28/02/2010

Um Pouco de Tudo Quase Nada (II)

II



Agora é ’inda a vida, a constância ainda das leis.
Presidem todas ao futuro equívoco que a tanto quanto é passado corresponde.
É preciso ter no cérebro as cores, tal que o mundo a preto-e-branco não aniquile antes da hora orquestral respectiva de cada pessoa.
Na mesa rente à banca dos jornais, dois jogadores de tabuleiros trocam gestos e peças e rodadas e pouquíssimas palavras: tenho feito o mesmo, mas sozinho.
Uma hera natural serpenteia a trave do tecto, cujo verniz não se estilhaçou ainda.
Gradação de azuis derma a parede: mais escura a metade de baixo, mais clara a de cima.
Aquele homenzito de camisola roxa parece muito fatigado, semicerram-se-lhe as pálpebras, são-lhe pensativas as mãos.
Gentileza e cordura de frases fazem bem à relojoaria psíquica, mais a mais num café sitiado pela chuva da noite de sábado.
Muita chuva: magnífica ablução de cristais.
Delícia observatória: uma mãe de rosto equino, crina muito preta e comprida, pele que às moscas estremecera se moscas houvera – sustém ao colo uma criança rosada como um presunto, toma café entre ralhetes ao homem, um pequenito operário que ingere um conhaque nacional benzido pela arte cáustica da lixívia.
É um tipo magnífico, portuguesíssimo: gente da nossa, gente que 25dabril algum pode resgatar da falta de livros e de perspectivas.
Mas o menino pode vir a ser doutor, o que daria no mesmo.
Trabalho neste cartório, por assim dizer, há quantos anos posso, certidões extraindo à prodigiosa pobreza do mundo.
Uma pessoa de mínimo juízo acaba preferindo Ferreira de Castro a Fernando Namora – por isso mesmo que pois como não?
Estive uma vez em casa do pintor Lima de Freitas – diz-se que já morreu (ele).
Crina maravilhosa, a da mãe-égua, palavra de honra!
Ei-la à máquina desmoedando um maço de Águia.
Deixa a criança abrir o maço: de pequenino se torce o nicotino.
O homem dela tem um casaco de antílope de Taiwan.
A criança veste plásticos comoventes de bonequinho natalício.
Os ciganos ainda não chegaram.
A égua funga e fuma, no intervalo dos ralhetes ao homenzito dela, que é pequenino e pequenino e de mãos entarameladas de bodum.
Há ou não há uma glória triste?
Há.
Viver um pouco de Eliot e um pouco desta consagrada família: quanta multímoda beleza: a bloomsburyzação do T. S. e o fungar líquido desta mãe-de-corrida casada com aquele ponyzito: quanta multímoda beleza!
Um cigano, finalmente.
Alguma vida ainda para registo do milénio incipiente, sua comezinha historicidade, sua relicária miséria.
Entre os produtos expostos para consumo na Casa, Yeats e Char, Morante e Sarrazin, Ferreira de Castro e, vá lá, Fernando Namora.
Sobrevoada a geral pobreza, em algumas casas vigora o candeeiro do estudioso: o cinquentão que confere a facturação da semana, a cabeleireira casada com o toxicodependente que a rouba, o engenheiro jovem que se resigna a dar explicações de matemática à falta de melhor, o fixador de escrituras que se promete uma semana em Punta Cana com a mulher do outro, o egresso de Oxford que recusa aos Franceses a Alsácia e a Lorena.
Uma das leis relativas à Felicidade remete para certas horas vividas na cozinha aquecida, lá fora o General Inverno peneirando pessegueiros e choupos e oliveiras e cabos de alta-tensão, quando a figura da Mãe organizava o calor, os abastecimentos, o serviço, a disciplina, a Língua Portuguesa de há meio século ou mais e o presente eterno da tal Felicidade mesma.
Não há excepção a esta regra casuística em caso de vir a ler-se Roman Jakobson e Adam Schaff e Gérard Genette e Daniel Boorstin e Eduardo Lourenço: desde que, também, se não ande por esses cafés de província a falar nisso, sobretudo quando chove e dá o Leixões-Benfica na televisão dita pública.
Beleza de exposição de refrigerantes, licores, aperitivos sólidos, frascos de sucedâneos cevada-café, revistas, a Hera na Trave, mulheres de porte cabeçal equídeo.

