25/06/2015

Rosário Breve n.º 413 - in O RIBATEJO de 25 de Junho de 2015 - www.oribatejo.pt



912 578 9setenta à mais dura porta arrebenta


1. Tejo Alporão

Temo que ao Tejo acabe acontecendo o mesmo que há demasiado tempo acontece à EN 114 e aos monumentos santarenos: o encerramento sine die. Se o grande Almeida Garrett quisesse hoje viajar pela nossa terra, que dele era e que ele tão bem fixou em páginas logo clássicas à nascença da tinta sobre o papel, teria de ligar para o 912578970. Parece que é o número mágico-municipal que abre portas que abertas deveriam estar a horas fixas e certas. De monumentos, por exemplo, que as pessoas, essas chatas que mais nada hão que fazer, têm a mania de visitar. Se o atendesse alguma “voz técnica”, o mais certo seria o Visconde escutar em castelhano a revelação de que o Tejo já não é Rio mas sim heterónimo hidrológico do Museu de São João do Alporão, hombre! Entrementes, já sei que o Mouchão de Pernes não faz parte do multitudinário bailarico-de-todo-o-Verão“In.Str.” nomeado. Pois é – hidrologia e barreiras não são “cultura”: são chatices que não dão folguedo aos bisonhos bisontes votantes, chico!

2. Calvinismo ataca sessão municipal

Italo Calvino, o magnífico escritor italiano, foi referido em uma sessão municipal scalabitana do corrente Junho. Estranha coisa. Acabou quase toda a gente por ficar na mesma. Devem ter pensado que é o gajo que vem para adjunto do Jesus no Sporting. Mas pronto, Julho que vem, apurei-o eu já de fonte-suja, é o mês de Thomas Mann magicar montanhosamente em Abrantes; em Agosto, Curzio Malaparte conspira no Cartaxo; em Setembro, Erich Maria Remarque vai obeliscar a negro Almeirim; em Outubro, Malcolm Lowry bebe uns copos valentes debaixo do vulcão que Tomar é; em Novembro, Graham Greene faz de terceiro homem na assembleia de Vila Franca de Xira; em Dezembro, o Autor da Bíblia (que, como toda a gente sabe, é o tenebroso Edgar Allan Poe) vai assombrar todos a todo o lado; e em 2016, não sei nem quero saber – o mais certo é 2016 durar um ano, à maneira daquele famigerado abatimento de estrada junto a um curso de água ali para as bandas das Ómnias.

3. Gaivotas sem terra

Viegas é uma aldeia da freguesia de Alcanede, concelho de Santarém. Duas pessoas de breve idade, na brevidade de três meses, ali se suicidaram. “Não há gaivotas em terra quando”… quê?

4. Vandalixos 0 – Bonitão 1

Ao muito lixo aparentemente perpétuo da capital distrital ribatejana, juntou-se a vandalização aleatória de equipamentos urbanos destinados à higiene pública (deficiente já de si/deles) e de sinais rodoviários. Qualquer coisa como 250 contentores que a Câmara teve de comprar para repor os ardidos. Portas veio à Feira, seu histriónico ambiente socionatural, jantar à pala com mais umas centenas de sombrias figuras-sombra da laia yes-men. A culpa disto tudo só pode ser, claro, da Grécia: tanto da pala, como do vandalismo. Só pode. “Os vazios nunca perduram indefinidamente” – escreveu-o Dinis de Abreu no semanário Sol de 29 de Maio último. Um dia antes, a 28, o grande Chico Buarque, que é tudo menos vazio e que definida e definitivamente perdura, era graciosamente citado pela revista Sábado: “Há gostos para tudo. Há quem me considere um cantor medíocre. Há quem não goste da minha música e sim dos meus romances. Eu prefiro ser bonitão.”

5. Consolidai, filhos, consolidai

Parece que o “passivo consolidado” do município de Santarém em 2014 é de 144 milhões de “aéreos”. E que a “dívida consolidada” do idem é de 103 milhões, apontam Idália Serrão (a tal do coiso Calvino) e Madeira Lopes. Pita Soares contrapõe “resultados líquidos positivos de 1,9 milhões nas contas consolidadas”. Vale-nos António Melão, que não é de Almeirim mas parece do Entroncamento, por fenomenal. Nunca leu Italo Calvino, confessou. Até podia ser o adjunto do Jesus no Sporting, confesso eu por ele. Mas Melão é homem de contas. Certas ou tortas – é outra história. Contas, são com ele. Diz ele. “Resultados operacionais do Município foram positivos em 3,9 milhões de euros.” Diz ele. Vá lá, que não disse “consolidados”. Mas, vá lá, Melão ainda concede “que se façam leituras diferentes”. Mas das contas, diz ele, afinal inferiores em 5 (cinco!) milhões ao ano transacto. Leituras, sim, desde que não sejam do tal Calvino, claro, que se calhar era mas era grego.

