30/11/2006

Caderno Acabado

Mais um caderno diário se me acabou de folhas.
Sobraram textos.
Junto-os aqui para o esquecimento sossegado do costume.


I
OS IMPÉRIOS DISSOLUTOS – MANIFESTO CONTRA O COLONIALISMO


Uma pessoa veste-se em minutos.
Demora anos a despir-se.
São os impérios dissolutos:
vem vice-rei, vai rei a vir-se.

Caramulo, noite de 16 de Outubro de 2006

II
“DO SONO LÚCIDO NÃO”


“Do sono lúcido não despertes as crianças”
– assim era o primeiro verso qu’ escrevia,
quando entrou o homem brancanémico
que gosta de bolos e, interpelando-m’ele,
se foi às malvas a maresia lírica.

Assim se perde um poema e s’ omem ganha.
Poem’ aqui e outr’ ali. Não tantos
os poemas quantos os homens, a anemia,
os bolos. Na sossega salamandra, o rubro
lume forjava ferro a meus ossos
incandescentes, às rimas atento como às gentes.

Caramulo, tarde de 19 de Outubro de 2006

III
SAFO DA BIOPSIA


Verdaquosa natura m’envolve,
su’ a frio o ping’ arvoredo.
Biopsia já fiz e não tive medo:
o q’ a morte não faz, a vida resolve.

Sabendo de ti vou eu mais o’ menos,
viv’ eu dias longos e outros pequenos.
À beira da terra, à beira do mar,
serviço de copa p’rà sala-de-estar.

A que portugueses farei eu, enfim,
relatóri’ ofertório ou poem’ afim?
Da língua soltei grainha de baba:
biopsia já fiz, vid’ à mort’ acaba.

Viagem Caramulo-Seia, tarde de 19 de Outubro de 2006

IV
MANUEL FARDINHA E AUGUSTA RENDILHEIRA – EVOCAÇÃO DE

Ninguém que eu conheça explica muito bem
a ausência de meu tio Manel Fardinha
e de minha tia Augusta Rendilheira,
mulher dele,
ele homem dela.
São desaparições, isso eu sei.
Deles – e dos dias deles.
Quando muito chovia ou batia
o sol no largo do fontanário,
por Cristo, com Cristo, em Cristo,
oliveira do Calvário.
Das raparigas de então ardiam
as febras virgens, a vaginal aranha,
as cheias boiavam de laranjas
e afogadas ovelhas,
isso eu lembro.
Perto, a menos de 40 metros, uma tia
chamava-se Saudade.
Chamou Rosa à filha.
De modo que me estavam.
por assim dizer,
escritos de antemão os versos,
dada a família.
Mas – e de Manel?
Mas – e de Augusta?
A família faz,
desfaz,
diz,
não diz.

Seia, tarde de 19 de Outubro de 2006

V
LX MAIS I E Ó


Para Cesário Verde, natural e inevitavelmente

Recolhe a noite seu lixo humano.
Pensões recolhem meretrizes.
Homens que não sigam directrizes
acabam sendo lix’ ou guano.

Tristes lampejam candeeiros.
O Rossio é farto d’ indirecções.
Por vezes, basta, aos mais useiros,
Ter telemóveis, indicações.

O que não conta, cont’ aqui eu.
Estive em Lisboa vai p’ra dez anos.
Directriz tive, merd’ ela e eu.
Voltei p’ra casa, p’ra meus guanos.

Seia, noite de 19 de Outubro de 2006

VI
CERTO

Nenhuma nova poesia há-de ser nova.
Novo há-de ser o homem que, velho embora,
tente, ainda assim,
repeti-la.

Caramulo, noite de 29 de Outubro de 2006

VII
SUECADA ANGLODINAMARQUESA

Não a poesia apenas.
Não apenas o ex-rei Lear ao frio.
Não o desespero nobiliarca apenas.
Mas repetir o outro saber.
A cultura geral, o que te permite
falar com,
por exemplo,
um sueco.
Mais dois manos.
E um baralho.

Caramulo, noite de 29 de Outubro de 2006


VIII
FINITA



Cheirit’ a leite da púberpele.
Buço rucito ourand’ a boca.
Mamita leve, pingo-de-mel.
Citrina beiça, ‘xp’riência pouca.

Pé nu nunc’ ai l’ o vi ai eu.
A mão já vinh’ envolt’ em luva.
Blus’ amarela e camafeu.
Ai eu q’ o dig’ expost’ à chuva.

Séc’lo passado, 84.
Maio cedeu, se deu doçura.
Er’ uma ‘spécie de teatro,
er’ uma ‘spécie de ternura.

Calças eu brancas, el’ amarelas,
sapatos curtos, juventude.
Adeus, Natália. Adeus, saúde!
Gostei de ti sem mais aquelas.

Caramulo, noite de 30 de Outubro de 2006

IX
MOMENTETERNAS – SEXTILHAS E TERCETOS PARA ALGUMA SALVAÇÃO


1
Esta manhã a água não correu das torneiras.
Lavei-me à chuva que se despenhava em jorro no quintal.
A gata não exigiu a mijada exterior.
Enrolou-se nos destroços da cama vazia.
Enxuguei-me com uma toalha pesada.
Fiz café forte e fumei-o.

Parece que um homem rasgou um cano com a máquina.
Foi esta a informação da autarquia.
Problema talvez resolvido p’lo fim do dia.

2
Quatro mulheres conversam rápidas, sentadas.
São fabris e febris.
Peles sem creme e cabelos sem verniz.
Ganga barata enchouriça-lhes as pernas.
Alianças-frieiras friccionadas por detergente de louça.
Devoradoras de legumes, filhos, toucinho.

Homem resmunga contra o tabaco no ar.
Bebeu um quartilho de água mineral.
Está velho para diversões.