Um Pouco de Tudo Quase Nada (I)

Souto, Casa (I), e Café Ripa, Pombal (II a VII), tarde e noite de 28 de Fevereiro de 2010





“Vive-se de pouco, um pouco de tudo, nunca muito de nada (…)”



Eugénio Lisboa, A VOZ CICIADA (Ensaio de leitura da poesia de Rui Knopfli), Agosto de 1977 (sobre 1972 e 1973), posfácio a O ESCRIBA ACOCORADO, Rui Knopfli, Círculo de Poesia / Moraes Editores, Lisboa, 1978










I



O morto futuro vive agora em cada vivo.
Violento violeta aura o passeio, o perfil dos prédios.
É pelo sábado afora, tem faltado a luz.
Só a beleza e a desesperança não dormem.
Claros foram sempre os sinais da escuridão emanados.
Estes homens são polícias, rouba-os o Tempo.
Não podem prendê-Lo, coitados, passar-Lhe um auto.
Ninguém, suponho, nas praias.
Afinal nascer era para isto.
Depois de chover, baço o céu, os ramos das oliveiras escrevem.
No Japão as casas são de papel, a minha também.
Às vezes vou ver os comboios, sólidos rios de ferro.
As mulheres são todas floristas, botânicas todas.
Em Viseu pelo menos eram, em Pombal é igual.
Fervi água, a água a ferver toca a voz da chuva dentro de casa.
Outras vezes o silêncio da casa é todo Garbarek na cabeça.
O vento dá nas cordas da roupa, as camisas dançam crucificadamente.
Conheci os homens, mulheres os detinham e alimentavam.
Sempre assim foi, mais o acho quão mais os leio.
Lojas abrem falência, da rua vistas são mais tristes as prateleiras vazias.
Aves exóticas, os casais estrangeiros visitam o nosso sul irremediável, a nossa tauromaquia obsoleta, os nossos resortes de imitação-dubai.
Sábado adentro, os futuros defuntos presentemente.
Proíbam os tigres de circo, não os de cama.
Verifico e versifico as leis, não sirvo para mais nada.
Linhas altas levam o olhá-las de baixo.
Agora não é Setembro, nada doura nem arruiva, os sucessivos céus metalizam os dias, pernas nervosas varam o vento violento como a sanguínea violeta é cor ou flor ou ferramenta de música, o sábado é um pano molhado atirado à cara, casais caiados demoram um pouco mais a eternidade, esquecer ajuda a sobrevivência dos mais felizes.