6. Contas agora minhas, chiça

250 (contentores) vezes 250 (euros/cada) = 62.500 “paus”. Porra! Poupai tanto guito e deixai arder o lixo, já que o não recolheis a tempo, ó pàzinhos! Se não, como raio havereis de consolidar tanta liquidez?

7. Resposta à pergunta de há pouco

“Não há gaivotas em terra quando”… quê?
“Quando um homem se põe a pensar”… na aldeia de Viegas, freguesia de Alcanede, concelho de Santarém – Portugal.

Não, não estamos “em festa, pá”, ó Bonitão. Estamos mas é na merda, para falar curto, grosso e direito.

18/06/2015

Rosário Breve n.º 412 - in O RIBATEJO de 18 de Junho de 2015 - www.oribatejo.pt


Edward Steichen
Woods Interior
1898
© Estate of Edward Steichen



Coisas que me dão n’alembradura tipo aforismos ou pior


Vou pelo lema estóico tão do agrado do polígrafo (mas Poeta sobre tudo o mais, acho eu) Manuel António Pina e de outros plumitivos de alta e cavalar nomeada tais como Walt Whitman (que Álvaro Fernando de Campos Pessoa leu) e Ezra Pound (que valorizou a tempo e horas um tal James Joyce): Nec spe nec metu Nem esperança nem medo.
Em relação a tudo – ou a quase tudo.
Em relação a todos – ou a quase todos.
Até porque, antigamente, a Ignorância se envergonhava de si mesma. Hoje, forma (des)Governo.
Seria preferível morrer ignorado a viver na ignorância, se viver não fosse, como de facto e deveras é, preferível a morrer.
A 18 de Agosto de 2007, andava eu, não sei já por ou para quê, pela Figueira da Foz. Num repente (mal tive tempo de tomar nota), ocorreu-me esta evidência:
“Um dia, a minha vida será uma sombra numa frase alheia.” Estranhamente talvez, essa certeza serenou-me. Lá estava aquilo do nem-esperança-nem-medo: é que, depois, nem sombra nem sobra.
Já muito antes (por volta de 1994, talvez, teria meses apenas a minha Leonor), me ocorrera algo deste tipo:
“A minha morte já começou, lá nos sítios onde estive e a que não voltarei.”
E é que já.
Outra do género (mas de que não recordo com precisão a data):
“Só a ubiquidade me/nos volveria eternos/s.”
Pois é: só estando em todo o lado ao mesmo tempo nos tornaria indeléveis, quando deléveis é o que somos – basta que morra o último que se lembre de nos botar o nome numa frase para que de todo nos apaguemos. O grande António Osório já, claro e claramente, o sabia, quando se referiu, algures, à “eternidade sem luz do esquecimento.”
Finalmente, pelos estertores da primeira década dos correntes século e milénio, estremunhei certa madrugada com isto já escrito (ou já inscrito, que não é bem a mesma coisa) na mente:
“O amor é cego.
A memória é o cão do cego.”
Memória. Esquecimento. Esperança. Medo.
“Words, words, words”, enfim – o velho Lelo Shakespeare sempre faz e dá sempre jeito.
Por instantes, revivo a tarde de 12 de Setembro de 2007. Dessa vez, a carcaça andava-me pelo Caramulo. Palavreado na cabeça às voltas.
A palavra ente.
A palavra utente.
Para a primeira, isto:
“Nada disto tem a ver com a vida.
Uma coisa é um gajo estar vivo.
Outra coisa é um gajo sê-lo.”
Para a segunda, isto:
“Nada disto usa a vida.
Uma coisa é um gajo estar vivo.
Outra coisa é um gajo usá-la.”
Tudo coisas que me dão n’alembradura tipo aforismos. Ou pior. Poderia dar-me para andar no gamanço ou na droga. Não ando. Ando nisto. (Des)governo-me com estas, e afins destas, verbosas inutilidades. Mas para andar a sério (mesmo a sério e à séria) no gamanço, formaria eu (des)Governo.
Não formo. Não formarei. Falta-me ignorância para isso.
E medo. Falta-me medo para isso.
E esperança (essa usança da espera), coisa de que não sou ente nem utente. Falta-me esperança para isso.
Vou sendo o cão do cego, mas com a devida pulga atrás da atenta orelha.
Pronto. Já está. Crónica feita. Para o ano que vem, outra vez Feira do Ribatejo, vulgo Nacional da Agricultura – mas não há-de ser (iupi!) o Cavaco a inaugurá-la.
Sempre há qualquer coisita de que ter, afinal e sem medo, esperança.

