26/06/2014

Rosário Breve n.º 364 - in O RIBATEJO de 26 de Junho de 2014 - www.oribatejo.pt

Do Zé, agora Beatriz só

Nunca vivi abaixo das minhas impossibilidades.
Um homem é um homem, não se quer outro.
Relanceando sem dor nem euforia o baralho de pretéritos com que destrunfo a bisca do presente, o mais é serenidade.
Alinho com Ángel Crespo quando ele diz que “entre a mentira e a verdade se encontra o certo”.
Não minto, por exemplo, quando, às seis e meia da manhã, no Café da minha rua que abre mais cedo, dou e digo os bons-dias a quem madruga como eu. Escrevendo, cuido não errar, sempre que prefiro a claridade à clareza: todos nos pautamos por cifrado pentagrama próprio, codificada a experiência, apurado o gasto, expurgada a bílis da desesperança.
Canhoto de mim mesmo, ao espelho só. Ainda ontem, egresso do muito que chovia em virtude do ambular por galeria coberta, colhi mil-e-uma coisas que ao olhar volvem dextro e contente: o cavalheiro de chapéu alto & lentes fumadas a azul-de-teatro que rescendia a século XIX; a mulher (também alta e também azul) cujo balcão peitoral me semelhou um tabuleiro de nata pontificada por dois sumos morangos pontudos; duas grávidas trocando risadas à beira de uma carrinha funerária vazia; uma velhota portando uma rede de laranjas, estas e aquela consumando dois ciclos da terra; e uma revoada de pombas em esquadrilha bem mais ordenada do que estas linhas.
E tudo isto, entre verdade e mentira, para vos esconder que fui ao funeral do Zé Martins na segunda-feira mais recente das nossas vidas. Não queria, todavia posso contar-vo-lo.
Era por uma jornada de Verão pelo calendário – mas de Inverno nós adentro. Chovia que se não fartava. De manhã, os céus haviam desabado num fragor de fúria eléctrica, insana, poderosa, inútil. A tristura de canário do cenário reiterava a impensável morte do nosso Zé Martins, o de olhos claros herdados da filha Beatriz, o Zé a quem queríamos como a um irmão se quer. Entre nós-amigos-dele, ante o descalabro da má-nova, dera-se a fritura de telefonemas alquebrados, partidos pela medula, em uma partilha de vãs indignações contra o despropósito do Destino que no-lo roubara – ou do Diabo, ou da falta de Deus, por ele.
À saída do campo-santo de Chelo, e porque aquele último dormir dele é em serra não baixa, o Luís, o Zé Alberto, a Ana Cristina e eu fomos confrontados pela massa de vapor que obnubilava a aguda geometria de ângulos do panorama: uma nuvem rasa que tão depressa apagou a gravura como, de si mesma extinta, tudo de novo deixou clarear. Vimos aquilo, viemos nisto. Deixámo-lo lá, ao bom Zé, a sós consigo e por desconta própria.
Agora que isto escrevivo, é, para mais, de tarde – e agora é tarde de mais.
É verdade que sempre temos a Beatriz.
E não é mentira que por coisas assim prefiro a claridade à clareza, dentre as minhas impossibilidades.