Nova Corrida Nova Viagem à Cidade de Leonor

© Sandra Bernardo – Caldas da Rainha, 2 de Fevereiro de 2010-02-28


Viagem Souto-Caldas da Rainha, tarde e noite de 23 de Fevereiro de 2010





1. SOUTO-CALDAS

Uma viatura muito amarela dos sapadores florestais iluminou a tarde, que decaía e era de chuva. Das colunas da estação-de-serviço tossia uma música horrível qualquer, destas de agora que as máquinas tocam sozinhas, no caso uma imitação de Sonny & Cher. O burrinho, o homenzinho, a carroça e a motorizada – diz aquele sinal dos desenhos – não podem ir por este IP como nós vamos. Bonavia é serviço trailer. Intercentro passeia gente. A rádio agora vai passando tudo o que um homem quer, a loira e a morena dos ABBA. Um Peugeot 307 cor-de-pombo-velho, um camião azul com Anguiano escrito na testa. Ambulância dos Bombeiros Voluntários de Alcobaça ultrapassa-nos a speedar. Os bosques laterais são de cada árvore cada sentinela da respiração das outras. Mutti assegura Transporti Nazionali e Internazionali. São Bartolomeu de Messines cruza o que penso, mas nunca lá fui, que me lembre. Camião Norbert Dentressangles (toldo vermelho). A terra subiu e o céu desceu: óptica do temporal suspenso sobre a Península. Uma carrinha da Prosegur também muito amarela. A cinza é perpendicular ao mundo. A muita humidade escurece muito as muitas árvores. Mas por minutos a rádio deixa-nos ser sultões do swing. As leiras cultivadas não, mas as casas expostas parecem rebordadas a amargura. Um Focus cinza-metal. Servibérica é furgões isotérmicos. Rotom repara paletes. Lizdrive é Ford. Goldporta é especialista em acessos automáticos. Um camião diz-se Forever 450. Uma vivenda de cabeça bicuda como certos pássaros dos documentários da televisão. Caixotes habitacionais muito deprimentes, até de fora. Às vezes, infantas e infantes à janela deles. Flâmulas ondeiam altas. Sarvinhos, Airoso, Rota do Sol (mas que é dele?), Aki, Barloworld Stet é CAT. A língua torrada de café, os pórticos das fossas nasais queimados de ar frio. Isto em que o corpo de cada um se vai volvendo. Se fosse possível reordenar uma crestomatia furta-cores de tudo o que cada um de nós leva visto da vida – que livro caleidoscópico de maravilha. Escoltado por eucaliptos altíssimos, o caminho-de-ferro almeja o Oeste. Ela ama-me, garantem-mo os Beatles. Existir não é quanto basta para vencer viver. Santo Tirso e Moimenta da Beira acampadas por outros estios durante outras gerações. Pataias e Martingança, antigamente traficava-se muita droga por tais aragens e seringagens. Alphaville em Portugal, talvez em Março próximo. Lemos escritos a verde-garrafa(l) em camião rumo ao Norte. Dizem que a Kim Wilde agora é floricultora premiada. O V perspectivector do horizonte rodoviário culmina em um céu compacto de tão plúmbeo, também cor-de-pombo-velho. Os coices gástricos da esperança contemporâneos dos do desespero. Queda de neve a partir dos 900 metros de altitude. Alfredo Mercúrio, de Zanzibar, era o Grande Fingidor, pouco importa que haja ou não haja chupado a palhinha para atracar de popa. Além, um outeiro coroado de pinheiros-mansos. Um casal amarelo de primeiro-andar num casario de brancas térreas. A pálpebra nublada abre um olho amarelo de que chispam raios de litografia católica. Mais além, longe, há-de ser Peniche, istmo de que são co-autores o grande mar e o muito vento. A rádio freme-freme toda com os Spice Boys, por assim dizer, de há quatro décadas quase, vulgo Village People. (Mas isto de escrever versos também sempre foi um bocado freme-freme.) Serralharia Marques Isabel, Lda. Brasilândia Snack-Bar. Inofensiva fúria verbal acalenta o corpo. Elton John no éter da sintonia: começo a desconfiar da alma que põe os discos lá no estúdio. Sagilda é sabões com garantia industrial. Viver não é gratuito, mas viver mais barato é-nos prometido por E. Leclerc, um senhor que deve ser francês aqui (finalmente aqui) das Caldas da Rainha. Nisto, George Michael.