3
Pêlos brancos da barba caiam-me a lâmina.
Água da chuva numa bacia.
Barba decepada a frio: after-chuva.

Quatro homens entalam palavras entre eles.
Calafetam de massa a sobrevivência.
Deixam crescer as sobrancelhas como arbustos.
Encouram as mãos encla-avinhadas no vidro.
Pergaminham a cara sob o chapéu.
Deixo que vivam sem água.

Caramulo, tarde de 6 de Novembro de 2006

X
DIAGONAIS

Para o meu mui querido amigo e poeta Joaquim Jorge Carvalho


Há muito que ver – o mesmo infinito mais.
Vem do uso dos olhos a diferença.
Pássaros são folhas diagonais,
Muito mais do que se pensa.

Repito na panela sopas antigas.
Inverno é verbo meu preferido,
que ajo com letras de cantigas
(e até já tomei banho vestido).

Já fiz coisas que não queria
ver pelas filhas repartidas.
Voltas, nunca venderia.
A vender, vend’ria idas.

Idas para o meu futuro
brev’ igual, pastelarias.
Leite mole e pão do duro,
queijo de barra às fatias.

E uma volta p’las freguesias.
O sol do céu, tantos baldios.
É um país de chuvas frias.
É um país de amores frios.

Ó minha terra, ond’ eu morri:
quanta lembrança saúda por ti.
Ai ai ai, ai ai ai:
terra de tio, d’ irmão e de pai.

Amas até o piolhoso
país que rege o regicida.
Ultimatum oitocentoso.
Quem não entrou, só tem saída.

Caramulo, manhã de 14 de Novembro de 2006

29/11/2006

História de um Crime

A tua cabeça redonda
posta sobre a almofada
sem um olhar que a esconda
só a cabeça mais nada

Mai’ nada não não falo bem
em baixo a garganta clara
carne de leite da mãe
também de filha mais rara

Assim vi de cima a ti
manchar a fímbria de linho
numa noite em que chovi
chovi um choro baixinho

Duas orelhitas de prata
cabelo entristecido
quanto se ama se mata
fica o crim’ acontecido

Depois vei’ a pura glória
dois olhos o peito tinha
contavam a minha história
registei a ladainha

Isso foi ‘ma sexta-feira
doutr’ inverno doutra vida
ao lume tod’ a madeira
ced’ ou tarde acab’ ardida

Lá pr’ò sul os pés duplicados
vão dois a dois camurçar
medos e dedos não contados
tenho eu de os contar

Trem’ o creme nada ain-
da nunc’ eu vi tão lind’ assim
uma noite só p’ra mim
diz-me não qu’ eu digo sim

Podi’ eu ser outro homem
ter uma outra mulher
era preciso ser jovem
não querer quem nos não quer
Era precis’ outr’ idade
outra rima entretanto
entre tantas na cidade
mais de trint’ a cada canto

Mas isso não sobr’ almofada
pur’ ideia pura glória
cont’ outra vez a minha história
a minha história e mai’ nada:

Duas orelhitas de prata
cabelo entristecido
quanto se ama se mata
fica o crim’ acontecido.



Seia, tarde de 19 de Outubro de 2006

Fado Pneumónico

São quanto deixo coisas vivas
os amigos um rasto de tapetes
mijados por gatas redivivas
persas areias ureias verdetes.

Não tenho como não
pôr na borda do prato
o oss’é pr’ò cão
a ‘spinha é pr’ò gato.

Se um homem se distrai no corno da rua
e vê de chapéu uma fêmea nua
q’arrenda depressa a febra que (é) sua
que ligue p’ra casa p’la lista t’lefónica.

Não send’esse o caso não havend’ o tempo
faça que não faça que passe o momento
pior é morrer que ter a pneumónica.



Caramulo, noite de 17 de Outubro de 2006

27/11/2006

Uma Verificação Alpinista na Noite

Cerra em nosso torno-corpo o inverno suas mandíbulas
não é tarde ainda para vivermos
podem as manhãs ser brandas e frívolas
não é tarde ainda para nascermos.

Perto de casa tenho quatro cedros
demanda a gata os cantos de casa e cedros
a aventura não é para perder
um pouco mais tarde talvez mas não agora ainda.

Um bafo de céu congela a montanha
agreste é esquecer é nunca ter sabido
um bafo de céu congela a montanha
agreste é viver sem nunca ter subido.



Caramulo, noite de 27 de Novembro de 2006

23/11/2006

A Chuva também em Estocolmo


para a
Sandra Feliciano, minha Amiga,
que já foi à Suécia





Decorre – não corre – o Tempo – para chegar mais depressa.
Está bem que assim seja.
O demo da hora dá demora.
E é também um bem que assim seja.

Não confundas um sueco com um norueguês.
Nenhum dos dois há-de gostar.
Não confundas um homem com um homem.

Vi na televisão um dinamarquês negro
a correr e a vencer como um queniano:
the empire counterattacks.
Mas não confundas um dinamarquês com um queniano.

Almocei no IKEA de Alfragide.
Trouxe comigo dois breves lápis.

Pills can take care of that”,
escreveu, em bom suecamericano,
Jan Myrdal, sueco
(v. An Anthology of Modern Swedish Literature, International P.E.N. Books, Cross-Cultural Communications, Merrick, New York, 1979).

Titipipilamos – intraduzível.
Luzicucagamos – intraduzível.
Fadistamos – intraduzível.
Chove tanto – intraduzível.

Uma vez, em Lisboa eu assobissurdinava (intraduzível)
o Moon River (traduzível).
Era na plataforma do Metro.
Era no Inverno.

Era no Inverno, era à face do Rio Lua Rio.
Chamam-lhe Tejo (mas nasce Tajo, mas nasceu Tagus).
Eu também era.
Mas isto de ser, como o rio,
passa e fica.

