31/03/2010

Cantiga Olhando a Árvore

Sandra Bernardo, Caldas da Rainha, 2 de Fevereiro de 2020




Pombal, fim da manhã e tarde de 30 de Março de 2010


Olhar a árvore é já sê-la
Recebê-la em doce paz é olhá-la
Respirá-la é tão viva senti-la
Quão nos viver olhando ela.


O meu coração é o observatório que posso
Sol nas costas de Lisboa porque a vida é boa
E aquela janel’ amarel’ a vida é bela
Observo com o coração quanto é nosso.


Homem de azul passando a praça
Na terça-feira espectacular
Personumanidade em plena graça
Meu pairmão e filho solar.


Olhar a árvore é já sê-la
Recebê-la em doce paz é olhá-la
Respirá-la é tão viva senti-la
Quão nos viver olhando ela.


Um dia serenos seremos música todos
Marmórea memória ao mar em cinzas
Por enquanto um pouco tristes e perdidos
Uns fogem p’los copos, outros por ganzas.


Fibra pura, a boca das mulheres
É lacrado incêndio, é mãe dolorosa
Já me fiz à vida, mas qu’ é que tu queres?
Monturo de lixo, pedúnculo de rosa.


Amemo-nos, vá, ’inda um pouco
Razão, tem-na muita quem não sofre amar
A vida é curta – e um gajo é louco
Se por aí anda sem árvor’ olhar.


Olhar a árvore é já sê-la
Recebê-la em doce paz é olhá-la
Respirá-la é tão viva senti-la
Quão nos viver olhando ela.


Passa o azul homem ao branco céu
Que tão nu nasceu o céu como o homem
Tod’ a malta é jovem e anda ao léu
Chapéu é pensar por nuvem nos tomem.


Magritte. Hopper. Sargent. Malhoa.
Céline. Djavan. Mercè. Chagall.
Mil raios m’ a parta’, gente sem igual.
Chopin e Prévert e Eça e Pessoa.


Olhar a árvore é já sê-la
Recebê-la em doce paz é olhá-la
Respirá-la é tão viva senti-la
Quão nos viver olhando ela.

29/03/2010

Mais pesquisas na rede que vieram ter aqui ao Canil

posso dar figo a cadela prenha
silhueta lápis
alqueidao da serra
inicio acento
anil agricultura
estadisticas dos taxis de Lisboa
negra fio dentala
carniceiro de praga
mulheres de nome Guilhermina
musica mariana sai para comprar cigarro
abrunheiro arvore

Report diario - Canil do Daniel - 28/03/2010

28/03/2010

Subscrever a Tinta Verde a Força Tremenda

Pombal, tarde de 11 de Março de 2010

I

A roda do mundo tem férreos dentes que mordem.
Mordem, rasgam, espedaçam e desagasalham.
Famílias ceiam peixe assado dentro de covis numerados.
Às vezes, acontece a existência ser improcedente por a essência.
A biografia rompe (férrea, dentada) tantas vezes o corpo pensado.
Lojas fundas e sombrias albergam enchidos, latas, botelhas, caixas e mais caixas de bacalhau, víveres que os pobres são levados a ansiar como a ícones primevos.
Criam-se os verdes a brancas águas e a transparente luz, as terras correm como apeadas aves, leiras sangram húmus, benignos fantasmas de romance inglês assarapantam o sono lusíada.
Por mim, de tudo guardo a lição do Nada, que tudo vale à coisa pensada.
Oução” é “bichinho pequeno” – ensina o Professor Rodrigues Lapa, explicador das cartas de Frei António das Chagas.
Mais ocorre a tarde benevolente: tocam frias as sombras, sim, mas a explosão solar adoça tudo: as empenas das casas, o casaco dos cães, a pele do rio (cobra, prata, cobra de prata), as árvores estatuárias.
Com cachos de minhocas furadas a linha de coser e em ponta de cana de milho atadas se apetrecha a ferramenta piscatória de enguias das valas: a sartela.
Túmulos legíveis dão a ler o súbito da vida súbdita.
Subjuga-se uma pessoa a seus canis afectuosos: a maravilhosa coloratura do silêncio que preside à existência e que à essência subjaz.
Terá isto assim razão de ser?
Não rarefaremos a primeira vez: antes nos rarefaremos.
E ainda assim vale a pena pontuar com correcção, alinhar os ditos ainda que não falados, subscrever a tinta verde a força tremenda do papel em branco.
E em campo os actores, os jogadores em palco.