19/06/2014

Rosário Breve n.º 363 - in O RIBATEJO de 19 de Junho de 2014 - www.oribatejo.pt




Allein zu Haus

Duplo azar de Fábio Coentrão: lesionado nos brasis da bola, aconteceu-lhe, no mesmo dia em que regressou a Portugal, acabar descobrindo que não estávamos cá – tínhamos “regressado aos mercados”. O brioso ala-esquerda do Real Madrid (que está para a carta de condução como o Relvas está para a licenciatura académica) deu por si sozinho na aerogare da Portela. Nem taxistas havia cá fora. Nem sombra de bilhetes do Tesouro para desbaratar nos chineses. Apreensivo, rumou a Espanha. A pé, não fosse por aí restar alguma GNR-BT.
Entretanto, no íntimo público daquele Partido a que por piada chamam “Socialista”, o respectivo Directório analisa cada milímetro táctico-estratégico de Paulo Bento. É isto que eles querem apurar: se (também) o seleccionador nacional percebe de descalabros com os Alemães, não irá ele precaver-se com o inócuo Hélder Seguro Postiga em vez de arriscar com o já-se-viu-que-se-aleija-logo Hugo Costa Almeida?
E agora aquilo do Pepe. O Pepe: esse grande lusitanista. O Pepe: esse nosso continente-e-ilhas-do-minho-até-timor. O Pepe: esse perfeito marinho-e-pinto de calções e chuteiras fluorescentes tão perito em usar a cabeça menos para pensar. O Pepe, enfim, somos todos nós – menos dez milhões.
Agora a sério para gente séria, só me ocorre dizer que tanta euforia falsa só podia resultar em tristonhice macambúzia de cachecol rubro-virente ao cachaço. Nem no tempo do Morcego Eunuco de Santa Comba Dão o futebóleo oleava tanta alienação de massas. Tanto desempregado comovido de patriotismo até à raiz cardíaca das lágrimas. Tanto reforma(fornica)do a interromper o Alzheimer para se lembrar do Varela ao lado do Éder, em vez da teimosia no Postiga ao lado do ninguém de si mesmo. Tanto barão do PS a dizer que então ao menos o Neto no lugar do Pepe, o Ricardo não porque também é Costa.
Como as areias mais finas pelos interstícios menos calafetáveis, o circo popularucho do “jornalismo” tudo invade. A RTP não dispensa o desdentado da rulote de bifanas, que pensa ele do coiso, o Meireles. A SIC rapta a velhinha que ia ali ao centro de saúde que já não há para apurar se, sim ou não, não terem levado o Quaresma fez mal à Páscoa. A TVI grunhe aleivosias caralheiras contra o árbitro que tão ruipatriciamente nos calhou. A CMTV, idem. A BolaTV, aspas.
Será ingenuidade minha, mas acho mesmo que, a seguir a cada jogo da Selecção (dita) Nacional, as televisões, as rádios e os jornais deveriam correr as esplanadas e fazer perguntas tipo:
– Acha que foi justa a derrota dos direitos laborais?
– Contava com esta goleada no IVA?

– Concorda que com o Eduardo ou o Beto o IRS ainda estaria pior?
– Acha que, por já ter 29 anos, o CR7 deveria ficar sem metade do rendimento?
– Vossemecê não acha triste que andemos todos por conta do “empresário” Jorge Mendes?
– Está à espera que o “regresso aos mercados” nos faça voltar em grande contra os Estados Unidos?
– Não era para si evidente que no Alemanha-Portugal a Merkel só lá foi para ver como se portavam os ’taditos dos coelhos?
Eu sabia que ia ser assim. Toda a gente sabia. Mas tanta “reportagem”, tanto “popular”, tanta merda sobre a bola – enjoa. Um jogo tem 90 minutos, 120 às vezes. O antes e o depois disso – são palha para burros. Espero que a Selecção volte depressa para casa. Quero a crise de volta. Quero a indignação de volta. Que é como quem diz: quero que Portugal volte a Portugal.
Os Alemães que joguem com os “mercados”. Sozinhos, como o Coentrão lá na Portela.


