Maio de 2006

Deitado

1
O passado tem uma qualidade magnífica.
Não é a morte.
É o futuro ao contrário.
2
Jogamos ao xadrez com as recordações.
Umas vezes, perdemos.
Outras, ganhamos.
3
Viver é empatar tecnicamente, logo.
4
"One should not unjustifiably inflict one's personal emotions on other people.
Phyllis Bentley, O Dreams, O Destinations, p.78
5
"For everything you have missed, you have gained something else."
Ralph Waldo Emerson, cit. por Phyllis Bentley, op. cit., p. 195
6
Por que razão estas palavras estrangeiras me dizem tanto? Porque dizem o que eu já senti-sabia em português.
7
"Estavas tão bem deitado", disse-me Inner Voice, uma senhora estrangeira minha conhecida.



1, 2 e 6: Caramulo, 20 de Abril de 2006
3 e 7: Caramulo, 29 de Maio de 2006
4 e 5: O Dreams, O Destinations, Phyllis Bentley, London, Victor Gollanz Ltd, 1962

Saindo ao Calor da Noite para Tomar Café

Nada sei de agricultura, nada sei de meteorologia:
não sei trabalhar a terra, não sei trabalhar o céu.



Botulho, anoitecer de domingo, 28 de Maio de 2006

26/05/2006

Duas

A minha vida e esta árvore:
duas sombras.




Caramulo, tarde de 26 de Maio de 2006

O Tempo das Rosas

1

Cada dia tem o seu outono.
Esmorece a luz, a luz tem sono.
Boa hora para ir buscar um amor
- pode ser um filho, pode ser um cão (mesmo sem dono).

Quando em Lisboa, acontecia
eu ir ver passar os carros regressando
aos dormitórios de fim de dia
- tristes carneiros: seguindo, parando...

Sempre m'assim foi. Assim será
mais sempre, suponho. E todavia
acordo cedo, sabendo já
que outono não há sem invernia.


Quem diria... O meu Pai, tão brincalhão,
tinha por fé (com muita razão)
que amar um filho é com'amar um cão.

Hoje o entendo, duas filhas depois:
são de olhos tão mansos quão mansos os bois.

Quão manso de hoje o outono! (Mas é primavera.
Vou deitar-me cedo. O verão já me espera.)

2

Nasci como os outros: não faço diferença.
Nascer é bem menos de quanto se pensa.
Morrer não é tanto que se não aceite
qual sono em sossego e puro deleite.

Viver é diferente: é (todos os dias)
ser eu e ser gente sem mais demasias.
Tem isto um truque? Um truque isto tem:
foi chegar-se o pai tão perto da mãe.

3

Era o tempo das rosas. Maria
saindo à rua sentiu comoção:
palavras fugidas da pele do papel
andavam (as tontas!) nuas pelo chão.

A palavra "rosa". A palavra "sim".
Palavras, palavras - que não tinham fim.
A palavra "espera". E outra, enfim,
jurava que ela era só p'ra mim.

Compôs ao pescoço o lenço correcto.
De chita, o vestido (seu tanto obsoleto)
traía a pobreza que a pobre vestia.

Qual outra palavra? Como só p'ra mim?
Eu só disse: "Espera!". Eu só disse assim:
"Era o tempo das rosas. Maria..."



Caramulo, tarde de 25 de Maio de 2006

25/05/2006

Os Animais são Nossos Amigos, Mas

Braboleta braboleta
gosto bem do teu boar
não tens corno nem corneta
não se oube o teu soar

Olha lá mulher casada
teu marido adromeceu?
Chega aqui tua regueifa
chega aqui que mando eu

Ó fromiga fromigueta
nunca te bi a fumar
a cigarra branquipreta
passa o estio a esfumaçar

Era um chato lá envaixo
munto daba que coçar
deile um murro nos tomates
e fartei-me de saltar.



Óvrigadinho. Caramulo, tarde de 25 de Maio de 2006

Meia Pálpebra

Duas intensas sessões de trabalho (reportagem de manhã, estúdio depois de almoço) não impediram, antes propiciaram, o usufruto do descanso ao sol das três da tarde.
O sol acontecia largo, abundante e total como o ar, sendo a causa mais forte da realidade. Ao perto como ao longe, o mundo parecia inocente como um bebé descomunal.
Bocejei ao pé de um tufo de flores amarelas. Abelhas trabalhavam nelas. Um cão castanho, de cabeçorra derretida de sono, sustinha a custo meia pálpebra. Passou no horário a camioneta de carreira. Aos pés, a raspa de cinza das palavras usadas até ao momento. Não exerci o poder da recordação: a província é o presente perpétuo.
Agora, espero que arrefeça, que a Nação progrida e que as abelhas tenham boa sorte, que faz sempre jeito.