Demorei-me,
cumprindo as boas mesuras de minha Mãe
enquanto não morre.

Demoro-me: demo-me e oro-me.
Não é ainda Estocolmo, mas já parece.
É hoje, tanto tempo depois, esta,
uma boa noite:

perfis de prata: risco de chuva:

toca as plantas glabras o gelo espinhoso,
difícil, humano como um telefonema
não atendido.

E mais isto: a raça do homem depende da palavra
do homem.

Estou daqui a ver o corredor preto
(tradução: negro)
da Dinamarca
conquistando o pódio-1
do meeting (intraduzível)
de Helsínquia.

Estado-Previdência, Welfare.
Cruciante cardiograma de suicídios.
ABBA.

Vim buscar a chave e não voltei a casa.
Nem gastei nenhum dos dias
entre o Natal e o Ano Novo
a viajar para Vattenslott.
Sei lá eu onde isso fica.
Fico eu.
Fico aqui mesmo.



Caramulo, noite de 30 de Outubro de 2006

22/11/2006

Corpo 42



Pois que
quão o suor
é a consciência tão
emanação do corpo,
escrevo isto
aos 42 anos de idade.






A aço se não reduz já o braço
– ou conduz.
Etérea lama, em lugar disso
– sombra, que não luz.

Finos vasos azuis
o sangue vazam em as unhas.
Vibra dentro o osso
– não o aço:

formigueiro de dormente medula.

A mesma adolescente espada
não singra já no ar o frio:
antes tem frio, coitada.

A alma pisa o sangue
como a vinho fora.
O corpo é um gajo sozinho:
de espelhos devorador embora.

Restam costas e virilhas.
Salsugem babuja corais
de que ilhas, por tropicais,
são alheias maravilhas.

Lord Jim, Sylvester Stallone:
clones da musculação
por via mail ou telefone
ou da coragem contrição.

O mais é livros folheados
a cuspo d’ouro proletário:
andam os corpos enganados
– não tem reforma, o operário.
Digo isto bem do alto
duma idade que se abaixa:
Montepio, monte alto,
tostõezinhos para a Caixa.

Nunca conta a maravilha
seus segredos culinários.
Eles são certos e são vários,
dão de comer a operários
e mais à mãe e mais à filha.

Tenho na tíbia fissura
que arrefecendo algia traz.
Eu sou muito bem capaz
de fazer uma loucura.

Vivo em 2006
– não sei qu’é isso,
ó bicicleta!
É uma idade obsoleta,
é o corpo enfermiço,
refractário às mesmas leis.

Poucos sonhos.
Mulheres, nem risco.
O mesmo coração confisco
de onanirismos os mais medonhos.

Vento nos cedros: azulações.
Verdes chuvadas, o tom cinzento.
O filme é mudo, o filme é lento.
A derme é fria sob os colhões.

Meu manso corpo, tu sê bravio:
não te sufoque a consciência.
És da cidade que tem um rio.
42? Pois, paciência!



Caramulo, noite de 21 de Novembro de 2006

16/11/2006

As Áleas Sombrias

1
Quantas palavras te sobram ainda, novas?
Sabes que os temas (os fantasmas) permanecem.
Não sabes que palavras eles recriarão.
Aqui comigo, sentado, permanece também.

2
Aprecio a falta de medo das tuas palavras.
Gosto do teu desfuturo: tristeza e gás.
Gosto da desirmandade dos teus objectos:
parecem-me crianças velhas, petrificadas.

3
Aos pés da cadeira, as meias partidas de cansaço.
O dia foi-lhes duro, andaram muito.
Acabaram voltando sobre si mesmas.
Metafóricas por negras, por o lasso canhão.

4
Tu estás de pé à beira da lagoa de estanho.
A Lua e os carros devassam o bosque.
Animais fotocopiam-se em filhos, ritos.
E tu abusas da vida e abusas dos fritos.

5
Gosto do teu sexo rapace, rapaz, alto.
Dispenso bem a tristeza das gasolineiras.
Voltarás porém a elas, andante.
E à economia como à glotologia.

6
Com esses que a terra há-de comer, viste:
o marido de regresso, a euforia esponsal.
Imagens fascinantes, muito puras, eidéticas.
Tu viste coisas que o Diabo não desgravou.

7
Tu falas fundo como se uma faca foras.
Tu já entraste em abandonados sanatórios.
Quando repetes a vida do teu Pai – sorris.
Quando não repetes – sorri a faca.

8
Tu agora como sempre, ainda, novo.
A consolação da criança, o cão amável.
O estômago glauco de melancolia.
E as badanas de água nos livros de sal.

9
Os parentes ainda novos, desejando ainda.
As fábricas todas-todas em laboração.
Nada disto que agora, tu sabes.
Mais o senhor Araújo da Escola de Natação.

10
Do casamento contrariado do senhor do restaurante,
sabes também. Que só não leva no cu para
não perder clientes, o amor-de-Mãe (Angola, 1967),
o respeitinho, um lugar na lista de vereação.

11
Quantas palavras, vês (vê), te sobravam ainda,
afinal. E permaneces; e continuas; e dizes:
este é o corpo do meu poema: toma-o tu,
dizes-me. E eu bebo-o em sangue, não é nojo.

12
“Tempos do caneco”, ouves dizer a um homem.
Fala da guerra que foi, lamenta esta paz
delicodoce, exemplifica com dedos-números.
Ele fala – tu ouves a música dos pulmões.

13
O ouro é a graça. A Lua é a prata.
Gosto do teu coração vertiginoso, do teu coração-cantor.
Gosto da tua morte: gás e tristeza.
Serás uma petrificada, velha criança.

14
O caracol cosmogónico como uma azeitona,
um búzio, um ominoso recado maternal
com erros de ortografia: “estam ovos no
frigerifico, não enchas o fugão de gurdura”.