12/06/2014

Rosário Breve n.º 362 - in O RIBATEJO de 12 de Junho de 2014 - www.oribatejo.pt

Rua 1.º de Maio, Pedrulha, Coimbra. Foto de Luís Borges

Uma vez só

Na Rua onde a consciência da minha vida se deu em pertença ao mundo, existiam o senhor Elói e a senhora Celeste.
Ele era sapateiro em casa.
Ela dava injecções por fora.
O vinho dele era manso. Nunca fazia as cenas tristes dos bebedores sem conserto.
Ela era ladina e legítima. Parecia uma rosa frágil, mas era forte e rosa na mesma.
Geraram entre si vários rapazes: correctos todos, educados todos, todos e cada um homens já desde meninos.
A senhora Celeste foi dos dois a primeira a morrer.
(Na morte, é-se sempre o primeiro, alguém disse. No nascer, sempre o último, antetizo eu.)
Talvez por achar que o mundo e os sapatos que há no mundo deixaram, como o vinho de tantos outros homens, de ter conserto, foi em desconcerto que o novo viúvo se achou.
Deixou apodrecer a barraquita onde tantos anos remendara, cosera e assolara os calcantes pobres dos pobres seus vizinhos. Passou a beber (de) mais. O vinho da viuvez amargava-lhe a opinião.
No exílio do desamparo, sem filhos em casa, mal comia um bago de arroz. Julgo que o senhor Elói vivia de ovos cozidos e de figos esmagados em farinha para bebés. Gostava de nozes, mas também os dentes o tinham desertado. Como o vinho não tem ossos e não há por isso que roê-los, sustentava-se de uva-mijona ao preço-da-chuva em copo-de-três.
Nunca mais lhe bateram à porta – nem para colar um tacão, nem para pedir à mulher uma inoculação de soro milagreiro contra a humidade dos ossos, a secura do coração ou o ramerrão de tanto ontem à janela do amanhã.
Ele habituou-se ao lusco-fusco do vinagre de continuar vivo.
O rosto dele adquiriu aquela esponjura roxoviolácea cuja purpurina não engana ninguém.
Ele era porém, como até ao fim haveria de ser e foi, igual ao que fumava: um português suave definitivamente provisório riscado pela pederneira do silêncio no escuro da caixa-de-fósforos do quarto antigamente conjugal.
Gracejavam com ele a propósito das vacas-magras que o seu Sporting há demasiadas épocas apascentava. Ele sorria, contente de o terem presente. Mas de verdade não tinham – era só um viúvo só, um remendão que bebia e já nem remendava nem se emendava, um que lavava e cosia as próprias meias. Se ele fosse de destempero vindicativo, vingar-se-ia com o uso e no porte dos sapatos mais bem recauchutados da Rua e arredores. A graxa que ele caminhava, impecável e lustralmente acamada no couro velho das botinas antigas, era de outra coruscância.
As grandes e vitalícias chuvas de Março reiteravam o novembro-perpétuo da casa do sapateiro, nela percutindo a vidro a melopeia do não-mora-aí-ninguém-aí-não-mora-ninguém.
Era uma casita de fileira operária, ao alto do charco que dragaram para construção da mercearia do Licínio.
O sol claro do claro Junho, a lua próspera do sardinheiro Agosto e a nostalgia sideral da irredenção de Janeiro eram os recipientes naturais deste homem confirmado e conformado em solidão, daquela solidão mais sozinha que range móveis até nas saletas vazias.
Nunca o vi com um livro – talvez porque o instinto o fizesse saber que faria parte de um, este.
Sei que nunca permitiu que se oxidasse o estojo metálico em que a senhora Celeste descansava a seringa esterilizada. O que nele se oxidou foi outra coisa: talvez a consciência, talvez a vida, talvez a pertença, talvez o mundo.
Ou tudo junto nas apenas três letras de Rua.
Essa mesma a que tornarei também um dia.
E não há-de ser para viver, porque nem este verbo se difere nem se repete – e porque em e de alguma coisa hei-de, finalmente, ser o primeiro. 