2. MENINO-QUE-CHORA AO PÔR-DO-SOL

Se este Vosso amigo fosse, em vez de pretenso poeta, pintor, a pretensa poesia dele seria pintura de pôr-do-sol, de menino-que-chora de quadro de feira. Ele sabe – e eu sei-o e digo-o por ele. Isto não há nem tem que enganar. Uma pessoa mete-se a poeta, apesar de já haver um Cavafy, um Machado, um Pessoa, um Lorca, um Crane, um Thomas, uma Pizarnik – e se calhar faz mal, porque o ofício está feito e a missão, cumprida. De modo que entardenoitece à força toda nas Caldas da Rainha, que D. Leonor quis termais. As caldas e as monarcas sempre se quiseram umas às outras. Uma rapariga de mamas e barriga Michelin emborca, grácil, uma imperial bem tirada. (Sempre que escrevo “imperial” como copo de cerveja, recordo Ruy Belo em Esposende a ver desaguar o Cávado e recordo as traduções da Colecção Vampiro do Maigret.) Um homem chamado Pietra, de juba viçosa e prateada, conforta um rapaz triste não sei porquê. As costas de um bebedor de balcão garantem-me que Rehau ® é Unlimited Polymer Solutions. À espera do Rui Correia, que aumentou em uma Leonor o agregado populacional da cidade termal, no 120 Bar, ao Largo 5 de Outubro. O Benfica serviu 4 a 0 ao Hertha Berlin. Uma espécie de paz fria embalsama os e as circunstantes. Deve ser um sítio de benfiquistas moderados, este 120 Bar: a efusão foi muito cívica. Além de que o treinador encarnado se chama Jesus, o que só suaviza o milagre de tanta cordura, tanta retenção na fonte. A caminho de esta mesa, vi a empena da gare ferroviária. Passei por formigas toxicómanas: íris hepáticas, dermes bronzeadas em solários poeirentos, uma espécie de raiva esmoler na mímica, uma desgraça pegada. Também passei por casas de mármores & granitos, louças & faianças, alcatifas & seguros. Esta terra tem de tudo – é como as outras, tirando a nova Leonor. E é passando que deixo de importar-me de mais com isto do menino-que-chora ao pôr-do-sol. Atiro à Língua como todo o homem atira às bolas de naftalina no ralo dos mictórios: para fazer rodar. A invernia não se faz nem desfaz num dia. E nem todos os caminhos vão louvar a Roma. Este mesmo entardenoitecer, espuriamente distraído, veramente vogando já por rias e ruas de Caldas de D. Leonor(es), ocorreu-me uma destas imprestáveis certezas boas apenas para limiar de crónica, esta: – Os pais educam-nos todos para James Bonds, acabamos quase todos Zezé Camarinhas. – O olho esquerdo daquele senhor é nublado de glaucoma. Na saca (na minha sim, na dele não sei), Eugénio Lisboa a propósito de um Rui Knopfli e Arto Paasilinna a propósito de um Kaarlo Vatanen. Brincadeiras, enfim. Na praça, uma rapariga muito magra de casaco muito vermelho, um vermelho vociferado como um insulto, cabisbaixa, atrelada a um cão forte especializado em direito ex-matrimonial. Rupias, coroas, dinares, maravedis. Caldas das rainhas e fraldas das bainhas e mafaldas e tainhas. Uma espessura também vermelha, às vezes, como quando se desce as pálpebras para receber o Sol adentro o rosto. Esta pulsão toda termonuclear na antemão posterior da cabeça. Um homem de fato azul-cenário e gravata vermelha, ouço-o expectorar este monossílabo : – Sim. – É uma anuência não exclamativa: uma educada e não beligerante aquiescência. Tofa, Quadrolar, Tranquilidade, Supermercado de Alcatifas do Oeste. Rapaz de negro briqueteando um cigarro repetidamente, o vento não ajuda incêndios pequeninos. Às vezes, raspando a barba, os anos batem-me na cara, pugilam-me os dentes, maquilham-me roxos nas bolsas-toldos dos olhos, esturricam-me um bocadinho o ar da respiração. Nem sempre, não todas as barbas. Não é do morrer que se trata, é do ser vivo. Nisto, Rui Correia.