Caramulo, tarde de 25 de Maio de 2006

24/05/2006

Os Prémios

(Porque não há senão sem bela, decidi dedicar este texto à senhora Lina Nicolau. Devo ter feito bem, já que, logo a ter decidido, me encontrei sorrindo sem quê nem para quê.)
Há momentos em que a minha vida pára, se aparta e vai passear. Fico eu. Assobio para o lado enquanto ela não volta.
Há vezes em que nem desejo que volte. Ela volta. Anda por aí como uma gata. Volta para se alimentar. Eu perdoo-lhe: sobreviver é uma espécie de cristianismo sem assembleia.
Esta tarde, quando esperava por ela, entretive-me a ver os prémios do jogo dos furos. O prémio principal era um relógio embutido numa máquina de costura castanha com uma águia vermelha por cima: o Tempo rapace, o costureiro Tempo. Havia uma pistola-isqueiro e um canhão-isqueiro, também. Havia um aquecedor eléctrico de café. Havia canivetes e cachimbos, curvos todos, marinheiros todos. Não joguei.
Depois, um ligeiro estremeção, uma frenologia, um arrepio medular: era ela de volta ao corpo que não joga mas sabe os prémios.
Caramulo, agora, tarde de 24 de Maio de 2006

Fundação Pessoal para a Alegria no Trabalho

Se o meu corpo tem memória, és a alegria póstuma dele.
O amor pode morrer, não o ter amado.
Não cederei à evidência trágica dos livros: fundamentá-la-ei, antes.
Isto é um modo de vida.
Amo-te mas fez-se noite.
Olho em volta: vejo homens assustados, acossados pela magreza luminotécnica dos cafés.
As mulheres em casa, grávidas, fazendo mais sopa.
O rumor terrível da aldeia: as vidas engaioladas, as vidas cheias de arames, móveis coxos, cascas de laranja, baldes sujos.
Não cederei ao terror do amor: elegiá-lo-ei, antes.
Estou agora muito mais vivo.
Tu também.
Estou agora muito mais entregue ao meu ofício – como um peixe à natação.
Na noite muito escura e pura, conheço o limoeiro, o poço fundo, o vento mineral.
Isto é tudo verdade.
Eu derivo.
Tenho um coração de cortiça.
Tenho uma alma neurotransmissora.
Num hotel da cidade do Porto, certo outubro, sentei-me a ouvir o pianista.
A música acontecia tão materialmente quanto uma pessoa ou um vaso com flores.
Figuras-Hopper tomavam cálices doces ao balcão.
Eu estava em serenidade.
Suponho que estava vivo, apesar de ti.
Depois, gerou-se a confusão.
Digo: o hotel evanesceu, conheci uma mulher, as luzes públicas sucediam-se sem respirar na berma da estrada.
O tempo mexeu as barbatanas.
Os dentes tiveram frio.
Um ventre chupava o outro, ultimatava-o de licor de leite.
Oh sim, eu fiz por sobreviver, claro que sim!
Exaurido, eterno, pessoal como uma rosa genética, abandonei o carro a tremer de calor.
Havia em frente uma parede onde tinham escrito uma obscenidade anarca.
Puxei as calças para cima.
Tartamudeei dois passos laterais.
A porta da sacristia estava aberta, alguém lá dentro remuneraria o padre.
Desci uma viela íngreme.
Fritavam toucinho algures, o perfume inquietava-me a mim e aos cães acorrentados em pátios submersos.
Talvez eu não mereça tanta beleza, sabes?
Estou como quem não quer a coisa, e vai daí um cinzeiro, um portão encarnado, uma unha roída, um aniversário infantil – tudo me comove tanto, Pai.
Foi para isto que me fizeste.




Caramulo, manhã de 24 de Maio de 2006

Dez Textos Para que os Leia Sandra Bernardo

(Liguemos, em 91.2 FM, a rádio)


1

Tu queres ser aquele que renasce. Queres ser aquele que vive um pouco mais. Um pouco mais ainda. Tu queres. Tu és.

2

É Maio, mas na casa da montanha ainda a lareira arde. Em Junho, queimarás ainda um punho. No Verão, queimarás a própria mão.

3

Quatro homens batem as cartas na mesa. A carta de Angola colonial para o Amor de Mãe na metrópole. A carta de despedimento da noiva carnal, infiel. A carta de recomendação aos anjos falidos de Deus, Administrador. E o ás de espadas, que nada corta: o trunfo é ouros.

4

Na tua ausência, aumentei a minha presença.
Fui à mercearia, comprei latas e hortaliças.
No terraço, o gato cumpria a Lua.
Deitei-me cedo, já a luz estava apagada de véspera.

5

O mundo é uma bola para jogar ao pontapé. Se sentires alguma pontada nas costas, tens três hipóteses: ou a China, ou a América, ou a memória.

6

Quanta beleza, a dos gelos perpétuos. Quanta formosura, a das neves eternas. E o sol, em cima, derretendo tudo.

7

Uma mulher mansa com um saco cheio de coisas: um pacote de bolachas, uma molhada de agriões, uma fotografia de menina. Dela mesma, quando não ia às compras e tudo era de graça.

8

O dono do carrossel não tem dinheiro para a conta da luz. os cavalinhos de madeira estão parados. Correm em volta as crianças.

9

A montanha é um manequim maior do que a montra. Tem recantos feminis, zonas de sombra erógena. É perigosa e estéril, a montanha: faz filhos, mas come-os.

10

Guardaremos o silêncio num envelope prateado. Uma cinta vermelha há-de atar o envelope. Não vamos metê-lo no correio. Do outro lado, a resposta será calada.