II

As cidades, ando-as – o mesmo me faz por mim a vida.
Tenho sido um amanuense.
Um fitofarmacólogo sem balcão.
O meu balcão é a veia aberta da via.
O Bairro da Agorreta, a Zona da Formiga, a Rua do Quintalão e a do Mancha-Pé: vias-veias.
Entre 1978 e 1981, desenvolvi uma técnica de jogo-sozinho no Monte; uma bola de borracha cor-de-tijolo enchia-me o pátio-estádio; (o Joaquim Jorge sabe de que estou a falar); os cães achavam estranho, mas acabavam por correr tanto como eu atrás do esférico, que era como antigamente se chamava a bola; depois de cada jornada, voltava a casa mas o meu Pai era vivo: foi quando fui campeão.
Agora, a cidade de Pombal estremece à luz.
Eu ando Pombal.
Se virdes passar um casaco de capuz dado ao borboto e uns sapatos fornidos de ponteira d’aço, ler-ver-me-eis.
É tão fácil, isto.
Ora reparai: moça balconista de buço mexicano; mamas ávidas que havidas; nádegas globoculares; sapatilhas de enfermeira obrigada a servir por fora; cabeleira murcha, oleodúctil, espremida, fraca como lã de cão, tendo o cão morrido; boa pessoa.
Agora aquele homem: angariador de seguros rápidos; vendedor de ar, portanto; barba-de-três-dias calculada ao figurino tipo leitor-de-expresso; então-é-assinzante; chapéu-cabeleira espanhol autocolado no cu do carro; boa pessoa.
Fortuna da áurea mediocridade minha: dar a ver de encerrados olhos.
(Isto um dia ser livro – e eu, livre.)
Quando a Vânia Carvalho fez treze anos, descemos ao pátio de tantos outros campeonatos sozinhos.
Havia laranjadas, a Avó dela organizava os víveres, presidia ao sindicato dos filhos, conhecia sem literatura o esplendor da confirmação.
Viver já então semelhava gerir os quartos, a humidade imanente aos rés-do-chão e à vida em geral.
Ela depois fez catorze.
Eu agora, por assim dizer, não faço tanto por me chamarem a festas de anos.
Os anos são festas na mesma, eu sei, mas desvâniecem-se-me os motivos festivos vivos.
Enfim: a onicofagia é uma autofagia tal como a poesia.
(Roía eu o anular esquerdo quando me sobreveio esta evidência.)
Há coisa de quase quarenta anos, aterrava em o aeromilitar Figo Maduro um meu senhor amigo chamado Manuel. Tive um irmão de segundo nome Manuel, já não tenho, a morte amadurece-nos os figos.
(A importância dos sentimentos é geral; a arte literária, não.)
Há pouco, entre o ofício e a casa, vi uma senhora ainda nova, mas botija-de-gás é que de todo não já; a cintura dela apetecia um violoncelo; “ancas de viola”, como julgo ter escrito há muitos anos a propósito de outra ginovisão; fendia-se-lhe a venusidade a golpe vertical de ganga; rosto escorreitíssimo (mas quem olha um rosto ante tais gangas?); era e ainda é uma primavera-de-todo-o-ano; vi-a existir como uma montra parisiense: um certo olha-me-mas-não-me-te-chegues; e gostei da ideia de um clone nosso (meu e dos leitores-homens) abifarem um dia, até por amor, aquela carnação que a cultura etimológica traduz por “cravo”; sim: (vi)ver: o que vi, dou a ver.
Fraca instância da minha inteligência foi querer ter cedo de mais os Ensaios de António Sérgio. Deu-me-os logo, certo senhor da minha vida que recebia esmoleres de barbas alvíssimas. Depois, Mishima e Pasolini: sebastiões ambos e ambos santos: não fica fácil, vo-lo garanto.
Revoada rubra: não ocular (felizmente), mas verbal: a silabação fitofarmacêutica: alfacezitas mindinhas crescidas para amostra como pilas de menino – ali, em, aqui, Pombal.
Limbo todo exterior de laminados pés, esses pobres (ir)mãos das mãos que (és).
Cavalheiro alto, de bombazina preta, tomador de carioca (não paulista) de limão.
Ar seu de suficiência sua.
Pega num relógio de esmalte: se ele avaria, é um dente.
Tenho um dente estragado à berma da nossa Língua: e escrever é o que pus.