3. REGRESSO

Às 22h48m, o regresso a casa pela Nacional antiga corresponde a ser um pirilampo na estrada sentido a uma janela, longe, por uma criança de caixote predial, algum infante não adormecido ainda ou ainda não adormecida infanta. É a hora a que finalmente sossegam as lavadoras de azulejos, os pintores de paredes, os operadores de máquinas, o efeito da jóia eléctrica sobre o veludo da noite: os casais esmigalhando ouro nas trevas. Boniteza periférica, larga, ex-Caldas mas ainda rainha da noite.

27/02/2010

A Boca em Coimbra, o Cu no Mundo e Olha o que Chove

Pombal, manhã de 25 de Fevereiro de 2010



I

Pousa um dos braços na mesa como se o braço fosse um pássaro fatigado da alta ventura do vento. Lê no jornal que Tânia Martins, uma estudante de veterinária com 24 anos, de Palmela, se atirou a um poço para salvar Farrusca, a cadela dela. Salvaram-se as duas por resgate dos bombeiros de Águas de Moura. Pelas ruas, a morrinha engrossa, torna-se um desconcerto de cordas. Um senhor fala com outro senhor. Ouve um deles garantir que

– Era um tubo de 80.

Sente com razoável nitidez que os rostos se pergaminham como os calendários de parede pelo fim do Verão. Da janela, assiste à debandada pluvial de passaritos azuis de bibe: destroça-se o passeio dos infantes da creche. Ele pensa que os

mortos

são e estão

hirtos
abertos
curtos

e

fartos.

Depois (mas não sabe precisar minutos), uma figura em baixo-relevo a uma esquina – um homem de casaco longo, uma figura escura e magra e alta como um pássaro do Inverno, chapéu substituindo a cabeça. Mais longe, o senhor Meireles vem à porta da sapataria fumar um cigarro. Da casa-de-pasto evola-se já o chamamento de sereia da cebola frigida devagar. Um pouco de Sol dá-se graça sobre o acampamento de pedra. As fontes da cabeça murmarulham-lhe soluços oxigenados a 80.

II

Pela boca se nasce e morre e vive.
Grilos falantes, surdimos a alface verbal.
Solutos dízimos pagamos à capela
de nos não crerem nem quererem.
Não tem mal, havendo o dízimo.

Tenho passado a minha vida na boca
língua adentro. Há decerto casos e casas
piores, não me queixo nem eviscero.
Filho de fantasmas benignos, exerço-os.

Bela redondeza aceita o olhá-la calado.
As vilas portuguesas são brancas de noite
e negras de dia e cinza no tempo.
É bom convocar a semântica das tabuletas.

Agora subo os mármores ossificadores de ofício,
lembro este que aquele senhor, falo a uma mulher,
recolho dos balcões a demasia humílima – e
ainda tenho tempo para ser feliz quando

ninguém está a olhar. Nisto, um rapaz gordo,
doutor em Coimbra e da juventude por graça
chamada socialista, diz que não senhor, que ele
e o pai e o partido não roubaram nada que

não pudessem. Peço que desliguem a televisão,
óbolo que me concedem a troco de uma guitarrada
com improvisos à moda também de Coimbra,
isto é, mal e triste e porcamente e sôtôr.

Nisto, o tempo passa-se como um drogado iracundo.
Isto, isto é, o tempo convoca as tabuletas.
A boca em Coimbra, o cu no mundo
– e brancos os mármores de letras violetas.

III

Grácil é a orbital aurora enrubescedora
que até a hortas estende fulgor de prado.
Gentil é aceitar dizendo – Obrigado! –,
gentil é ser a alma povoadora.

Não é difícil estar vivo, mas sê-lo.
Ao corso de ribeiros, agradecer
não o estar vivo mas o mesmo viver
– já é mais vivo, por mais o ser.

Ai que delicadas de cabelo amarelo senhoras!
Parecem auroras quentes, estivais.
– Obrigado! – Então não quer mais? –
Não mais, obrigado, oh enrubescedoras!