Caramulo, tarde de 23 de Maio de 2006

Fusão e Chinela - um esclarecimento final

Só acredito na total e incondicional fusão da arte com a vida.
O verdadeiro artista é o que funde a sua arte com a sua vida.
Quando não, não é artista – é artesão.
Posto isto (que não é pouco: demora toda a vida), devo dizer que o texto de ontem (sobre o meu irmão Jorge) é uma coisa matinal: escrevi-o cedo no dia. Toda a lucidez me acompanhou. Também quero dizer que o texto “Consciência” (curto, grosso, malcriado) nasceu como resposta a determinados remoques e indirectas de que tenho sido alvo.
Não alinho (já não alinho, nunca mais alinho) em moralidades ocas de artesãos. Por mais hiper-correctazinha que seja a obra dessa gente. Por mais bem-comportadinha que seja a solipsista-umbilical escrita dessa gente tão cheia de sua mesma condescendência. Não alinho.
Cometi, eu sei, a asneira de convidar alguém para o lançamento coimbrão d’O Preço da Chuva. Nem resposta tive. Tenho-a agora: indirecta, remoqueira, trauliteira, pseudopaternalista. Bardamerda. Vou pela minha vida e pela minha arte. Não estou ao aluguer de gente “bem”. Nem a minha pessoa, nem a minha arte.
Pai, só tive um.
Mas há mais: escrevi dois livros, centenas de crónicas, milhares de poemas. Valem o que valem. Não tenho de justificar nada. O que não quero é a “vidinha” tão execrada pelo Alexandre O’Neill. Deus e o Diabo me livrem de não ser capaz de tentar. Todos os dias, há muitos anos: toda a vida.
Estou em paz com os meus mortos – também eu vou morrer, também eles viveram.
Não provoquei ninguém, não tratei mal ninguém. Esperar troco disso é vão: a invejazita desproporcionada pode encher paredes, mas não me coça um chato no saco testicular.
Referir a essa gente o binómio Maugham-Greene é perder tempo.
Ter paciência e estender a essa gente a esmola bibliográfica de Proust-Joyce, perder tempo é.
Um pintor (por exemplo, um pintor) ou é Van Gogh ou não é pintor: falo, naturalmente, da tal fusão vida-arte.
Tudo isto provém de uma aguda urgência de dignidade: como ensinar isto?
No Caramulo, há um café chamado “Marte”. Nem de propósito: Marte. É o café preferido de homens e mulheres arrecadados pelas famílias em lares de repouso pós-era dos sanatórios.
Dois desses homens, vejo-os todos os dias à mesma mesa da janela. Estão um com o outro. Não falam. Entre ambos, não há nem tabuleiro nem peças de xadrez. Mas eu acho-os xadrezistas. Como explicar isto a um artesão? Impossível.
Um gajo pode ser coxo, gago, paneleiro. Pode ser bêbado. Não pode é ser indigno. Acho eu.
Que a mão direita não saiba o que a esquerda dá. E vice-versa. Mas vão lá ter com o merceeiro explicar isso.
Convém sempre crescer. Ser melhor hoje que ontem.
Ontem, evoquei um morto meu. A propósito disso, a minha amiga Ana Sá contou-me que o povo finlandês tem por certo que “estamos vivos enquanto formos lembrados”. Nesse sentido, sem magias mediúnicas nem tolices quejandas, é natural que o meu irmão Jorge siga vivo.
Palavra de honra: estou-me a borrifar para atiradores furtivos, para a sua cobardia física e moral, para a sua mesquinhez escarninha e para as suas agendas telefónicas cheias de nomes de doutores.
Eu andei (confesso) na universidade: quero lá saber que sim. Recuso-me a ser coimbrinha: sou apenas uma pessoa.
Como apenas-pessoa, não estive sempre bem. Mas tentei-o sempre. Comigo e com os outros. Falhei. Lamento. Mas continuo vivo. E vou continuar (desculpa lá, pá) a escrever. Não vá o sapateiro além da chinela, nem vá o pintor muito acima dela.
No Caramulo, há um parque lindíssimo: voltarei ao parque, não ao assunto.



Caramulo, manhã de 24 de Maio de 2006

23/05/2006

Jorge (23 de Maio de 1986 – 2006)