De Perth ao Longe (6 - final)

6



Leiria, tarde de 25 e Louriçal, tarde de 26 de Março de 2010



Leiria. Grisa tarde, de golpes frios, anavalhadores. Gente jovem floresce as artérias, gente velha move sombras. O chuvisco bate na idade. Ambulo entre a Rua Cidade de Tokushima e a sede do município. Sentado, ouço conversas de funcionárias da Câmara. Um aquário de néon delimitado de paredes antigas. Depois da entrevista, vou-me embora (coisa que estou sempre a fazer, já nem sei porquê). Esta não é, felizmente, a terra do monstruoso doutor Mengele (Günzburg). É só Leiria. Tenho simpatia pela cidade, feíta embora. Vivi por aqui coisas, algumas boas até. Ainda gosto de cá passar, escrevendo umas poucas linhas suscitadas pelo cenário. Tomei café no Conímbriga, onde antigamente pousava os ossos à saída do trabalho, na companhia distinta de G. C..
De repente é sexta-feira, Leiria faz-se Louriçal, o tempo é o mesmo, outro e de outro dia embora. A cronometeorologia divaga dia-espaço. Minha língua-idioma não varia, aumenta apenas – e muito. Mengele, doutor, era de Günzburg, não daqui, terrinha das Clarissas do Desagravo.

27/03/2010

De Perth ao Longe (5)

5

Pombal, manhã de 24 de Março de 2010



O bilhar-grande destas paragens é pequeno; as voltas maiores, dou-as por dentro. Os dias recentes, vivi-os em trânsito cordial: fui a Ansião, à Figueira da Foz, à Guia e ao Seixo da Guia. Estive numa fábrica de urnas. Passei o corpo rente ao mar. Respirei sem pensar nisso em andança pelo pombalense Bairro da Agorreta. Consultei a montra do mundo: conferi blusões de napa, gravidezes intumescendo, fritos frios de pescado, distribuidores de mercearias, engenheiros de hidráulica melancolia, maquinetas de rodar meio euro à troca de uma tablete de chocolate caganeto. A vida é deveras bonita, carago. Sobretudo a nossa, aqui na província sem remorso porque sem memória e sem remédio. Miúdas da idade das minhas bambinas escolarizam a realidade de mochilas. Um jeitoso roça os quarenta alado de suíças já grisalhas, o casaco de bombazina muito preto com cotoveleiras cor-de-mel de origem, a gravata vermelha como um grito de ambulância atirado a lâmpada azul. Uma divorciada casadoira dá de laca-madeixa a lúmen: resfolega asmas televisivas, rastilha uma fragrância laboratorial de pretenso jardim francês, abandona lastros de cona viva pela calçada aeróstata. O mediador de seguros desconta a pensão de alimentos no i-érre-ésse do outro, o que casou com ela depois dele. Um pintor da construção civil atira uma cerveja gelada para as furnas de dentro. Súbito, súbdito jamais, o Sol incandesce sua Rosa: e a manhã terminal torna-se toda pintura; e as casas fotografam-se a si mesmas e sem retorno. A breve vida abandona textos longos: é o meu trabalho. O problema foi, escoada a infância, ter começado a tentar deixar escrita a passagem. Mais segura glória (e mor saúde dentária, já agora) decorrido haveria de não escrever o que fosse, ou que sido houvesse, ou vontade de haver. Alegria de não parlapiar, segurança – até comercial, contribuinte até – de carreira, normalidade endócrina, fulgor de moléculas nervosas, paz & sossego e missa ao domingo. Nada, porém, nem a fazer nem a desfazer: a linha está traçada, o (ir)remédio é anotar tudo rumo ao quase-nada do posfácio, do bilhar.

Mãe-Pai-de-Água-Ar

© Sandra Bernardo – Caldas da Rainha, Parque de D. Carlos I, 2 de Fevereiro de 2010








Pombal, manhã de 24 de Março de 2010


Ilusão não esmaecida da minha vida
e música que do tempo decorre fogueteira,
a língua é a mãe-de-água apetecida,
é viva arboriforme na terra inteira.


Passam as coisas como horas.
Rejubil’ o caruncho, o funcho e quanto é vivo.
Os mortos ensinam lentas demoras.
O idioma é o pai-de-ar apetecido.


Música muita, a mais nocturna.
Rumor larvar preside ao dizer.
Se calada, a consciência é soturna.
Se falada, a ciência é do conter.


(E tudo pode ser dito, iludido embora).

O Gato no Hotel com Irena

Souto, Casa, 9 e 15-17 de Março de 2010


O patronímico vento faz de nosso pai pelos ares: diz o nome dele e o nosso.


Pela praceta que os deserdados herdam no Inverno, esse vento, essa moção sem comoção que dura os anos que dura até que a hora das contas soa.


Por todos os gatos serem O Gato, as mulheres deles incluídA.


Das igrejas regressa-se domingueiramente, só na montanha o Grande Sábado vinga.


Em casa, a essa hora a que se fica triste por nenhuma outra razão que a de estar vivo ao mesmo tempo que se pensa em nada.