IV

Rapazes tenho amigos que mulheres amaram.
Casaram-se contra outras mas ’inda lembram
as que para ser sendo afinal não foram,
mas são ’inda aquelas que mais alumbram.

Excepções disto são raras, como é lei
de raridade ser quanto é excepção:
que os houve quem bem casou, com quem não sei,
mas lhe bateu em ponto o coração.

Ficámos todos em banho-maria,
que é nome da bolacha ida a banhos.
Criamos, uns hipertexto, outros, etnia.
Rapazes tenho amigos, juro que tenho.

V

No nosso tempo mais fresco e menos frágil,
“desperdício”
se chamava ao pouco de trapo sujo que
limpava.
Assim hoje também
(frágil mais agora, mas menos fresco embora)
ao coração
se chamaria,
se ainda
o
chamássemos.

VI

Similitude lenta das mulheres que se não
envernizam de unhas, a paz higiénica
das casas-de-pasto sempre me comoveu
lentamente também.
Devo ser dos resquícios derradeiros
dessa portuguesa humanidade que
no tremoço mijão embalsamado a sal grosso
se encontra,
encanta,
narcisa,
bonita de si mesma.

VII

Percebo talvez tarde
que isto da fé tem
muito a ver com economia.
A gente acredita pouco porque tem tudo.
Não se pode pedir a um tanganho católico
que seja budista de modos.
A haver, sei lá, deus,
deus haveria naquele pinheiro-manso ali,
alma metabólica dada a fotossínteses,
e a vizinhanças de laboratório de prótese dentária.
A não haver, cá sei, deus,
há, talvez tarde,
laboratório
e
pinheiro.

VIII

Não te faças tarde depois da noite, filha(s), que
outros houve antes, como pós haverá,
amanhanoitecidos a penantes porque
tudo que já houve ainda há.

IX

(Segredos:)
Castanho-pardal de olhos é Mãe.
Quando fores a sepultar teu Pai, volta
um pouco.
Filhas são a casa toda pintada de fresco,
sem contar as paredes.

X

Quanto vale na Bolsa este homem à minha frente,
este que pede e paga e toma anis contra a corrente?
Suas bainhas de calças, suas alças de carpinteiro,
seu nada-quase-ser-mas-ser-e-sê-lo-por-inteiro?

Quanto valerá quanto, este raul-solnado-siamês
do nosso tão familiar e luso karaoke?
Este festival-da-canção, esta pedra-de-toque
que é amiga do roque uma que outra vez?

Este pátio-das-cantigas, este pião-da-esparrela,
este bosta-do-costelo, este sai-de-ti-tirano?
Este adiar-país, este-sempre-até-pó-ano,
esta linfa de coisa que é lusa e amarela?

Quanto vale, responde, vale tanto
quanto quem cala, come e fala desesperanto.

XI

Os escritores não publicados deveriam começar
a publicar por mérito da fixação em escrito
do paciente perfil das pessoas a quem pedem
que ouçam o que escreveram (tão prometedoramente)
antes da publicação.

Assim é o sangue entre a pulga e o cão.

XII

Pessoas há, poucas embora (ou porque
poucas), que nem seda são no vestiário
de lembrá-las, porque caxemira
não sobra a guardá-las em estampada gaze,
como outrora os sudários e
os cristos e
os hologramas.
Hollywood à parte, morrerem-nos é coisa
que nos fazem.
Daí que seda,
caxemira
e
desperdício
menos fresco
e
mais frágil.

XIII

Homem ou mulher não importa sejas
quando,
uns olhos à chuva vendo passar,
não aches
sejam
água em água
e
água por água,
olha o que chove.