Há vinte anos, o meu irmão Jorge morreu.
Tinha 31 anos. Deixou de usar sabão, comer frango, ir à tarde ao cinema, ensinar desenho e cerâmica, poupar a roupa até ao fio, comprar livros em segunda mão no quiosque da Sereia.
Não sei que lhe diga. Estou vivo. Cito de cor Camilo José Cela: “Do irmão, nem a glória nem a morte.” Não quero saber da glória. Há quem queira. Eu não quero. Sei da morte. É um jogo muito praticado. Quando no-lo fazem jogar, lesiona.
Tenho duas idades: 42 e vinte anos.
A um canto da casa, voluminhos esquecidos de Pierre Loti e de Guy de Maupassant. Bilhetes de cinema, também. Desenhos tipo BD em fragmentos de papel. Cassetes de som roçagado, arenoso. Foram dele.
Herdei dele umas botas que calcei no inverno 1986/87 de Peniche. As calças, muito limpas e coçadas, ficavam-me grandes. Tive de desistir delas como dele.
À esquina da Farmácia Donato, em Coimbra, deixou de aparecer.
Fui logo que pude para Peniche. Ia ver a Nau dos Corvos. Dediquei-me a tempo inteiro à literatura e ao alcoolismo. Escorei a morte dele com essas duas dimensões tão humanas. Não me arrependo: o meu umbigo é irrelevante.
Uma vez, não muito tempo depois de ele ter morrido, encontrei uma das mulheres que o amaram. Ela parecia ter naufragado: toda molhada em plena rua urbana, toda coberta de limos, a roupa rasgada de farpas de madeira náutica. Falámos alguma coisa. O meu corpo (alguns gestos involuntários) poderá ter-lhe acordado a volumetria do corpo dele. As minhas palavras também. Despedimo-nos com o coração para obras de restauro: nunca mais a vi.
Pierre Loti e Guy de Maupassant, que ele não leu, pouco importam.
Tenho dois projectos que me fazem sorrir, pois que me lembram os dele. No meu caso, aprender a tocar acordeão e a falar alemão. Ele tinha projectos destes. O homem é irmão do homem: duas tristezas geminadas pelo sangue e pelo leite.
Nestas duas décadas exactas sem ele, prossegui o escândalo de sobreviver. Fiz duas filhas e dois livros: não é mau. As filhas são muito boas e muito honestas; os livros são honestos e esquecíveis. Já não me lembro dele todos os dias. A dor, ela própria, anestesia-se. Mantenho a minha estratégia: leio e escrevo, escrevo e leio. Quando levanto a cabeça, sucede que uma inclinação da luz mo recupera, a ele: as botas bem ensebadas, a ganga coçada e limpa, o bigode viril, a boca comedora de mulheres e frangos.
Na fotografia da sala da nossa mãe, o olhar continua-lhe apreensivo. Não sei se foi tirada antes ou depois da ida a Veneza.
Nunca fui a Veneza. Talvez nunca vá. Isso não tem importância. Uma pessoa perde importância: com os anos, com a morte de um irmão.
À sombra do desastre irreparável da morte do Jorge, pratiquei amores eróticos sem entrega: como se fodesse vestido. Depois, abandonava essas camas frias e ia beber.
Sucederam-se-me cidades também irreparáveis: Peniche, Coimbra, Figueira da Foz, Leiria, Aveiro, Marinha Grande, Pombal, Viseu, Porto, Lisboa, Praia, Bruxelas. E mil aldeias e vilas mais, onde matriculei a insensatez hepática da minha língua portuguesa.
Não posso cobrar-lhe isso. Sou hoje bem mais idoso que ele. Sei mais coisas que ele: internet, cinema, clarinete, literatura espanhola, whisky irlandês.
Uma vez, lá na infância, um rapaz da minha rua puxou-me o cabelo. Magoou-me muito. O rapaz era mais velho do que eu. Chamava-se Guilherme. Já morreu, também. Desatei a chorar. O Jorge estava em casa. Perguntou-me. Eu disse-lhe. Ele saiu de casa. O Guilherme estava na rua. O Jorge abrasou-o com duas lambadas sonoras. Senti-me protegido para o resto da vida. Não estava.
Fui ao velório do Guilherme, tantos anos depois, numa noite de há quinze anos. Era um cadáver bonito: um busto francês. Desatei a chorar outra vez. Escrevi sobre ele uma crónica, publicada depois num jornal da cidade. Não adiantou: o Guilherme não regressaria.
A filha do Jorge está viva. É muito alta e muito formosa. Estuda, joga voleibol. Imagino que lhe repita determinada luz, certa sombra, um jeito de repor os ombros à largueza do tronco. O lábio de baixo, nutrido e sensual, acamará frases lentas, como as dele.
Acontece-me voltar à cidade natal e passar ao número 210 da última das ruas dele. A rua tem nome de suicida: Antero de Quental, o santo de Eça. Destruíram o Teatro Avenida. Digo-vos que visitei com ele os camarins desse teatro-cine. Foi há muitos anos. Tinham guardado lá os despojos de uma escola secundária. Lembro-me sobretudo dos répteis conservados em frascos.
A churrascaria onde comemos frango está viva. Situei nela um dos textos de Noite de Homens-Cantores, aquele que tem o cantor Art Garfunkel.
Um homem sobrevive. Eu faço isso. Faço como toda a gente: o dia amanhece, entardece e anoitece. Vinte anos disto.
Tenho lido umas coisas e bebido outras. Ele não voltará a Veneza, mas eu voltarei a Peniche. Tenho outras botas. Aprender acordeão não é, como o Jorge é, nada do outro mundo.



Caramulo, manhã exacta de 23 de Maio de 2006

22/05/2006

Consciência

Sei de duas formas de má consciência: a própria e a alheia.
Com a própria, posso eu bem.
Com a alheia, bardamerda.
Por hoje, é isto.


Caramulo, 22 de Maio de 2006

21/05/2006

Santos dos Últimos Dias

Simenon - Pedigree
Eça - O Primo Basílio
Rick Moody - Tempestade de Gelo
Torrente Ballester - Os Anos Indecisos
Ernesto Sabato - O Túnel
Sousa Dias - E Ítaca Eras Tu
Vergílio Ferreira - Alegria Breve
Cunha Rêgo - Liberdade
Margery Allingham - Cuidado com a Senhora
John Buchan - Os 39 Degraus
Carson McCullers - Reflexos nuns Olhos de Oiro
Harold Pinter - A Colecção
F.-A. Almeida - Estórias de Portugal
Tilman Spengler - O Cérebro de Lenine
Angelica Liddell - A Falsa Suicida

17/05/2006

No Parque - soneto para o filho mais novo do Sr. Serafim

Anda, Rui, comigo ver o parque.
É como estar na catedral.
Ocultas aves hão-de vir dar que
cantar. Ouvi-las, Rui, é celestial.
Gente extinta aqui se fez
mais só e mais dada à sua extinção.
Agora entanto é a nossa vez,
curtamos o bálsamo desta estação.
As áleas frecham toda a luz solar,
há coriscos d'ouro brilhando no húmus.
Levemos connosco mel, sandes e sumos.
Já pois que é lusa nossa natureza,
usemos a sombra e a pedra da mesa
e comendo tracemos nossos novos rumos.