15
O carinho disto. O desejo de morrer e o de viver.
As áleas sombrias: os dedos dos pés daquela
mulher lavada que cortejaste sem sucesso,
mas uma filha. Da puta, segundo as más-línguas.

16
Maravilha, tanta palavra. Tanta nova palavra.
Recombinável aditernum, a sacana.
Como cifra económica, como perpétua puta:
a palavra nova: lagoa, estanho, fotocópia.

17
Sim, permaneço sentado. Não me deixes, só.
Ouço o marulhar dos teus intestinos.
Injecções proteicas alfinetam-te as intestinais vilosidades.
És um homem num café serrano, só.

18
Quando as moedas de escudo eram de níquel.
Lembra-te lá. Isso dói-te? Lembra-te.
O pedinte tocou a porta, a Mãe abriu-a.
Ela deu um escudo, pediu de troco cinco tostões.

19
O teu Pai assistiu ao vento de 140 km/h na recta da Adémia.
Quatro figuras protegiam-se do vento com mata-cães.
O teu Pai recordou, quase até o fim, dos quatro:
os pés chinesando sob os chapéus, ao vento vital.

20
Todas as combinações riscadas: Tottenham,
1970, Elias Rodrigues Faro, Picoto, Canino,
Dourado, senhor Sacramento, Brochiminete,
Chicha, Shartela, Miguel, Sharp, Underwood.

21
Lembra-te da tua primeira dignidade:
quase não foste um apedrejador de pássaros.
Depois, mataste. E continua-lo, riquinho.
A tristeza em Lisboa: nenhum barco colonial.

22
Era que já todos tinham vindo, amor (Guiné, 1969).
Uma alface à contraluz no slide do teu irmão.
O sabor da primeira desinocência nos dentes.
Matt Marriott pretibranqueava a amargura.

23
As pessoas já morriam antes de haver telemóveis.
Conseguiram encontrar-te para to dizer, não foi?
Foi. E tu compareceste. E tu permaneceste.
Daí a devassidão dos estanhos, das lagoas, da Lua.

24
Não era a vulva. Não era o dinheiro.
Era a parte de trás do prédio, mais isso.
A tua criança estava ali em ti, adulta muito.
Muito cedo, digo. Cedo de mais, digo também.

25
Reparaste decerto já que te não anuí razão?
Sim, que a não tens. Nem o contrário dela.
Estás vivo: o papel fixa isso.
Estás a morrer: o papel idem.

26
Aos domingos de manhã, os pedintes e os tremoços:
o mundo à porta; e as moedas de dez tostões.
Só não me entregas o que não podes.
Eu estou a falar do futuro, deixa.




Caramulo, noite de 13 de Novembro de 2006






15/11/2006

Amanhã há mais

Maltosa:

textos regressam amanhã.

Beijos e abraços.

D.A.

11/11/2006

Colagem

Nenhum dos versos seguintes é meu.
Colei frases esparsas ouvidas na Taberna do Rei,
caída a noite no Caramulo e no mundo.
Não sabem o que dizem nem c'um caralho.
Você também é vinho?
Quem é que morreu?
Sempre foi o Xavier?
Foi a ti' Alzira.
Ele não morreu de repente?
48, 50.
Ele era o marido da Celeste.
Eu fui lá.
Ele era embarcadiço.
Ele tem um rapaz.
Ele era padrinho, naturalmente.
Fui lá de noite.
Quando cheguei lá, um esforço do carago!
Foi mu'to aninho.
É por isso que um gajo não é ninguém...
Ataque cardíaco?
Devia ser uma mulher bonita quando era nova.
A Celeste é mu'to parecida co' ela.
A Beta já é mais pai.
A mais nova.
Realmente, um homem novo.
Não fica cá ninguém.
Caramulo, noite de 9 de Novembro de 2006

10/11/2006

Silvio Rodríguez - hoje no Anoitecer ao Tom Dela


Anoitecer ao Tom Dela: 91.2 FM
ou www.emissoradasbeiras.com,
das 20 às 24. Silvio Rodríguez?
Entre as 23 e a meia-noite.
Hoje.

1
Silvio Rodríguez nasceu em San Antonio de los Baños, um vale fértil em tabaco da província de Havana, em Cuba. O nascimento ocorreu no dia 29 de Novembro de 1946. Silvio Rodríguez, o homem e o artista, ainda não acabou de nascer.

2
Silvio Rodríguez é cantor e compositor. Mas o valor que toda a América Latina e o mundo educado lhe reconhecem, incide sobretudo no valor da sua lírica. As letras que compõe, esses versos só dele, são as letras e os versos de um homem para todos os homens e para todas as mulheres. São, por isso, universais. Todos somos unicórnios – azuis ou de outra cor qualquer.

3
Rodríguez nasceu no seio de uma família pobre. O pai era um agricultor do tabaco. A mãe era agricultora e cabeleireira. O pai chamava-se Víctor Dagoberto Rodríguez Ortega. A mãe chamava-se Argelia Domínguez Léon e gostava de cantar boleros em casa. O pequeno Sílvio ouvia a mãe cantar. O destino do menino ficou traçado.

4
Quando Fidel Castro chegou, com os seus barbudos, a Havana, em Janeiro de 1959, Silvio Rodríguez tinha só 13 anos. Eram, porém, anos suficientes. De pronto integrou o entusiasmo daquela multidão liberta da ditadura de Batista, o Corrupto. Em 1961, Silvio Rodríguez participou da campanha de alfabetização popular.

5
Em 1964, Silvio Rodríguez foi para a tropa. Foi durante o serviço militar que um companheiro o ensinou a tocar guitarra. Momento mágico: de pronto, como que de uma fonte invencível, a alma e o coração de Silvio Rodríguez começaram a jorrar centenas de canções e de poemas.