11/06/2015

Rosário Breve n.º 411 - in O RIBATEJO de 11 de Junho de 2015 - www.oribatejo.pt



A Escolha
(acta de consulta)



De seu/dela lado da mesa, a Senhora pergunta-me:
– Qual é a sua Primeira Recordação da/na vida?
É uma pergunta profissional. Clínica, não cínica. A mesa é de consultório.
Respondo:
– No Pátio da Casa dos Pais, 1967, tenho três anos, algo debaixo de um papel ou cartão, acho algo que me enche de alegria, alguma quinquilharia-tesouro, não consigo saber o quê, talvez uma carica de garrafa de laranjada para fazer um ciclista, talvez um cromo ainda bom de jogador da bola para a caderneta, só recordo o ter achado, não o achado em si, ou em mim, só o ter feito um descobrimento, a emoção intensa (chamam-lhe “adrenalina”, hoje em dia), o sapato direito garimpando aquela fortuna incalculável,  que, de facto, ficou por calcular.
A Senhora então assim para mim:
– É mesmo essa a sua Primeira?
Ardil. Tento esconder o gato sem mostrar o rabo. Em vão: ela sabe do ofício.
Eu assim para ela:
– Até que ponto, Doutora, são as recordações deveras factuais? Quanta ficção maquilhada pelo desejo as não emboneca? Quanto real é/há nelas? Quão sincero (nos) é o Passado (ou nós sinceros para com ele)? Quanto tem ele de fabricação?
Ela sossega-me:
– As recordações têm sempre algo de verdadeiro, de histórico, na origem. A essa verdade antiga costuma associar-se, inconscientemente embora, o contexto, a época, o ouvido, o falado, o que os mais Velhos disseram, o que a Criança apre(e)nde(u).
E insiste:
– É mesmo essa a sua Primeira Recordação?
Decido abrir o jogo:
– É. Mas há uma Segunda que é Primeira também. Ex-æquo, diria eu. E digo.
E ela:
– Conte-ma, por favor.
E eu:
– Tem de ser 1967 ou 1968, no máximo. Não pode ser mais perto no Tempo. Nem mais longe – eu sou dos de ’64. Ainda não ando na Escola. É na terra do meu Pai, não naquela onde moramos, que é a da minha Mãe. Levavam então as crianças a essas coisas fúnebres. Acho que ainda levam. De repente (é uma espécie de clarão na mente), num adro (árduo), vejo o Caixão. Já saiu da Igreja, ainda não chegou ao Cemitério. Terra seca. Está completamente só, o Morto. Como deve ser, s(up)onho eu agora. O Rosto é um lenço sobre o rosto. Brisa nenhuma. O Rosto-rosto não se mexe. Os homens pousaram-no ali. Talvez para descansarem um pouco. Os homens desapareceram. O séquito desapareceu. O Sol a pino. A pique. Absolutamente Só. Absolutamente Sol. Absolutamente ninguém em torno do esquife. Não me vejo a mim mesmo – sou Aquele-que-Olha.
A Doutora:
– De quem era o funeral?
Eu:
– Era de um homem já grande quando o meu Pai ainda era menino.
A Senhora:
– Muito calor?
Eu:
– Insuportável. Aquela luz irrespirável à García Márquez, sabe a Senhora? O negro acérrimo do ataúde. Ninguém à volta daquela Caixa-Preta. A força do calor açulada pela força do Ninguém-à-Volta, pela força do Nada-por-Todo-o-Lado. Nem o meu Pai à vista. Até hoje.
A Senhora:
– Há estudos que apontam no sentido de um maior pendor para a sobrevivência no caso das pessoas cujas primeiras recordações estão associadas à alegria, ao prazer, a sentimentos bons como a gratidão, a surpresa agradável etc. O senhor tem duas Primeiras.
Qual delas escolhe?
E eu:
– Mas eu posso escolher?
Então a Senhora assim:
– Pode. Pode sempre escolher. Fixe isso: pode escolher sempre. Creia nisso. Mas é bom que tenha sido franco com o acréscimo da “Segunda-também-Primeira”.
E eu:
– Então escolho a primeira-Primeira. A do Achado.
Então a Senhora assim:
– Como, ou o quê, são hoje para si os dias de muito calor?
Eu:
– Acho que compreendo a pergunta. São mortíferos e mortais e sozinhos. Olhe a Senhora que eu gosto de praia no Verão. Mas prefiro-a de Inverno. Ao Estio, prefiro de longe o Outono temperado. Até a Invernosa mais álgida lhe prefiro.
A Senhora:
– Compreender é bom. Ajuda a escolher. Não muda o Passado. Mas muda qualquer coisa (para) hoje.
Eu:
– Mas nunca saberei o que estava sob o papel/cartão, o que achei, o que me alegrou tanto.
A Senhora:
– Escolha o tesouro que quiser. Mesmo que esteja calor a mais.