Caramulo, tarde de 17 de Maio de 2006

15/05/2006

Eternitardes - I

Montanha e Tempo

Habito uma casa do vale e trabalho na montanha.
Cada dia é inaugural. Não é como quando nas cidades. A luz, rica de bosques acamados, esclarece. Há poucas ou nenhumas putas. Alguns gatos.
Não alimento, já não, remorsos inconsequentes. É-me agora fácil dispor do senhor Alexis de Tocqueville com a mesma sem-cerimónia com que recorro, na tarde solar de sábado, aos préstimos da senhora Margery Allingham.
Na aldeia do vale, andam há meses arranjando o largo junto à igreja. Tiveram de derrubar uma árvore, o que é lamentado com resignação pelo presidente da Junta. Ele mo disse, ontem. A obra há-de estar concluída em dois meses, a tempo do Verão emigrante.
Entretenho-me adiando as releituras de Mann, Joyce e Proust: A Montanha Mágica, Ulysses e Em Busca do Tempo Perdido. São monumentos a que tenho de voltar. Porquê? Por me terem marcado a vida anterior. E porque me embalo, cada manhã inaugural, para o futuro. Hei-de gostar, no futuro, de ter relido esses livros monumentais, montanhosos. Mas entretanto, Allingham (Cuidado com a Senhora).
Anteontem (5ª, 11), verifiquei, sem pressa nem pólvora, que a minha mortalidade (a minha mortal idade, mesma coisa) é uma coisa viva. Depois de almoço (era na montanha), desci ao parque. No parque, a luz e a hora, quentes como mãos sãs, tornavam definitivo o instante: a eternitarde. Suspenso da titilação da folhagem, sobrepassei a minha mesma condição. Digo que me desumanizei, aderindo à pedra dos degraus. O parque tem escadarias não subidas nem descidas: estão ali há tanto tempo não contado, que adquiriram o direito da erva, dos florões e da brisa irreparável de mil maios. Apeteceu-me fazer por ali a sesta. Cheguei a considerar algumas sombras, mas a urgência idiota da minha vida social impediu a satisfação desse desejo tão justo. Tinha trabalho à tarde. Perante a glória desumana das árvores e da erva, mirando a quietude sensata das múltiplas escadarias, decidi não ignorar.
À noite, depois de jantar, descido já ao vale, continuei não ignorando: nasce-se e morre-se só. O entretanto é uma política: uma arbitrariedade. Onde morar, onde trabalhar, onde permitir que o sono nos mate/resgate – por exemplo político, arbitrário.
As horas e as noites de dois dias passaram. A ideia não passou: inaugurar cada dia. E Mann e Joyce e Proust, sem remorsos.


Botulho, 13 de Maio de 2006

José

Os olhos azuis do meu avô paterno apagaram-se 34 anos antes de eu nascer.Sei que eram azuis por crónicas de família. A única fotografia que se conserva dele é toda cinza. Ainda assim, os olhos desse homem improvável ardem de claridade por cima de um bigode viril e secular. Era um homem múltiplo: conduzia eléctricos, amanhava a terra, enxertava árvores e fazia ele mesmo a roupa aos muitos filhos. Levou-o a tuberculose de 1930. Fez muita falta. Para sustentar aquele rancho todo, a minha avó foi vendendo, retalho a retalho, as terras que ele tinha ido comprando. Foram anos negros, depressivos, fundos como poços sem água. O meu pai falava do pai dele com uma veneração comovente. Eu gostava desse espectáculo: o meu pai a ser filho. A cor azul não chegou a mim. Tenho vulgares olhos castanhos de pardal português. Não sei enxertar árvores, já não há eléctricos, compro a hortaliça e nada sei de alfaiataria. Só sei que, por causa de meu pai, admiro e gosto de um homem que não conheci, um homem que me olha de azul do meio de um clarão cinza.



escrito na Figueira da Foz, 24 de Abril de 2006
publicado n'O ECO (ed. 2770, 27 de Abril de 2006, ou www.oeco.pt)

12/05/2006

Três Citações

1

"Gostava da percepção das possibilidades contidas nas coisas tristes."

Rick Moody, Tempestade de Gelo
2

"... mas viver consiste em construir recordações futuras..."
Ernesto Sabato, O Túnel
3
"... porque há uma invencível lei do homem que é a da sua libertação, a sua conquista inexorável de uma cada vez maior dignidade."
Vergílio Ferreira, Alegria Breve