6
Há uma figura que deve ser referida na biografia de Silvio Rodríguez: trata-se de Haydée Santamaría. Foi uma figura maternal e crucial na carreira do cantor. Ligada à célebre instituição da Casa de las Américas, Haydée protegia, orientava e recomendava os novos artistas da Revolução Cubana. Foi na Casa de las Américas que Silvio Rodríguez conheceu outros artistas tão importantes como Pablo Milanés e Noel Nicolá.

7
Na década de 60, o “outro” mundo para além de Cuba andava encantado com os britânicos Beatles. Silvio Rodríguez também gostava deles, a ponto de, como os Beatles, ter sempre tentado inovar na diferença de música para música. É uma coisa extraordinária, de facto. Silvio Rodríguez é sempre diferente da canção anterior, permanecendo, no entanto, sempre igual a si mesmo.

8Continuemos a falar da década de 60, mas de volta a Cuba e à América Latina. Foi nessa década gloriosa que surgiu no universo hispano-americano o movimento da Nueva Trova. Em português, Nova Trova – ou Canção Nova. A “onda” tinha começado na Argentina com o genial Atahualpa Yupanqui. Espalhou-se para o Chile através de Violeta Parra e Víctor Jara. Em Cuba, os grandes nomes da Nueva Trova são Pablo Milanés, Noel Nicolá e… Silvio Rodríguez.

9
Antes de Castro e de Silvio Rodríguez, a música cubana era a do ritmo merengado à la Casino. Merengue e bolero. E coiso e vinho verde. Mas depois vieram os trovadores. E a música de Cuba nunca mais foi a mesma.

10
Silvio Rodríguez é um poeta com a guitarra nas mãos. É um cidadão activo, interveniente, lúcido, crítico e, ainda, … Silvio Rodríguez. Todos deveríamos, talvez, ter outra coisa (ou outro alguém) na vida. Mas se algumas vezes, nem que seja apenas de vez em quando, conseguirmos ser um pouco Silvio Rodríguez, não teremos sido pessoa em vão.

08/11/2006

Jimi Hendrix - hoje no Anoitecer ao Tom Dela



Hoje, na rubrica Filhos da Madrugada (23-24h00) do programa Anoitecer ao Tom Dela (das 20 à meia-noite), há muito Jimi Hendrix. 14 parágrafos-14músicas do grande guitarrista.
91.2 FM ou
www.emissoradasbeiras.com
Jimi Hendrix

1
James Marshall Hendrix nasceu nos Estados Unidos no dia 27 de Novembro de 1942. Morreu novo. Morreu demasiado novo. Ainda não tinha 28 anos quando deram com ele morto, às primeiras horas da madrugada de 18 de Setembro de 1970, num quarto de hotel em Londres. Para trás, e para a frente, ficava a esteira musical e artística de Jimi Hendrix – talvez, de facto, o maior guitarrista de rock, funk e blues de todos os tempos. Nem é favor, reconhecer isto.
0014 THE JIMI HENDRIX EXPERIENCE - AXIS- BOLD AS LOVE - YOU GOT ME FLOATIN’

2
Jimi Hendrix era canhoto, mas tocava numa guitarra para dextros virada ao contrário. Foi um autodidacta. O que criou e o que inovou no domínio instrumental ainda hoje não tem par no panorama da guitarra eléctrica. Jimi Hendrix foi um génio. E morreu jovem – como acontece àqueles que os deuses amam e como acontece àqueles que acabam por amar mais as drogas do que a própria vida.
0006 JIMI HENDRIX – ANGEL

3
Jimi Hendrix gostava de Elvis Presley e de Little Richard. Antes da glória a solo, chegou a fazer parte da banda de suporte de Little Richard. Ambos passaram, por direito próprio, à História. Tal como Elvis.
0003 JIMI HENDRIX – WILD THING

4
Em Nova Iorque a partir de Janeiro de 1964, Jimi Hendrix foi fazendo pela vida. E a vida era difícil. Tocava para outros. Vivia depressa e tocava ainda mais depressa. Às vezes, era despedido. O caminho a solo só começaria em 1964. Quando Chas Chandler o conheceu, a interpretação de Hendrix do célebre tema “Hey Joe” deixou o produtor agarrado à cadeira.
0004 JIMI HENDRIX - HEY JOE.MP3

5
Na Inglaterra e na Europa, Jimi conheceu o primeiro agridoce sabor da glória em vida. Em Londres, não queriam outra coisa. Ele até tocava com os dentes ou com a guitarra nas costas. O tema “Purple Haze” é desse tempo.
0001 JIMI HENDRIX - PURPLE HAZE

6
Depois vieram os tempos tão breves como eternos da formação Jimi Hendrix Experience. A Europa ainda era o território mais favorável ao fabuloso guitarrista negro.
0007 JIMI HENDRIX - THE WIND CRIES MARY

7
Era inevitável que a pátria de Jimi Hendrix, os Estados Unidos, acabasse por dar com ele. Afinal, era ele, quase sozinho, a revolução.
0002 JIMI HENDRIX - SOMEWHERE OVER THE RAINBOW (RARE STUDIO)

8
Um dia, outro gigante, de seu nome Paul McCartney, recomendou a figura e a música de Jimi Hendrix à organização do Monterey International Pop Festival, edição 1967. Jimi Hendrix foi. Foi e arrasou aquilo tudo.
0005 JIMI HENDRIX - FOXY LADY

9
O segundo disco do projecto Experience chama-se Áxis: Bold as Love. A profunda sensibilidade musical e o arrojo instrumental de Jimi produziram mais uma revolução sonora que ainda hoje anda aí pela rua.
0012 JIMI HENDRIX - AXIS - BOLD AS LOVE - 11 - ONE RAINY WISH