Hotel Eva, em Faro, obra de não sei quem. Hotel Guadiana, obra do arquitecto Ernesto Korrodi, em Vila Real de Santo António.


Fácil de usar uns minutos ao domingo, como o Cristo, a vida.


Irena Sendler. Não recebeu o Nobel da Paz, ao contrário de Kissinger. Salvou umas 2500 vidas infantis do Gueto de Varsóvia. Agora, a vida salvou-a a ela deste mundo e desta imundície. Entre 15 de Fevereiro de 1910 e 12 de Maio de 2008.


A perfeição brutal da orca, o voo aquático dos pinguins, a estranha ergonomia dos leões-marinhos, o sossego frio das praias sem bola-nívea, cascalhos e gelos, machos e fêmeas e detritos e pardelas devorando as placentas usadas das leoas-marinhas.


Ross-on-Wye, Herefordshire.

Gloriosos malucos de Coimbra: Taxeira, os "irmãos" Pedro e Adelino, o Maló e ainda o Daniel Tatonas

26/03/2010

Rosário Breve nº 147 - www.oribatejo.pt



Haja saúde


Entre duas entrevistas, pausa para uma chávena no Café Pedrosa e uma ou duas das Cartas Espirituais de Frei António das Chagas (1631-1682), que na década de 50/XX o Professor Rodrigues Lapa seleccionou, prefaciou e anotou.
No mundo da manhã, água pulverizada em poalha enverniza a cinza do ar. Os cidadãos morcegam pelas ruas, catrapiscos, de umbrelas nas patas. A chuvinha magritta as pessoas, clona-as, põe um chapéu-de-coco até nas mulheres. Apesar do calendário, a Primavera não arribou as fauces coloridas, não ainda.
No café, um homem pequenito como um matraquilho a pilhas encosta as gangas ao balcão e moraliza sobre o sistema nacional de saúde. Vem de uma consulta, perdeu a manhã toda. A verborreia paraclínica do pequenito acicata a gula hipocondríaca de uma arara sexagenária, provavelmente a mulher mais doente do mundo. Logo a zaranga se torna viática, doentinha, riscada a operações de tirar panos do estômago, cefaleias, vértigos, diabetes, cólicas, borborigmos, tumores do tamanho de míscaros, TACs e tiques, fisioterapias do Juá e endoscopias do SuperPop, raça doentinha (da cabeça mormente, por mente menor). “Haja saúde!” – despede-se a catatua, caminho do comboio, consolada de moscatel.
É uma cena portuguesa, claro, e de grande extensão representativa do que somos à chuva.
No mostrador de vidro do estabelecimento, fulguram a sardinha frita, a posta de bacalhau dourada em farinha, o filete de pescada em humilde lingote e a orelheira porcina embalsamada de vinagre e salsa. Um barril plástico de mostarda entorna a lentidão de uma gota. Nisto, entra a jeitosa peitosa da ourivesaria. De esquina anca equina, calça muito vermelha e bota aguda mata-baratas-nos-cantos, telemobiliza em voz alta. Toma, por desfastio, um descafeinado. É das que esticam o mindinho. Cabeleira de apresentadora-têvê, unhaca lacrada a tinta e o armário das ventas intoxicado a pó-de-arroz.
Em vão perora o Fradinho das Chagas de Seiscentos santidades portáteis e moralidades de segunda-edição: o catolicismo está todo na doençazinha. Sim, minha senhora, haja saúde, sobretudo da nacional, da do sistema.



25/03/2010

De Perth ao Longe (4)

© Sandra Bernardo – Estação de Pombal em 21 de Fevereiro de 2010

4



Pombal, tarde de 22 (versos) e manhã de 25 (prosa) de Março de 2010





Com fragor de breve século termina o dia,
adoça o sol cadente rebuçado.
Nos pátios enxuga vestes a luz final,
é bom estar vivo ainda neste corpo.


Uma doçura esparsa é toda aroma
de urzes e giestas visitadas.
Fui hoje a Ansião, voltei ileso,
é bom ser corpo ainda nesta vida.


Madrugarei por gosto de alvor,
secular e lareiro de meu lume.
Em casa, as coisas vivem arrumadas,
é bom sentir da louça o brilho de água.


Calado hei-de consultar a manhã nova
sobre o corpo já cinza da noite antiga.
E depois hei-de escrever outra cantiga.


O corpo é quanto barco temos para a travessia do estreito que é viver entre a margem da primeira luz e a luz da margem derradeira. Veículo e viagem ao tempo mesmo, indiferente é que o corpo resida em um quinto-andar de Queluz ou numa vastidão aborígene.