11/05/2006

42 Anos – um Balanço

Vesti o casaco de um pássaro e voei rente ao chão.
Conheci senhoras endomingadas à quarta-feira.
Desfolhei em torno as flores do milho, farinha de cor, méxicos pessoais.
Numa garagem cheia de caixas de sapatos, abordei descalço o segredo e a volúpia.
Levantei do chão um homem, era em Lisboa e chovia.
Mantive cães e gatos em harmonia.
De roídas unhas, toquei viola para pescadores silenciados.
Requisitei em igrejas a frialdade, ardia fora um sol de febre.
Na terra de meu pai, antes do ano 1970, vi um caixão ao sol: outro homem para nunca mais.
Lapso de luz: outro funeral, mas de criança, pelos mesmo dias eléctricos.
O pó e o suor irmanam-se.
Lavei-me de ambos com o rio, entre a folhagem que gritava de pássaros e ciganos.
Então, o bosque púbico coçava.
Rápida, a amargura precoce.
Alguma euforia, sextas à noite.
Tudo confirmava a autoridade da escrita.
Segui esse trilho, essa insolação.
Às vezes, num autocarro, a evidência da inutilidade.
Outras vezes, não: junto ao mar.
O coração – um barco de saída.
A esperança, como um rímel, borrando os olhos.
A atenção prestada aos quintais alheios, onde animais e laranjeiras enferrujam.
Caixas de ananás dos Açores.
O fontanário público decorado de azulejos brancazuis: o carneiro, o peru, o cavalo, o galo, a andorinha, o porco.
As letras que escreviam esses bichos (a generosidade das vogais; a soberba das consoantes).
O menino embebedado de alegria: perceber embebeda.
A importância da História: cada velho esperando o crepúsculo em cada quintal de netos futebolistas.
O que dobrava guardanapos no restaurante era Miguel e tinha nascido a 5 de Outubro de 1910.
Um cedro respirava no extremo da passagem.
Junto ao cedro, o poste telefónico.
O sol de tremoços, domingo de manhã.
Os pedintes à porta, domingo de manhã.
No monte, tufos de espargos e comparações métricas de piças.
O absoluto esplendor dos comboios.
A galinha afogada, irrecuperável, no poço dos cabo-verdianos.
Dez filhos tinham os cabo-verdianos: viviam de nada.
Os caracóis chegavam à frente ao futuro.
Uma noite, houve fados.
Fritaram toucinho, laminaram broa.
Cantaram, dava a lua nas figueiras.
Essa dor da música.
Outra noite, uma casa ardeu: vi o povo, não já cada pessoa.
Isto é tudo agora, como já era.




Caramulo, 8 de Maio de 2006

Um Ajudante de Farmácia

Era por essa hora a que os autocarros, de tão vazios e anoitecidos, tornam idênticos, como gotas de água, a serenidade e o desespero.
Orlando Gil, ajudante de farmácia, seguia de autocarro. Viajava muito atento às ruas desertas de pobres-de-pedir. Era mais uma viagem ao desamparo das coisas sem escolta: o cinema fechado, a cruz verde-néon da farmácia pulsando nos plátanos, o taipal cerrado da tabacaria, nos beirais as pombas adormecidas como matraquilhos sem moeda, o livor gasogénio do rio, a mata púbica do parque, as urbanizações dormitórias da cidade nova.
Desceu na paragem correcta, entrou no bar correcto e foi atendido de imediato sem ter de dizer uma palavra. Ali esteve os decilitros de silêncio os suficientes até que a vida reatasse os nós da resignação. Pagou, deixou as boas-noites, caminhou quarenta metros até à pensão e imergiu no quarto como se o quarto fosse um rio escuro e vertical.
Sonhou com portas infinitas, sucessivas ao longo de um corredor apainelado de madeira. Eram como a existência: não tinham indicações precisas. “Empurre” ou “Puxe” – não diziam. No sonho, soube, sem vê-las, que havia uma mulher atrás de cada porta. Uma poderia ter sido a dele.
Acordou cedo, tomou banho e saiu. Caminhou muito, assimilando a manhã. Integrou a hemorragia escura que sulcava a praça de mármore branco: um formigueiro de gente vestida de preto, cinzento e azul-negro. E às cinco para as nove vestia a bata de ajudante de farmácia.
Às dezanove e cinco, já sem bata, escolheu algumas revistas caducadas da mesinha de espera da farmácia e trouxe-as. Nessa noite, não as folheou no quarto, preferindo guardá-las para um domingo de chuva, como veio a ser o seguinte.
Nesse domingo, sesteou. Deitou-se na cama e não pensou dormir. Cabeceou uma nova pista do mistério Lady Di e acabou por adormecer. O sono e os sonhos sucederam-se-lhe com a natureza do vento nos cedros. Depois, acordou para verificar o sítio do mundo. Era o mesmo. Sentiu ter envelhecido um pouco, como uma estrela ou uma pedra. Teve a certeza de que o vento não envelhece. Isso fê-lo sair do quarto. Andou os quarenta metros até ao bar.
Cada último domingo do mês, visitava a mãe no Lar de Santa Teresa, à rua do mesmo nome. Estava branca e quase cega, ela que fora morena e rara como uma virgem brasileira e vidente e rara como uma virgem portuguesa. Nos outros domingos, cedia à incerteza. Naquele em que sesteou, era fevereiro. Depois de dormir, esfregou a cara em mãos e água fria. Acalentou-se no bar com conhaque. Saiu para a cidade eclipsada de molha-tolos. A tristeza era tanta, que as pombas do município tinham mirrado à volumetria de pardais. O domingo era maior do que a vida, pelo que desceu a calçada do Colégio dos Órfãos, passou a Funerária Alho e a capela arruinada de São Nicolau, cheirou o mar apodrecido do mercado do peixe e desembocou sem remédio no alto da rua do Corpo de Deus. Aí, parou para acender um cigarro de pura autocomiseração.
Aos domingos, o emprego dele era dominar a tristura. O trabalho consistia todo em pensar que para se ter uma vida é preciso manter-se um corpo. E que só há uma vida e um só corpo.
Orlando Gil passou em frente à florista e acabou na fronteira de ar e vidro da Ferreira Borges com a Visconde da Luz. E aí continuou sentindo, com menor mágoa já, quanto o domingo é o país das pombas. Um músico de rua tocava para ninguém. À Portagem, um polícia autuado pelo tédio guardava a agência do Banco de Portugal. Do outro lado da praça, aos pés de onde o médico Adolfo Rocha manuscrevia os poemas e os diários de Miguel Torga, africanos e eslavos coçavam as virilhas dominicais. A única pastelaria aberta da praça engolia grupos de excursionistas ávidos de queijadas de Tentúgal e de pastéis de Santa Clara antes do regresso aos autocarros estacionados na Banda d’Além.
Desconhecendo que fazer de tanto tempo e tão pouca vida, Orlando Gil entrou para uma chávena de café. A chuva tinha cessado. Operou muitas coisas cerebrais simultâneas: café, Mãe, mulher, humidade, vapor, brilho.
Com a noite, havia a alternativa da prostituição em apartamentos para o efeito anunciados nos jornais da cidade ou em pensões esconsas da Baixa com mulheres recrutadas ao longo da Fernão de Magalhães, quando o anoitecer toma do Navegador os descobrimentos mais antigos do mundo.
Não teve de pensar na mãe para renunciar à hipótese de um amor de aluguer. Regressou de autocarro até à paragem correcta, reentrou no bar correcto e viu os resumos da jornada desportiva entre homens casados.