10
Álcool, droga e vida não se dão bem uns com os outros. Jimi Hendrix, na curta vida que viveu, fez tudo na máxima intensidade. Mas o máximo era de mais.
0008 JIMI HENDRIX - ALL ALONG THE WATCHTOWER

11
Jimi, Joplin e Jim Morrison pertencem, na História e na Memória, ao tristemente célebre Clube J-27. Todos eram J. E todos morreram aos 27 anos, com pouco intervalo temporal uns dos outros. Deixaram tudo e levaram nada. Como acontece a todo a gente, até àquela que os deuses nem amam por aí além.
0013 JIMI HENDRIX - CATFISH BLUES

12
Quando acabou o projecto Experience, Jimi continuou a ser Hendrix. Formou os Gypsy Sun and Rainbows e depois, e ainda, os Band of Gypsys e os Cry of Love. Mas o que contava era Jimi. O que contava era Hendrix.
0009 JIMI HENDRIX - THIRD STONE FROM THE SUN

13
O pico máximo da popularidade de Jimi Hendrix aconteceu um ano e um mês antes da morte do artista, quando, entre muitos outros temas de registo, interpretou o hino norte-americano com efeitos eléctrico-psicadélico-sonoros que imitavam o som das bombas genocidas despejadas pelos seus conterrâneos na guerra do Vietname. Mas não apenas por isso ele ficou na história da música ocidental do século XX. Ficou porque era o maior.
0010 JIMY HENDRIX - LITTLE WING

14
Jimi Hendrix morreu só, como toda a gente. Mas, como só a muito pouca gente acontece, ainda hoje se fala nele e dele. Foi um grande artista. Continua a sê-lo, na eternidade das gravações.
0011 JIMI HENDRIX - CASTLES MADE OF SAND


Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Jimi_Hendrix

06/11/2006

A Carteira - histª 35 do Anoitecer ao Tom Dela

a emitir
2ª feira, 6 de Novembro de 2006,
em 91.2 FM
e/ou
entre as 22 e as 23h00.


1
Achei na rua uma carteira sem dinheiro. Eram quatro da manhã, eu voltava para casa a pé. Vinha cansado, como sempre, do turno da fábrica. A carteira continha documentos vários. Alguns tinham fotografia. Por não ter dinheiro, pensei que teria sido roubada e depois mandada fora.

2
A primeira ideia foi meter a carteira num marco do correio. Dizem que é costume fazer assim. Mas não foi assim que fiz. Levei a carteira para casa. Tinha decidido passar pela esquadra de polícia no dia seguinte e deixá-la entregue à autoridade. Quem me dera, hoje, tê-lo feito.

3
Por ter feito turnos duplos, tinha pela frente dois dias de folga. Deixei a carteira no pote das chaves à entrada, fui à cozinha comer alguma coisa e deitei-me. Dormi sem sonhos, pela última vez na minha vida.

4
Acordei às onze e meia da manhã e não consegui reatar o sono. Sem grande pressão, a água do chuveiro mal era capaz de fazer disparar o esquentador. O duche foi insípido como chá morno. Quando estava na cozinha a aquecer sopa, lembrei-me da carteira.

5
Fui ao pote das chaves, trouxe a carteira para a cozinha. Fiz uma sandes de sardinha de lata e empurrei-a para dentro com colheradas de sopa. Só depois de ter descascado uma laranja é que abri a carteira. Havia três documentos com fotografia, um talão de hipermercado e um número de telemóvel incompleto. Só tinha oito dígitos. A não ser que fosse o número de outra coisa qualquer.

6
As fotografias eram exemplares repetidos da mesma série. A mesma mulher três vezes. Só depois reparei nos nomes. A mesma cara da mesma mulher com os mesmos olhos e o mesmo penteado tinha três nomes completos completamente diferentes.

7
A primeira mulher tinha carta de condução. Chamava-se Rosa Amélia Paiva Antunes. Tinha nascido no dia 5 de Agosto de 1964 em Lisboa. Morava na rua 1º de Maio, 12, em Setúbal. Poderia conduzir até 4 de Agosto de 2029, mas só veículos da categoria B.

8
A segunda mulher era jornalista. O título profissional chamava-lhe Isabel Nunes Jesus e solicitava às autoridades “todo o apoio imprescindível ao bom desempenho da sua missão profissional”.

9
A terceira mulher continuava a sorrir vagamente no bilhete de identidade. Maria do Rosário Capim Santos era uma divorciada de 1,62 m de altura. Tinha nascido em Faro a 11 de Dezembro de 1967, filha de António Ferreira Santos e de Maria das Dores Alves Capim.

10
Nunca devolvi a carteira. Nem a pus no marco do correio, nem a confiei à polícia. Passo os dias e as noites com a cara dela no pensamento. Já imaginei tudo e mais alguma coisa a propósito do conteúdo da carteira. Se me apaixonei, a culpa é minha. Gostando de uma, não posso evitar o remorso de estar a trair as outras duas.


Caramulo, tarde de domingo, 5 de Novembro de 2006
(29 anos exactos depois de ter , pela primeira vez, visto um texto próprio publicado)

25 de Novembro – Quase 32 Anos Depois

Homens e mulheres debandam a noite.
Cada um por si, esfaqueados todos pelo que chove.
O comércio não tem vergonha, faz a ignição do natal em novembro.
Resistem as luzes altas da beira-rio, ao colo do vento resistem como
duras, cegas laranjas.
O rio é uma veia negra.
A publicidade urbana tem clarões de lingerie.
Um autocarro bale pela rua como um ruminante.
Um carro da polícia, depois um táxi.
Onde é a feira dos ciganos, caixas de cartão e sacos de plástico,
cascas de maçã.
Uma cabeça de gato pontua um vão em ruínas.
Adolescentes derrubaram para nada um contentor de lixo.
Nem meninas-da-noite, nem pela Rodoviária.
O parque é um pano preto.
O táxi encosta, o carro da polícia segue,
como um pirilampo pesado.