Consulta acabada, sozinho na paragem de autocarros. Sol forte, implacável, daquele de enegrecer rosas. Mas, perto, há uma orla de sombra viva: como uma gaze fresca atirada pela Mãe. Acolho-me a ela. O autocarro vem a horas. E, uma vez na vida ao menos, eu também.
Obrigado, minha Senhora.
Obrigado, acho eu.
Ou escolho.




04/06/2015

Rosário Breve n.º 410 - in O RIBATEJO de 4 de Junho de 2015 - www.oribatejo.pt



Duas por uma resto zero

1. O Regresso do Emigrante

À saída do comboio, sentiu que o tempo tinha mudado de espessura. A ausência tinha oxidado os pombos e as palmeiras. O jardim era do esmalte que consubstancia o futuro anterior. No coreto, fantasmas filarmónicos tocavam Roberto Carlos.
Comeu um quarto de frango numa churrasqueira enegrecida. O recepcionista da pensão aceitou-lhe as malas com um gemido artrítico.
De volta ao largo, conferiu a eternidade das mercearias, os jogadores de cartas aposentadas, a sesta dos táxis e a fragrância mortífera da desesperança.
Trinta anos em França. Doze na Alemanha. As mãos dormentes de tanto trabalho. E, agora, o regresso, essa missão impossível. As crianças tinham-se casado. As aldeias eram iguais entre si como requeijões. As pastelarias repetiam-se umas às outras como sonhos feios. Os arquitectos pariam cubos de cimento como galinhas geométricas. Os farmacêuticos aviavam pastilhas contra o problema de ter nascido. E os futebolistas da equipa local eram brasileiros que entristeciam de frio na noite dos cafés cibernéticos.
Ao jantar, na mesma churrasqueira, ainda considerou a possibilidade de voltar para trás: França, Alemanha. Mas decidiu que não, que ficaria.
Que, no próprio dia seguinte, trataria de comprar um táxi ou um baralho de cartas, de modo a poder usufruir, em pleno esmalte, da glória de Roberto Carlos tocado até nunca mais pelos benignos fantasmas da filarmónica de quando isto era vila e ele não tinha partido para sempre.

2. Ao Alcance das Mãos

Contar e ouvir histórias não são actividades exclusivas da infância. Pertencem igualmente ao mundo do envelhecimento. Porquê? Porque as histórias, próprias e alheias, narradas e ouvidas, servem para melhorar a realidade. A realidade, sim. Porque a realidade nunca é bastante. Porque raramente é bonita, construtiva, adequada. E porque a realidade sai distorcida do velho conflito entre as mãos, que representam a prática, e o coração, que é a despensa sangrenta de tudo o que realmente vale a pena. Por tudo isto, trago hoje outra história.
Era uma vez uma pessoa que tudo deixava cair das mãos. Bebé, compreendia-se que tal lhe acontecesse. Veio a puberdade e, com ela, o ostracismo. “Ostracismo” quer dizer (mais ou menos) que tudo e todos ficam longe de nós, porque todos e tudo assim o querem. Todas as coisas vinham parar ao chão, segundos depois de tentar segurá-las nas mãos. Estas eram, ao menos na aparência, normais: dez dedos e dez unhas, mais as oito linhas que marcam o delta do destino. Garfos, jornais, jarras com suas flores, anéis até: tudo acabava no chão.
Já adulto, não segurava nem empregos nem amores. Das mãos lhe caiu a vida do pai e a de um irmão. E também a do cachorro amarelo, único dos seres que tinha podido conservar, pois, como é sabido, são os animais que nos possuem e seguram.

A história acaba assim: deixou de tentar agarrar com as mãos coisas e pessoas. Descobriu que a única forma de ter está no olhar. E que, vistas as coisas assim, a realidade não é tão má como parece. Sim, mesmo aquela que temos ao alcance das mãos.

Canzoada Assaltante