10/05/2006

Pensão Acabamento

Era uma pensão vazia.
O tempo tinha passado, tinha levado as pessoas. Não havia outro tempo depois. Não estimaram as janelas, que se quebraram. Cada outono, folhas em revoada tinham entrado pelos buracos das janelas, acabaram de murchar nas salas, nos corredores. A pedra mantinha de pé a casa, como os ossos aos homens. Os quartos fechados fechavam nenhum sono.
Não já o alegre viajante comercial rompia o vestíbulo. Nunca mais a sopa encheu as terrinas de louça. Uma senhora-de-fátima aparecerá ainda aos ratos, sob uma mesa manca. O tempo acabou à porta da pensão. A inconsciente passarada rejubila no telhado. Automóveis rasam a portaria tossindo combustível e rastilhos radiofónicos. É onde acaba a ladeira e começa o parque. Do outro lado da rua, a insolente pastelaria pensa-se futura. O inverno é um cavalo d’água. De dentro da pastelaria, escrevo a pensão. Gosto da sua lição. Nunca é hoje, quando a olho, muito menos quando a escrevo. A esperança reside na rua: uma árvore de folha perene que, muito senhoril, subiu o vestido ao vento. Agora não há tempo. As pessoas foram levadas. Quando era, como seria?
A sopa fumegando nas terrinas portuguesas. As conversas comensais, a sisudez apócrifa da patroa. No fundo, um bom coração. O marido da patroa descalçando as galochas na cozinha depois de depositar na larga mesa de mármore os legumes e a mercearia. O filho de ambos a fazer-se médico em Lisboa. O avô que salivava obscenidades às criadas, as quais roliçavam as ancas nédias e as bochechas camoesas. O tempo havia. No pátio traseiro, a criação engordava de lavagem. Coelhos filosóficos picotavam talos de couve. O galo velho, muito sanguíneo, discutia sozinho. O cão sacudia com uma orelha os pintos. A porca toucinhava de pura saúde.
O meu tempo também acaba, excepto quando escrevo.





Caramulo, tarde de 9 de Maio de 2006

09/05/2006

Males menores

As aparições desacreditam o mal menor.
O mínimo cão da vizinha vivenda.
Seu ladrar proprietário.
O retorno espanholado do assentador de ladrilhos.
A vida é o mal menor.
Mínimo, o cão.
Menos que a vida.
Cão superlativo, cão gramatical.
Da peanha triangular do canto do café, o televisor emana amor de actrizes.
Maquilhado amor de brasileiras actrizes.
Mulherões.
Gostam mais de teatro, mas fazem telenovelas.
Pastilhas elásticas rosiplastificadas decompõem-se de açúcar plástico em boiões idem.
Por cima delas, o jogo dos furinhos: sai-sempre-um-brinde: um euro.
O domingo vigora na aldeia.
É de tarde, a igreja fechou-se sobre si mesma, entristecendo os santos que a um canto tentam violar, de chave de fendas nas mãos de cera, a vazia caixa de esmolas.
O próspero peixeiro, endomingado, fala de Peniche e da operação da mãe.
Hérnia elefantina.
A cozinheira do café, em seus dela cinquentas, passeia a mama pingada em redor dos homens que bebem ao balcão.
Ela é uma aparição: pingente, celeste, aventalada, ainda.
O balcão é fórmico.
Pintalga-se de baquelite como um leopardo sintético.
Ele é feliz na consumpção, na aldeia, na felicidade.
Eles saem, abandonando-o à felicidade.
Um rapaz quarentão de pulôver resiste, sozinho, ao filme da televisão.
O filme arrasta uma perseguição de carros.
Um dos detectives é preto.
O herói é branco.
Há uma santificação diegética da ladroagem.
No fim, uma bomba de relógio decrescente há-de ser desactivada a tempo.
Ainda isso é o mal menor.
Entra a inconsciente plebeia azul.
Na verdade, ela é castanha.
Franco lancil de ancas, mas bom peitoril.
Mas aqueles olhos azuis que dardejam sem literatura.
Magnetiza um namorado de motorizada e capacete, tonto de jovem, que sorri.
Saem os dois, ele sorrindo sempre, fica o porta-guardanapos, que diz “Sagres” como o Infante dos Descobrimentos.
“Homem de Deus!”, exclama a cozinheira.
O homem divino é um emplastro de oitenta anos que sorve martinis ao pé da jarra de rosas.
Já deveria ter entregado, a Deus, os oitenta anos e as outras tantas rosas.
Não o fez, porém.
Resiste, ele também, ao domingo, aparição ele mesmo, mal menor de si mesmo.