24/03/2010

De Perth ao Longe (3)

Pombal, manhã de 22 de Março de 2010

3



As pessoas não lhes ligam nada, mas as mãos são maravilhosas. Já nem me refiro apenas ao milagre de mecânica que é a oposição do polegar. Falo da estrelícia que cada uma floresce. Antigamente, na televisão única e a preto-e-branco, davam concertos de piano. As mãos da pessoa pianista eram quatro por causa do reflexo mágico da madeira que encimava o teclado. Aquela imagem ainda me emaranha o coração. E ainda me infantiliza sem prejuízo. Depois disso, dormi com mulheres e escrevi livros, como a todos os homens acontece mais cedo ou mais tarde. Mas nunca me esqueço de ser hipnotizado pelas mãos das pessoas: de todas as pessoas as mãos todas. As da minha família são todas iguais, chegando a parecer-se mais connosco do que os olhos mesmos. As mãos fazem tudo o que é preciso, como também tudo o que não. Ontem à noite, assisti em solidão perfeita a um documentário sobre a existência miserável de um tal Heinrich Himmler. Ele tinha duas mãos. Uma delas lhe levou à boca a final ampola de veneno: único gesto decente daquela vida. Quando a vida dele acabou, eram quatro da manhã para mim. Um dente infecto fazia-me da gengiva uma romã maligna. Toquei a queixada com a menos escritora das minhas mãos, a esquerda. A minha mão esquerda também é encantadora. Finge (ela gosta de fingir) que não existe, que não quer a coisa, que não é nada com ela. Mas ela estava lá quando se tratou de segurar ao colo as minhas infantas, e quando sequei o floco de espuma aos cantos terminais da boca do meu Pai (Abril de 1994), e quando subi ao colo a gata que morria de fome numa rua de Viseu (1 de Junho de 2008), e quando no comboio nocturno a faço estrela absorvente (duas, na vidraça) da escuridão corredora. E quando a vida é o que nos fica mais à mão – está tudo dito.

De Perth ao Longe (2)

© Sandra Bernardo, Mercado de Pombal, manhã de 8 de Março de 2010








Pombal, manhã de 22 de Março de 2010
2


Arde em Queluz um quinto-andar, longe (tão longe) dos australianos burgos de Perth e Geraldton. Um clínico explica a Síndroma de Asperger. Já ninguém se lembra do Natal, o carnaval cristão de ir ao circo. Vim à cidade preencher papéis, toda a vida até agora não tenho feito outra coisa. A Primavera começou no calendário, mas é magra a luz solar: ainda assim luz – e solar ainda assim. Três velhos pequenitos pinguinam um falatório de compra & venda de terrenos. No exterior do quiosque do mercado, livros de Sciascia, Calvino, Cortázar e Mário de Carvalho a cinco euros cada. Exposição rica de queijos secos em uma montra de esquina: bonitos produtos da sideral acção humana. Lembras-te de quando em Folhadosa, Serra da Estrela, estivemos em casa da queijeira e do pastor? Isso faz parte da nossa vida, agora e até ao fim dos tempos a viver(mos).
É vagarosa, a felicidade. São lentos, os desempregados. Acabo de conversar um pouco na rua com um deles: aquele olhar de cão à chuva dos desempregados casados e pais de filhos. Ainda estar vivo, porém, e agradecer isso a toda a gente e a ninguém. Talvez me seja ainda possível saber alguma coisa mais, tal que escrever continue possível.
Por agora, na manhã finalmente primaveril de facto, a felicidade lateja-me nas têmporas, a que o Povo chama fontes da cabeça. Folheio o caderno para trás, um rastilho de versos espera vez de ter voz, para quê não sei – nem para quem.
(Revisão daqueles três velhos pequenitos-periquitos crocitando terrenos em contos-de-réis dos antigos: na cabeça essa imagem portuguesa toda balcão inox, toda montra de queijos.)





22/03/2010

De Perth ao Longe (1)




Louriçal, noite de 20 (1) e Pombal, manhã e tarde de 22 de Março de 2010



1 (zero)