Caramulo, noite de domingo, 5 de Novembro de 2006

Clandestinidade – um Filho Dela – uma Canção

Homem furtivo das searas
furtivo homem dos milheirais
lobo na cova das noites claras
raras aos ventos soprando fatais.

A sesta d’aldeia é cega de cal
seg’a tua ideia p’lo bem e p’lo mal
lobo não é homem se for um cobarde
à liça da luz torrada da tarde.

Faz um manifesto
exige um salário
eu presto ou não presto
sou uno e sou vário.

(Sou da minha mãe
do meu pai também
sou da minha mem
do meu pai tambãe.)



Caramulo, noite de 31 de Outubro de 2006

03/11/2006

Ronda Nocturna - histª 33 do Anoitecer ao Tom Dela

Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras
- 91.2 FM -
ou na rede, em
www.emissoradasbeiras.com


1
O guarda-nocturno faz a mesma ronda há mais de duas décadas. A rua não é pobre. O guarda-nocturno recebe gratificações que acabam por superar o ordenado mensal. A solidão profissional permitiu-lhe engendrar uma visão do mundo que só podia dar no que deu – uma filosofia anoitecida, lunar, neutra, implacável.

2
A filosofia do guarda-nocturno não é moral nem ética. A bem dizer, nem é sequer uma filosofia. É mais uma colecção de cansaços, um herbário de repetições. Em vinte e poucos anos, o guarda-nocturno repetiu a companhia do cão.

3
É sempre amarelo, o cão do guarda-nocturno. Enquanto o homem verifica o correcto encerramento das portas, o cão repetido ejacula tiros de urina territorial. Sobem ambos de rotunda, no início baixo, até lá cima à sapataria. O mundo termina e recomeça aí.

4
Às quatro da manhã, o homem entra na padaria pelas traseiras. Tira do bolso um embrulho de papel-manteiga com rodelas de paio e lâminas de queijo. Partilha as vitualhas com o padeiro, que entretanto já tirou do forno o pão grande. Cortam o pão e derretem manteiga no coração fumegante.

5
Depois das seis, o guarda-nocturno cumprimenta as quatro raparigas que regressam ao apartamento de cinderelas de aluguer. Vêm enjoadas de champanhe barato vendido caro, mas têm sempre uma graça e uma nota de cinco para o guarda-nocturno.

6
O guarda-nocturno amanhece às nove da manhã, hora inicial do comércio. Desce a rua com o cão ao lado, cumprimentando toda a gente com um dedo levado à pala do boné. Parece um militar benigno. Depois da rotunda, em baixo, entra na taberna e almoça com o cão.

7
A noite volta a acontecer, volta o guarda-nocturno à rua. O cão morreu. O cão nasceu outra vez – e outra vez amarelo, sabedor dos pontos urinários do território. O guarda-nocturno comprou pilhas novas para a lanterna. Está a precisar de calças e de botas novas.

8
Esta noite, há um anúncio novo no painel iluminado em frente à sapataria. É uma rapariga impossível em roupa interior. Uma mulher-lingerie. Uma cinderela de luxo. O guarda-nocturno não sabe inglês mas pensa na rapariga como se soubesse.

9
O guarda-nocturno abre uma garrafa de champanhe barato. O padeiro admira-se.
– Faço hoje anos, acho eu – explica o guarda-nocturno.
O padeiro brinda com ele e atira uma rodela de paio ao cão.
– Eu lembrei-me – diz o padeiro. – Fiz um bolo e tudo.
O padeiro, o cão e o guarda-nocturno comem metade do bolo. O guarda-nocturno embrulha o resto para dar às cinderelas das seis da manhã.

10
Ninguém guarda a casa do guarda-nocturno. Não é nesta rua, a casa dele. Ninguém da rua sabe onde é. O cão sabe – e é por isso que vai sempre à frente.


Caramulo, tarde de 2 de Novembro de 2006

02/11/2006

Uma História a Sete Chaves - histª 32 do Anoitecer ao Tom Dela

Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras
- 91.2 FM -
ou na rede, em
1
Um homem tinha em casa uma gaveta com sete chaves dentro. Eram chaves que já não serviam para abrir ou fechar portas. O homem tinha ido guardando-as ao longo da vida. A única coisa que aquelas chaves ainda podiam abrir era o passado.

2
Uma das chaves era de cor outoniça, algo entre o ouro e a folha. Tinha servido para desvendar e trancar um casarão que pontificava ao alto da mais alta falésia de uma povoação de pescadores. Era nesse casarão que o homem vivia os invernos. Um dia, o casarão desmoronou-se sem ajuda falésia a baixo. Cá de baixo, na vila, o homem e os pescadores assistiram ao aparente suicídio do casarão.

3
Outra das chaves era verde. Tinha aberto e fechado muitas vezes a casa verde da montanha onde o homem vivia os verões. A chave verde deixou de servir depois de um incêndio que carbonizou até a luz. o homem virou as costas ao fogo e nunca mais voltou à montanha.

4
Havia também uma chave negra. Tinha a letra M em relevo. Com a polpa do dedo indicador, muitas vezes o homem tinha reescrito aquela letra negra. Era a chave da casa da mãe do homem. Quando a mãe do homem tomou lugar na fila do barqueiro, o homem trancou a porta e fez como se a casa tivesse ardido.

5
A chave castanha tinha sido a da casa dos livros. O homem havia adquirido uma sobreloja de casa-de-pasto para conservar a biblioteca pessoal. Os livros subiam ao tecto em silêncio. Quando abertos, os livros rumorejavam como cabos de alta tensão. Uma noite, o homem abriu a porta. O escuro da casa estava povoado de olhos incandescentes. Eram os ratos comedores de livros. O homem fechou a porta e nunca mais leu.