Botulho, domingo à tarde, 7 de Maio de 2006

05/05/2006

Montanha, uma Noite e uma Manhã

Noite

Nas terras não conquistadas ainda pelos hipermercados colossais, a ternura comercial é ainda vigente.
Num café frequentado de manhã por dementes mansos de lares clínicos e à noite por mim, demoro-me a inventariar os bens expostos no mostrador do balcão de jornais: rebuçados peitorais, pilhas, dentífricos, cremes de barbear, lâminas, cola, lápis, esferográficas, lenços de papel, flores, tesouras para as unhas, postais, preservativos, cêdês, batatas fritas, camisolas, livros, atlas.
O meu coração derrama-se, perante o rol. Gosto de ver as coisas do manso comércio. Mas entretanto faz-se noite.

Manhã

Sobrevivi ao vento frio que descia da montanha anoitecida. Regressei de manhã para seguir inventariando o manso comércio. Tomei café noutro estabelecimento. Era numa zona a descer. A casa tinha lareira, jornais atrasados (como todos) e duas velhas que escorropichavam o cálice de porto matinal dos resignados. Um zéfiro fresco teletransportou-me ao local. Penetrei. Havia um poster da equipa local, um azulejo benfiquista, garrafas amortalhadas de resina e um bolor de eternidade que empalhava o cão adormecido aos pés da lareira sem lume. Prossegui aí a minha felicidade serôdia. O meu casaco preto de cabedal foi apreciado com respeito pelo motociclista que mamava martinis consecutivos ao cotovelo do balcão.
Eu regressarei sempre.



Caramulo, noite de 4 e manhã de 5 de Maio de 2006

04/05/2006

A Felicidade no Esconderijo

Numa tarde embaciada como uma janela de inverno, ele teve momentos felizes. Tinha entrado num estabelecimento mínimo chamado "Esconderijo". As paredes, forradas de meias ripas redondas de pinho, eram cravejadas de penduricalhos de louça e de papel, entre pratos com dizeres populares e anúncios de bailes. Três mulheres casadas palravam agudamente. Uma criança invisível gritava nalgum pátio interior. Uma gata estendia num cesto uma sesta nédia. Pediu uma caneca de café e um bolo de canela. Merendou sem infelicidade, encalmado pela beberagem chilra. Enquanto tasquinhava o biscoito, mirou o boneco do queres-fiado-toma, sorrindo por dentro à justiça do manguito. A criança invisível materializou-se à entrada da tasca com uma bola na mão e um sorriso, a que faltava um dente, na boca. Parecia um sapo ruço. As mulheres meteram-se com o miúdo. Deram-lhe um caramelo espanhol.
Lá fora, havia um jardim público muito grande. O arvoredo antigo presidia à decência geométrica dos canteiros. Bancos de pedra sem espaldar arrefeciam à espera de ninguém, na tarde de grés. Algum carro raro subia a esforço a calçada.
Pediu um conhaque nacional e aceitou a memória instantânea da felicidade. As mulheres saíram, ele ficou-se. O miúdo da bola teve de sentar-se à mesa da entrada. A mãe trouxe-lhe um iogurte e um pão com fiambre. Outra criança entrou. Era mais velha e irmã do jogador. Também foi servida de iogurte, mas preferiu queijo no pão.
No mostrador, um prato de carapaus envinagrava de cebola emurchecida o olhar e as moscas. Ao lado dos peixes, um naco de presunto amarelejava sem saída. Outro pires sustentava uma mancha de queijo. O ar, suculento, merceava um compósito de café, petiscos e sabão. Três mesas, na sala exígua, amparavam dezasseis cadeiras. O calendário da parede demorava-se em abril, mas maio já era. Caixas de papelão, inchadas de botelhas de água mineral, geometrizavam ao canto direito da entrada, nas costas do menino. Os cinzeiros eram conchas de baquelite que lhe lembraram mãos de dedos colados, infantis e tóxicas. Uma balança das antigas pontificava no segundo balcão, em cujo mostrador vivia o silêncio grená de um presunto. Ele foi coleccionando as coisas pelo lado da emoção, agradecendo a hora.
A senhora informou-o de que o lavabo se situava no exterior. Era um cubículo esconso. Dentro, uma cagadeira turca, igual às das escolas primárias salazaristas, convidava ao agachamento cócoro. Urinou do alto, acertando no sumidouro com garbo e pressão. Regressou ao "Esconderijo" com antecipações felizes.
Tinha entrado uma velha enxuta. Pela autoridade, supô-la com acerto mãe da patroa. A mulher estendia uma voz metálica que vibrava nas tampas mal enroscadas dos boiões de amendoins. Falaram de mortos e de política municipal. Ele escutou, deliciado com a desimportância da vida. Apreciou o estanho da garrafa de ponche, em cujo rótulo se coloria uma sensualidade de mil-e-uma-noites. Havia toda uma existência de vinhos abafados, portos, madeiras, espumantes, brandes-mel, licores de coco, tangerina e noz. E medronheiras.
Para mais, tinha os pés quentes, favorecidos pela regularidade da digestão e a paz de espírito. Não longe do "Esconderijo", o cume da montanha era um nariz frio juncado de pêlos vegetais. No vale, os casarios fumavam por chaminés rupestres. Depois, teria de sair, regressar, matricular-se naquilo a que, à falta de melhor esconderijo, chamamos "realidade".

Caramulo, tarde de 4 de Maio de 2006

Canzoada Assaltante