Sonho ou algo por mim sonha com uma rua vegetal que a um bosque abre em pleno Inverno. Nuvens devassam o firmamento interior como filtros de Lua. Uma paz vigia os bastidores da cabeça, que sonho deitada sonhando. Sente o corpo raias e placentas de um vidro diferente, o que transparece na onda de calor dos desertos. Nenhum cão e nenhum lobo, todavia de algum a voz faz de sereia-de-cinema na câmara escura. Estou eu mas outro sou, pois que penso o que me sonha, que não posso já ser, estando embora. Dedadas de tinta-da-China sobem a ser mais negras no palor lívido: pinheiros e céu da noite, contra que apareço mais branco e menos o que fui. Pequena maravilha, descubro ou algo por mim descobre que a noite é a mesma e única de todos os sonhos de toda a gente: onde abetos, pinheiros; ou onde pedras, pedras. Os senhores fazem ideia. Não são raciocínios, mas manchas de sentido: fulgor, obscuro fulgor de sinapses, de atómicas coisas que incandescem no químico que é ser, mesmo em sonho, ou sobretudo em sonho. Cama imitadora de esquife como de berço, comum tálamo de sonhadores e ruas vegetais na mata única do bosque mesmo. As senhoras fazem ideia.
Depois (no contar, não no eterno), algo por mim e eu compreendemos a poderosa indiferença individual dos sonhos. Assim: sonhos e eternidade e ruas vegetais florestarão través-eus, vingada e extirpada a biologia do um devindo, de novo, zero.

21/03/2010

MUITAS COISAS PARTIDAS - VIII e IX


André Kertész - Distortion (1933)

VIII



Letras sem leitura juncam o lixo dos sonhos,
todos os outros na noite
antes de tua noite, depois de tua noite,
de outros corpos
prensados em motéis numerados,
pobres cavalariças usadas.






IX


Versos à medida
da vida mesma que me vai usando:
um salão de horas, cristais, espelhos
na treva do bosque em noites de lua
de barro e palha em paragens ermas,
sangrado o ocaso, veludada a noite,
menos a memória de ti
do que a tua memória.


Versos à medida:
uma folha de mármore,
a página só de cima escrita:
uma data de nomes,
uma data de datas.

20/03/2010

Ontem foi Dia do Pai, recebi uma mensagem que não esperava. Republico um texto sobre o meu, agradecendo.



O Senhor não me Faltará





Caramulo, manhã de 7 de Setembro de 2007
1



Relicário da apaziguada emoção
esta luz na frescura matinal
olha-me nos olhos tal o retrato
seu encostado aos livros de pintura.



É muito bonito olhar um morto
que nos olha nos olhos à luz
da manhã viva.



Deve ser porque o amor continua
em casa num retrato
e à luz da manhã
na rua.



2



Sigo vendo a lápis as rosas.
Quem em menino vê o Pai desenhar
não mais outra natureza há-de
esboçar.



3



Esta história de amor é das que não acabam bem
porque
esta história de amor é das que não acabam.



4



Pai
repare que continuo.



5



Pai
repare que continuo
a tratá-lo por
senhor.



6



Eu sei
sou tão sensível à luz
por ser
negativo.



7



Depois de nós
as árvores fazem
como antes.



8



Uma vez na minha vida
entre Elvas e Coimbra
parei numa praça solar de Évora.



Vi o senhor em todos os homens.
Vi o senhor de novo coxeando
como as pombas



uma vez na minha vida.



9



Homens na noite tenho visto
aumentando a noite derredor
como súbitos fósforos acesos.



Vejo o senhor na manhã.



10



Beijo o senhor na manhã.



11



Já se me musgam as fontes da cabeça.
Cabelo nasce-me do imo dos ouvidos.
Suspiro já solfejos assobiados.
Só não sei desenhar rosas como o senhor.



De resto
estou pronto.

12



Acendo o carvão e esqueço-me das sardinhas
como o senhor
fico a olhar o lume.


13


Tive de
de novo
nascer longe
quando o senhor
se foi embora
para longe.


14


Vivo o andamento do meu amor
como vive o remador
em barco e água.


15


Lego aos meus leitores
o outono vitalício do legado
do senhor.

Faço assim:

na orla de um lago entre árvores
toco a pele da água com a água
dos meus olhos.


Dos meus olhos
então
de novo
o olhar do senhor.


Ele
o senhor
é quem olha
os leitores.


Não já eu.


16


O meu Pai é o senhor.


17


O senhor é o meu Pai.
Nada me faltará.


18


O senhor pintou
em azulejo a tinta de baixo-fogo


o D. Fuas Roupinho e o veado suspenso
o S. Jorge e o dragão assassinado
a Sãozinha da Abrigada e as rosas virginais
o Padre Américo e as crianças sacristas
o S. José e o Filho do Outro
o Simón Bolívar e o labirinto emigrante
a Santa Teresa de cabeça enegrecida
o S. Pedro e as chaves que não abrem
a sua irmã Maria e a tuberculose das varinas
a Alexandrina de Balasar e os lírios paraplégicos
o Lenine olhando o senhor nos olhos
a Lígia pequenina na fonte de Antuzede
e a sua mulher olhando-nos nos olhos
como se a minha Mãe fosse o Lenine
ou
a Sãozinha da Abrigada com rosas virginais.


19


À tal orla do tal lago entre árvores tais
usa a água chegar em apaziguadas ondas.


