28/04/2022

REGISTOS CIVIS - 110

 

Dísticos - 110




Prevejo bosques de teor pretérito
Fortuitas idas ao hospício-matadouro

Esquecer & ser esquecido faz bem à saúde
À saúde de quem, nem sempre é claro

O ucraniano a par de quem pintei a obra
Esqueci dele o nome, dele a metafísica

Não esqueci o dono da obra que nos pagava
Um bardamerda de calças compradas nos ciganos

Quatro postas de peixe-vermelho
Cozeu em tachito solitário o Arnaldo

Arnaldo nasceu, como Gastão, em Faro
Mas como Gastão não deixou monumento

Proust, no derradeiro tomo da Recherche:
“os verdadeiros paraísos são os que perdemos”

Não pouco me acoima a memória:
Mas mais me acoima, menos me açaima

O amor?
Coma auto-induzido

Urdume de amados finados?
Sim, entreteço & entretenho

Escandindo, vou demudando-me
Em o que fica, pois que não fico

Cediça, esfumada, perispirítica
Em vez de alma, outra película

Especilhando sigo minha vanidade mesma
Faço-o aliás como Mariana Abade: em liberdade

Vou-me a tomar ares:
Pois que também o ar se mede ao litro.

19/04/2022

REGISTOS CIVIS - 109




Gastão - 109

                     

    Domingo passado, 20 de Março, morreu em Lisboa o Poeta Gastão Cruz. Nascera em Faro a 20 de Julho de 1941 (domingo também). Lega-nos poesia de supino quilate. Há muito tempo o não releio. Hei isso que tratar.


 

18/04/2022

REGISTOS CIVIS - 108 (conclusão)

© DA.




    Então, em noite de estupenda precipitação, vão & vêm-me ocorrendo episódios cuja factualidade não posso avençar sem que me cresça o nariz. Miríade de encruzilhadas tracejam o mapa, também ele sideral, do pensamento involuntário. Duas casas em ruínas, a talvez menos de quatro quilómetros uma da outra. Ambas tomadas pela mais hirsuta vegetação. Alguma fauna ocasionalmente as toma também – mas de que espécie(s), ignoro. Já não vive quem decerto me ensinaria muito, se não tudo, sobre isso: Valdemar Manuel Mudo Pereira, engenheiro que foi das Águas Municipais & filantropo de orfanatos. Calou-o um rasgão pericárdico quando, manso & santo, dormia com a amante de quarenta invernos, Angelina Terça Joca Xavier. Resta-me dirigir a minha ignorância em outros sentidos. Arrisco-me a um porvir mais incerto do que seja talvez injusto. Não sei – nem bem, nem mal. Talvez volte a nevar em Coimbra – como aconteceu naquela madrugada de sexta-feira, 11 de Fevereiro de 1983. Nestes mais recentes dois mil anos, mais quinzena menos coisa, muita coisa viu acontecer Coimbra. Sei cá: paixões lúgubres, investiduras manhosas, liberais pederastias, tias pós-menstruais, modernistas tresandando a originalidade-xerox, adoradores de São Miguel Torga, templários de São Manuel Alegre, gajas francamente-ambulantemente-escandalosamente boas, pobres-de-andar-ao-cartão a que ninguém passa cartão, licenciados em a arte de desrolhar garrafões de carrascão, mestrados & amestrados, doutorados sem capelo & capelães sem médico-de-família. (NB: Quando, ali supra, na primeira linha deste terceiro parágrafo, escrevi em noite de estupenda precipitação, não era nem é caso de estar referindo-me, por precipitação, a ocorrência de copiosa pluvialidade. Não, senhor. Ele até nem chove na corrente noite. Não. O ponto está nisto: precipitação é a vocação que tenho seguido em todas as decisões de vital importância nestes últimos quase 58 anos. Sim – esse tipo de decisões que, precisamente por importantes & vitais, prescreviam o antónimo de chuva, perdão, de precipitação. Mas olhai:

    Nenhum médico me dá por tão-só quinze dias
    Nenhum fideputa morigerador me isca anuências
    Que eu não sou paspalho de aquiescências
    Não sou quem poderia , é certo – mas há mais vias.
    Mais vidas, não: isso não há – nem Inferno ou Céu.
    Mesmo morrendo-se vestido, nasce-se sempre ao léu.






04/04/2022

REGISTOS CIVIS - 108 (segundo parágrafo)

 

Era pela alva, chegava em púrpur’anil o barco-correio. No quarto da sobreloja que eu então habitava, surdia baixinho a radiofonia: Mahler, primeiro; Seixas, depois. Eu despertara muito cedo, saciado de me fingir defunto. Preparei chá forte, comi um ovo, tomei dois dedos de conhaque-nacional. À cabeceira, os sonetos da Espanca, a trágica irmã-de-seu-irmão. Enleado daquela autoridade que resulta da indiferença (não digo desdém) das/pelas coisas minhas coevas, era só por parlapaliteraturice que me acudia o intróito – Era pela alva, chegava em púrpur’anil o barco-correio. No patim do meu prédio, vigorava um festão de hortênsias. O nome de tais flores recordava-me sempre (e aqui nada minto, pois que a mais casual menção ou o mais efémero avistamentos delas me o recorda) a pungente história do atropelamento mortal de que, uma eternidade antes, fôra vítima uma menina de cerces vinte anos, Hortênsia chamada, bonita, operária, irretornável. Escrever-lhe o nome é, em meu imo, como matar a fome com água. Entristura-me, põe-me merencório, sentimentalona-me, esfrangalha-me o viço. No ano em que meu Pai nasceu, 1917, parece que Florbela deixou o marido, largando de Évora para Lisboa. Eu, nesse então, ainda me não sobrealojava, sozinho como um cão-de-louça numa exposição de relógios, naquele recanto desta Cidade por onde António Nobre ocasionalmente ambulava ruminando o seu incipiente neogarrettismo pintalgado de parnasiana profissão-de-fé. O ano 1917, penúltimo da Primeira Grande Guerra, é todavia um marco-fanal para mim. Pessoa nem trinta anos perfizera. Proust era vivo & já publicado. Joyce também respirava. Descarregaram as malas-postais, os marinheiros desembarcaram, foram beber ao Café Estuário, a cujo limiar pontificava a vendedeira de caranguejos e de pichas & de percebes frescos como gotas marinhas em manhã pluvial. Aquele caso lancinante de Hortênsia terá sido há uns (pelo menos quase) cinquenta anos – já nem Florbela, nem Fernando, nem Marcel, olha, olha, olha. (Mas, ilusoriamente embora, mais retornável este trio do que a donzela operária que um camião esmagou ali perto de onde o meu Irmão Zé Daniel teve oficina artística.) E então:



Canzoada Assaltante