06/06/2014

Rosário Breve n.º 361 - in O RIBATEJO de 6 de Junho de 2014 - www.oribatejo.pt

Sei onde está a Maddie e digo como chegar a ela

1. Julgo ser acertado afirmar que: ou passamos a vida a contrariar a Infância, se ela nos foi feliz, ou a reiterá-la, no caso de triste. A Maddie ter-se-á safado de ambas as hipóteses. Ou não. Se calhar, não foi ela quem desapareceu. Se calhar, fomos nós.
2. Esmaltados a azul-cerúleo eram os púcaros de folha por que bebiam café de cafeteira caseira as mulheres da Praça. Derredor do núcleo de bancas com coisas de comer, respiravam cor e cheiros sãos as tendas com bonés de caqui, quicos de palha, leques de fantasia à espanhola, ferramentas de brincar, bolas de borracha, corta-ventos de lona. Bancas de mármore alinhavam a perfumaria de prata dos peixes. Do ar amplo sob a abóbada diáfana, chegava a fragrância do frango rodando no espeto como o ponteiro dos segundos. Aquilo era toda uma profusão de bolos crestados a açúcar fino e a amarelo-ovo em moldura de linho grosso: chegava a ser preciso enxotar deles as pombas do futuro, estas que ora mesmo espero no Jardim como estátua ázima trazendo de alhures o pão que ninguém quis. Ninguém, isto é: nós, os desaparecidos.
3. Os pais da minha geração nunca nos deixariam, nem nos deixaram jamais, a nós tão pequeninos, em casa sozinhos para ir beber copos fora. Os dentre nós portadores de infâncias felizes não sofreram, por assim dizer, de mccannização parental. Por isso me custa tanto compreender por que raio não foram os dois pequenitos extra-Maddie entregues à criação de e por famílias responsáveis. Nem por que espécie não foram, logo ali e no acto, presos os McCann. Que eu saiba, os pais do Rui Pedro não fizeram da desgraça profissão.
4. É o que V. digo: não foi a Maddie a desaparecer. Quem desaparece, são os jovens enfermeiros portugueses. São os investigadores da ciência. São os nossos assentadores de tijolo. É o que e é como V. repito: não foi nada a Maddie. Condenados ao avesso da Infância, resta-nos o orfanato da distância.
5. Vale, ainda assim, que desta pátria badameca nem todas as crianças desaparecem. Um senhor chamado Barra da Costa elencou alguns casos felizes. O rol ciranda pelas redes (ditas) sociais da net. Indica ele que, só no Ministério da Economia, há oito petizes muito mas mesmo muito felizes. Nenhum deles chegou aos trinta. Anos. O Joãozito Miguelito Folgado Verol Marques, por exemplo. Tem 24-anos-24. Aufere, o brutinho, o vencimento mensal bruto de 5.069,34 €. Chamam-lhe “especialista/assessor”. (Como se alguém pudesse, sem se chamar Leonardo, aquele de Vinci, aos 24 anos, ser “especialista” seja do que for…) Na secretária ao lado da do Joãozito, batem palminhas-no-ar os outros sete patinhos-que-sabem-bem-nadar. Entre eles, a Anita, que é da Conceição Gracias Duarte. Também ela, aos 25-anos-25, é “especialista”. E vence a mesma brutidade que o Joãozito leva para casa. Abençoada. Abençoada infância. Abençoadas velhas juventudes partidárias.
Já no Ministério da Agricultura, a Joaninha Mariazinha Enes da Silva Malheiro Novo está muito chateada. Recebe menos um cêntimo do que limpam por mês os supra-referidos seus comparsas da Economia. E já tem 25-anos-25, essa por igual veterana “especialista”. Ingrata! Bem mais amarga razão de queixa há-de ter (e tem) o Ricardito Morgado do Ministério da Educação e Ciência, cuja apressável mas inapreçável “carreira”, aos 24-anos-24, não lhe rende mais do que os miseráveis patacos perfazedores de 4.505,46 €. Como fará ele para gelados e downloads do Justin Bieber é que eu não sei.
5. De modo que, enquanto eu, de pão d’ontem no saco, acumulo o bolor de infante velho à espera de pombas que não prometeram vir e na antemão de um futuro que hoje não há-de chegar amanhã, acabo por deslindar (e à borla, sem querer e sem scotlandyards-de-inglês-ver-e-português-pasmar) o paradeiro da Maddie: estará, viva e gordamente remunerada à nossa custa, nalgum desses ministérios coelheiros. O rostinho loiro de abandonada deu lugar a uma photoshop de cartão-de-jota (S ou SD, que o parasitismo juvenil não distingue letras). Pois: desaparecer, desapareceu – mas pouco.
Já quanto à verdadeira Infância (pelos menos a minha), é o que dela V. garanti antes e acima: foi-se no éter, como eu próprio agora vou, enxotado qual pomba que não chegou a vir ao pão da crónica.

Canzoada Assaltante