É o trabalho do sal nos olhos.


Agora os meus.


20


Por não saber lapijar rosas
junto outonos numa caixa feita de
língua portuguesa.


21


A manhã não é como o senhor
porque termina.
Tenho de ir para casa
fazer o almoço
tenho sardinhas e lume
para acender.


19/03/2010

A Boca ao Cabo de uns tantos Invernos



Pombal, entardenoitecer de 17 de Março de 2010



Os olhos enfraquecem um pouco, depende dos dias; os dentes estragam-se sem depender dos dias. Pela boca passam alimentos e objectos e ideias caídas do tecto da cabeça, também os dias passam pela boca, os dias por tudo passam, não é novidade.
Ao cabo de uns tantos invernos, o corpo trabalha. Umas vezes, o corpo é pessoa. Outras, é animal. É sempre pedra e folha sempre. Atravessa revoluções, o corpo atravessa fumegando as revoluções que lhe dizem e as que lhe não dizem respeito.
Há salões de jogos por todo o lado, mundos no mundo, simulações da ofensa e da autoprotecção, máquinas que movem, bebidas que comovem, revoadas de crianças-bibes escalonadas por cores-idades, aves aquáticas cujo repouso convida à melancolia de postal.
Não há milagres. O que há – interessa: como também o que não há. Assim também o que é e o que não é. Uma coisa que é: o corpo (pessoa e animal) vale o olhar de que é capaz. Uma coisa que não é: a miséria autojustificada.
Turva e perturba o para-quê, o das coisas como o dos corpos, o das folhas como o das pedras, os olhos e os dentes. Muitos temos de viver sem isso, o para-quê, para sobreviver sem tanta luta, tanta turvação e tanta perturbação. Muitos rolham a botelha com Deus ou o Diabo ou os dois. A Música – para quê? Vamos pelo para-quem, é melhor do que (para-)nada – e do que para-ninguém.
A Arquitectura, arte residente, resiste conforme a resistência dos materiais. Mas – e a Poesia? O problema decorre mormente de o material ser simbólico: a Poesia vê-se à rasca para conseguir meras vilegiaturas ao Sol (Único Verosímil Deus).
Alimentos e objectos e ideias que tentam erguer-se – curso de tardes largas como bandeiras de hotel-de-avenida – evolução do preço mínimo da corrida de táxi (a bandeirada) entre, digamos, os anos 20/XX e os 60/XX, na Metrópole como nas Províncias Ultramarinas – a violência adocicada do excesso de informação irrelevante: e o excesso de Poesia, não menos violento/a na boca.

Redacção Vendo o que Chove, Dormindo a Cadelita



Louriçal, tarde de 19 de Março de 2010




A uns em outros o tempo que faz e o Tempo passante engessam.
Mais poético resultaria, talvez, dizer que encastoam brunamente a uns como a outros, pobres jóias pobres do tempo e do Tempo.
Aves a prumo obliquam a uns e outros a condição e o horizonte, prisma óptico de caleidoscópica chuva que acontece em sendo as três e qualquer coisa da tarde.
Molhados olhados voos orni’alados encantam a geral pobreza e a particular miséria.
Isto é tudo de estar vivo por quase nada e para nada, quase.
Nos entrementes, o perfeito casaco da cadelita a guarda em sono acima do tapete encarnado.
Em nós (como em outros uns), ocasionais fremem emoções – como rápidos rastilhos, rápidas passagens do pelotão da Volta.
Volta por volta, a melancolia assenta arrais no bar dos bombeiros, nostalgia do fogo e do Verão, lenho maduro que esbraseado revela de rubi o ardente coração.
Nenhuma fúria e fé alguma: o mundo é calma sem diferença.
E sim: a mesma fúria do mar não ensina outra violência que esta necessidade de a cada instante renascermos, uns como outros.
Olha o que chove.


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Não, nem fúria nem fé, nem agonia nem luxúria, nem incúria, nem dia ou noite, senão a vida toda em volta de roda de nada.

MUITAS COISAS PARTIDAS - VII

© Sandra Bernardo, Estação de Pombal – 21 de Fevereiro de 2010



VII



De novo vejo o homem na tarde de comboios.
O homem na tarde de comboios não tem aonde ir.
Árvores acodem em moldura de quieta procissão.
O rio parece triste como uma pessoa deitada.
Pássaros angelizam o cartão do céu.
Raparigas de aluguer florescem à sombra da sombra.
O sol desce a meia-haste além-nuvens.
Voltaremos de comboio a nosso passado porvir.
Subsolo, vigiam os nomes mortos em mármore.

