Numa manhã antiga, há muitos anos, o vento das oito horas trouxe consigo uma chuva que eu não tinha pedido. Bastou pôr os pés na rua para que o resto do corpo se visse devolvido a essa condição lamentável da mortalidade. A ponte era pequena e mostrava os ferros do esqueleto. Os carros emergiam da névoa como peixes atónitos. Não era fácil estar vivo na antemão de tantas leitarias despojadas. Apesar de tudo isto, no entanto, não estranhei. Se de menino te fizeram mamar o leite da lírica, o remédio é não pensares na cura, que não há, para o mal de viver. De modo que me botei ao caminho. Não tinha rumo definido. A pele que me levasse embrulhado dentro por esse mundo, essa manhã, essas leitarias,
Pelas nove e tal, as coisas começaram a acontecer. Primeiro, as lagostas. Viviam, até que, num aquário de restaurante. As lagostas, como se sabe, comunicam por antenas como as televisões e as formigas. Comunicaram comigo. Escutei-as pelo mero recurso aos olhos. Disseram-me que tinham habitado, outrora, um mar temperado onde o único remédio era viver sempre. E que isso, agora, já lhes não bastava. Que decerto ia aparecer um empresário com a família para as comer. Eu fiz assim: fui-me embora.
Segundo, a chuva pôs-se a cantar no chão uma melodia perfeitamente solfejável. Era um tema lento, no compasso de C cortado tão próprio dos slows de bailes de província. Como eu não sabia a letra, fiz como com as lagostas: fui embora.
Terceiro, pus-me a sentir a ansiedade evidente do ar. Havia névoa, jornais, um perfume de axilas de celulose. Havia as minhas botas como se não houvesse mais nada. Entrei num salão de bilhar. Estava deserto. Uma das mesas tinha as bolas todas iguais, como se os últimos jogadores fossem cegos. E então, já na rua, tomei conta de que há quase duas horas não via ninguém.
Encontrei uma cabine telefónica. Marquei uma chamada de longa distância.
- Filho, onde estás?
- Estou na Figueira, mãe.
A Linha do Oeste (Figueira da Foz), 27 de Outubro de 1996
Sem comentários:
Enviar um comentário