6
A chave encarnada tinha proporcionado ao homem o acesso ao interior da casa da mulher. A mulher nunca saía de casa. O homem levava-lhe comida e revistas. Uma manhã, depois de ter saído, o homem baixou-se para atacar o sapato. Foi então que viu o outro homem abrir a porta com uma chave tão encarnada como a dele. Acabou de fazer o laço ao atacador e fez como se a mulher tivesse chamado o barqueiro.

7
A chave azul era a do café que o homem comprou para ter onde receber gente que conversasse com ele sobre a total desimportância da vida. Uma noite, quando varria o chão e se preparava para fechar a porta, dois adolescentes com navalhas derrubaram-no, limparam a caixa registadora, a estante do tabaco e a das garrafas por abrir. Antes de sair, cortaram-lhe a cara devagar. A chave azul estava do lado de dentro da porta.

8
Também havia na gaveta uma chave de prata. Era prata de lei. O homem achou-a na rua. Não conseguiu imaginar coisa mais desamparada do que uma chave sem direcção. Tinha sido perdida ou abandonada como uma pessoa. O homem guardou-a, nem ele soube jamais porquê.

9
A nossa história está quase a acabar. Estou a escrevê-la num café vazio. Há fotografias emolduradas nas paredes do estabelecimento. Uma das imagens fixa um casarão atento ao oceano do alto de uma falésia muito alta. Outra é o retrato da mãe de alguém. Há uma outra tão bela quão terrível: uma montanha ardendo na noite.

10
O dono do café começou a varrer. Está na hora de fechar. Ele serve a última bebida. Diz que é por conta da casa. Ao dizer isto, ergue o rosto. É o rosto do outro homem, o que entrou na casa da mulher quando o homem das chaves atacava o sapato. Olho a porta do café: lá está, por dentro, a outra chave azul. Em casa, o homem fecha a gaveta. É uma gaveta simples – tal como o passado, não tem fechadura.


Caramulo, noite de 1 de Novembro de 2006

01/11/2006

O Homem de Vidro – histª 31 do Anoitecer ao Tom Dela

Hoje mesmo,
entre as 22 e as 23h00,
na Emissora das Beiras - 91.2 FM -
ou na rede, em
www.emissoradasbeiras.com


1
Trabalho na construção civil há catorze anos. Não tenho casa. Durmo no estaleiro da obra. Enfim, acho que posso chamar casa ao contentor metálico adaptado. Tem uma porta e uma janela. Tem um catre, uma mesa, uma cadeira e uma salamandra em que queimo, no inverno, as sobras de madeira da construção. Vou de obra em obra, de terra em terra. É a minha vida.

2
Levanto-me sempre uma hora mais cedo do que é preciso. Faço café instantâneo e bebo duas chávenas enquanto leio o dicionário. É o único livro que tenho. Gosto de ler as palavras. Leio seguidamente, como uma história. Todas as histórias estão ali contidas. Quando acabar o dicionário, voltarei ao princípio.

3
Às oito da manhã, o trabalho começa. É duro e bom, o trabalho. Aprendi todos os ofícios. Cofragem, massa, electricidade, canalização, pintura, estuque – nada me é estranho. São palavras também, os ofícios. Quando o dia de trabalho acaba, os ofícios voltam ao livro.

4
À noite, vou jantar sozinho. O mundo tem milhares de restaurantes. Escolho um e mantenho-me fiel a ele enquanto a obra dura. Já cheguei a estar catorze meses no mesmo sítio.

5
Nunca tiro férias. Ganho a dobrar, deixo o dinheiro ganhar pó no banco. Fumo uma cigarrilha à noite, junto á salamandra. Se chove, o céu canta na chapa. Não leio à noite. Aproveito o cansaço para dormir sem sonhos.

6
Se chegar a velho, há-de vir o dia em que não poderei trabalhar. O médico vai passar-me os papéis para a reforma, o engenheiro há-de dar-me uma placa de prata com o meu nome e os meus anos de formiga. Quando isso acontecer, arranjo um contentor destes, compro uma terra e levo o dicionário.

7
Talvez eu tenha alguma coisa partida dentro de mim, não sei. Às vezes, quando está muito frio, sinto o corpo como se fosse de vidro. Se me atirassem uma pedrada, estou certo de que me esmigalharia. O que estivesse partido dentro de mim haveria então de confundir-se com o resto.

8
A obra em que trabalho agora é perto da foz de um rio. Vejo daqui a ponte, que é alta e longa. Do cimo da construção, vejo longe. Aviões a jacto traçam um rasto de giz no céu muito puro, muito azul. Nunca andei de avião. De certa maneira, nunca andei. Acontece-me viver a ilusão de que a obra é sempre a mesma, o restaurante sempre o mesmo. Como são mesmas as palavras – e outras, ao mesmo tempo.

9
Aos domingos, é mais difícil. Acordo à mesma hora, leio o mesmo tempo, saio e dou uma volta pela obra. Já me tem acontecido trabalhar o dia todo. A solidão é perfeita como uma esfera de rolamento. Mas ontem não fiz isso. Era domingo. Fui ver o rio. Andei pela base dos pilares. Havia pescadores. Estive a vê-los tirar peixe.

10
No dicionário, a morte vem antes da vida. A vida está depois da morte. Talvez por causa disso tenham inventado as religiões, não sei. Não falo disto com ninguém. Também o mar está antes do rio, ao contrário do que vejo. Esta obra acaba em Novembro. Depois há-de ser Dezembro, que no livro está antes. Talvez eu nasça outra vez. Só não faço ideia que obra faria com outra vida.


Caramulo, noite de 31 de Outubro de 2006

Canzoada Assaltante