Imitação da Rosa
O vento frio parece querer entrar corpo adentro para congelar os órgãos em seus postos de trabalho.
É o que sinto rua afora, couraçado de lã dos pés ao pescoço.
As mãos, enterradas em malha, ronronam de calor, entretanto.
É uma manhã clara como uma fotografia nova.
A luz dirige-se para o mar como uma matinal senhora a caminho da confeitaria.
Os prédios resistem às vergastadas do vento. Este vento nasceu de noite, ontem. Andou pelas ruas desertas. Uivou nos cabos de alta tensão, frapejou a roupa estendida nas cordas dos apartamentos onde divorciados, estudantes e empregados de mesa adormecem pensando nas mulheres improváveis que nenhuma segunda-feira lhes há-de trazer. Não de mão-beijada, pelo menos. Como o vento, cada um há-de persistir, uivar, empurrar para o oceano a luz rica e fria.
Mas isto é hoje.
Ontem, domingo, fui com Estela Seminário visitar a rosa. Deverei dizer A Rosa? Sim: A Rosa. Uma parte do cemitério é roseiral. Não há mármores, datas ou nomes. Só há rosas. É ali que as viúvas dos cremados fazem das cinzas últimas o adubo orgânico com que os maridos se volvem rosas. E eles volvem-se, gratos pelo vento que lhes traz o aroma da foz, lá onde o rio entrega ao mar a cansada água doce que a montanha deu à luz, lá muito longe. Nascer e morrer com uma rosa a fazer de intervalo: eu percebi a mensagem.
Estela verteu uma lágrima suave enquanto redescobria A Rosa que era dela, a que ele era agora, semeada por ela a partir dele: não já o defunto, mas ele vivo de outra maneira, todo despenteado de pétalas carnudas, todo eriçado de mansos espinhos, concentrado todo na tarefa de renascer das cinzas para ela.
Afastei-me um pouco, falsamente atento ao Atlântico fluvial da vista. Olhei as outras rosas: uma multidão rubra de outra gente. Tinham alcançado a graça de não precisar de nome. Eram e seriam rosas. Domingo, segunda-feira: rosas sempre – a eternidade encarnada, vertical de pé verde, macerada de azul e branco e castanho.
Esperei Estela Seminário à porta do campo santo. Fumei no exterior, calcei a luva esquerda, esperei sem pressa nem sentimentos. Amanhã seria segunda-feira, dia-roleta de regressos negro-vermelhos, a bolinha económica a trepidar nas calhas da sorte entretendo a razão.
Estela veio, saciada de domingo. Nunca se engana de rosa, pelo que pude concluir que a memória não é um ofício de historiador mas de florista.
Jantámos devagar num restaurante equipado da tristeza crepuscular dos domingos. Quase não falámos. Ela aceitou um copo de vinho quente, eu bebi água. Era uma boa casa: não tinha tv. De uma aparelhagem oculta surdia um samba lento dotado da mesma qualidade memorial de Estela: a alta fidelidade.
Ao café, estendi-lhe a minha palma esquerda, agora descalça de luva e ferroviada das linhas do destino. Ela tomou-a com a esquerda dela, diagonando meio X sobre a toalha de pano aos quadrados vermelhos e brancos: um empate técnico. Sorriu, alheia: uma missa de corpo presente, pela Rosa ainda.
Respeitei-os. Eu respeito muito bem desde a manhã remota em que se me tornou presente a evidência de que chegar atrasado é uma espécie de vocação.
Conduziu-me a casa. Por pura auto-misericórdia, chamo casa ao meu quarto-com-cozinha-e-chuveiro. Falámos de futebol e de móveis. Alguma coisa tem de ser dita nos regressos. Ainda lhe ofereci que subisse para uma chávena de café solúvel. Nem esperei a delicada declinação. Beijei-lhe a face. Ficou-me no lábio inferior uma poalha de pólen inconfundível: A Rosa vigiava.
Depois, atravessei a noite a voar e tudo se tornou segunda-feira, dia de órgãos congelados, à excepção talvez do coração, essa coisa com que o corpo imita a rosa.
Porto e Leça da Palmeira, 28 de Fevereiro de 2005
3 comentários:
Continuas em boa forma.
A. Leitão
é do melhor que já escreveste. Para ser perfeito, só lhe falta ser publicado n'O ECO.
bjs
Derretem-me com mimos, é o que é.
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