MUITAS COISAS PARTIDAS - VI

VI


Tarde de mais para que o que digo se não escreva sozinho
sempre na orla do mar brisando
frios invernos salgados.
Chego sempre tão tarde aos correios e à mercearia.
Mulheres velhas, essas que cortam lírios,
vieram ao vinho,
pedem esmola na escadaria,
três ou quatro que olham para isto e não escrevem.

Ode das Crianças Repetidoras

© Eugene Smith




Souto, Casa, fim da manhã de 19 de Março de 2010





Ó crianças que engendrámos um dia,
um dia pelas ruas nos repetireis a sós,
como hemos aliás já repetido em nós
quem já não há nem será senão por vós,
um dia.

Ora cá estamos quase todos, portanto (eu estou de certeza) - verruma do senhor Verney


© Sandra Bernardo - Cabeça de barbado e mão de barbeiro - 10 de Agosto de 2009



"Crítica à Poética Cultista e Conceptista

Quando vejo um poeta destes, que se serve de expressões que nada significam, ou que compõem de sorte que o não entendem, assento que não quis ser entendido, e, em tal caso, procuro fazer-lhe a vontade, e não o leio. Com esta sorte de homens faço o mesmo que com os labirintos e enigmas, etc., os quais nunca me cansei de decifrar. Eles que o fazem, que se divirtam com isso. Se todos assentassem neste princípio, veria V. P. como se mudava a poesia nestes países; porque seriam obrigados os poetas a lerem somente as suas obras; e, assim, ou se desenganariam eles mesmos com o tempo, ou não enganariam os outros; e poder-se-iam achar poetas de algum merecimento; principalmente se chegassem a conhecer quais são os requisitos necessários para a poesia. A razão destes inconvenientes é porque se persuadem comummente que, para ser poeta, basta saber a medida de quatro versos e saber engenhar conceitos esquisitos. Quem se funda nisto não pode saber nada: são necessárias muitas outras notícias. É necessário doutrina e entender bem as matérias que se tratam; é necessária a Filosofia, e saber conhecer bem as acções dos homens, as suas paixões, o seu carácter, para as saber imitar, excitar e adormecer.. Aqui entra novamente a Retórica, que supõe todas aquelas coisas; entra uma pouca de história, para não dizer parvoíces; entra a história da fábula, etc. Tudo isto se mostra manifestamente nos melhores poemas que temos da Antiguidade. (...) Onde, quem não tem estes fundamentos é versejador, mas não poeta; e necessariamente há-de dizer muita parvoíce."


(Luís António Verney (1713-1791),
VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR, Carta VII)


Fonte: http://faroldasletras.no.sapo.pt/barroco_textos_teoricos.html

18/03/2010

MUITAS COISAS PARTIDAS - II a V

© Sandra Bernardo, 8 de Março de 2010


II


O coração – dizem-nos.
Como se fosse mais do que um músculo habitado
por pouco secretos demónios.
O coração – casa preta na noite do corpo.
O coração – cabeça de cansado cavalo cego.
O coração – hortaliça cabotina.
Bússola partida num deserto de bares fechados.
Todas as outras pessoas são barcos estrangeiros para o coração.


III


Essa mansidão feita de cores.
Nenhuma papelaria vende as tintas desse olhar.
A luz abre um mar de laranjeiras.
A luz assina com o meu nome
as sombras com que molho a cama.
Gostamos tanto de mulheres que
as mulheres nem precisam de gostar de nós.
O rio é o tempo o sono é a morte o homem é a árvore.
O homem quieto na tarde do cavalo.
Uma poça de luz branca: a mulher.
A mulher é o rio a mulher é o sono a mulher não é o homem.


IV


Tudo cai do altar do dia:

um olhar lento como azeite que aceite as oliveiras da alma
a história do homem sentado na tarde de comboios
o vento de Peniche
uma toalha de água por sobre a mesa da terra
oliveiras povoadas de cavalos
o cavalo comedor de caracóis
o cavalo comedor de gotas de água
cavalos pastando na eternidade
as paredes daquela casa de que vos falei
o silêncio dela põe uma pele de pêssego nas coisas
um odor de creolina
recordações como apeadeiros
vagos rostos rápidos entrevistos contra um fundo de pinhal
lances de chuva
cidadãos estrangeiros
safiras voadoras
uma mulher deitada
uma alegria desordenada
uma pulsação de rosas de Inverno
frutas maduras: as mãos
um gesto de junco de junho:


tudo cai alto do dia.


V


As bocas desatam a arder.
Isto de noite.
Eu não, mas o meu corpo já esteve em ti
dentro de água sem o resto do corpo.


Um dia, a minha vida será uma sombra numa frase alheia.

Canzoada Assaltante