26/02/2010

Passagem Escrita

© Sandra Bernardo – Estação CP de Pombal, 21 de Fevereiro de 2010




Souto, Casa, tarde de 26 de Fevereiro de 2010

 Parece-me
grande claridade
deixar escrito
que o que nos fica
da passagem
se resume

a
filhos
uma frase dita à chuva a alguém solar
o cheiro das mãos remanescente nos livros
tidos em casa como gatos
a cor dos olhos transtornada pelo retrato interior
a caderneta de poupança amarelecendo onde era azul
as sapatas de trazer por casa, o cordão do pijama também
segredos de primeiro-andar num prédio que não era o nosso
o single do Lionel Richie a dizer hello a uma cèguinha bonita
árvores vergadas ao vento frio da infância toda em kodachrome
a pele do planeta um tudo-nada aflorada pelos pés trémulos
termos sido involuntariamente internacionais também
e também a doença que levamos em nosso nome até
que nos leve ela
em nome dela
mas sobre tudo o mais


os filhos.

Gentileza ANDANTE

http://conta-meumconto.blogspot.com/2010/02/es-as.html

Imagem apre(e)ndida no sítio Conversatório

a partir de hoje nos Links da Malcata, aqui mesmo ao lado

Rosário Breve nº 144 - www.oribatejo.pt


Duo Ouro Branco



Portantos a gente nascemos e os que a gente temos como pais criam-nos para sermos James Bonds, mas prontos, a vida torna-nos a quase todos assim tipo Zezés Camarinhas. Com os desgostos, prontos, vamos ficando amargos e frios como as amarguinhas, que também são passas do All-Garve como o Zezé Camarinhas.
A mim ontem deu-me assim um bocado pr’amargura e pr’amarguinha porque fazia 23 anos que morreu o Zeca Afonso, que é um cantor que me habituei a gostar porque se ouvia lá em casa no transístor, embora as letras ainda hoje não se percebam todas assim muito bem, mas era fixe porque era o 25 dabril e assim. Mas não foi por isso, foi porque vieram-me dizer que o Janita irmão do Vitorino e a Filipa Pais que começou muito nova a cantar com o Vitorino vão cantar coisas do Duo Ouro Negro que também já morreram como o Zeca mas a gente achamos que não deixaram discos que se pareçam apesar do Zeca também ter andado em África, só que o Zeca andou em África mas não foi a ser salazarista nem gostava que aquilo fosse colónias. E agora o Janita e a Filipa mais dois coisos da lusofonia, que é como agora a gente dizemos o português engraçado das telenovelas, vão cantar a muxima aué e vou levar-te comigo e tal como antigamente quando a Simone ainda tinha voz e o Tony de Matos ia aos cabarés de Moçambique e toda a gente fazia música revolucionária mas só se soube depois quando era seguro, todos menos o Zeca, mas esse morreu fez ontem 23 anos. Como os do Ouro Negro s’aguentaram mais um bocado e sempre é preciso comer, o Janita e a Filipa Pais agora vão, prontos, é assim, vão cantar as coisas tão étnicas de Angola do Raul Indipwo e do Milo, que foi o que morreu primeiro mas já depois do 25 dabril, ouvia-se muito no transístor lá de casa, até mais que o Zeca depois do outro 25, o de Novembro, que ficou para sempre na nossa democracia como o que vale, se calhar por isso é que agora o Janita e a Filipa e a lusofonia vão levar-te comigo à muxima, que é como se diz coração e nossa-senhora-da-conceição em kimbundu, que é como se fosse português como se escreve agora pelas telenovelas camarinho-brasileiras.

25/02/2010

Partilha de Folhas



Souto, Casa, noite de 24 de Fevereiro de 2010


Usam os corredores para levar objectos de onde estavam para onde passam a estar – O rapaz preocupado com a saúde da namorada encosta-se a uma árvore no jardim-parque – Homens travestidos de bancários fumam no pátio do crematório municipal da cidade marítima – Um sismo muito ligeiro consegue desordenar embalagens numa farmácia fechada para a noite – Nas traseiras do restaurante o chinês de segunda geração despeja cascas de camarão num balde azul-turquesa – No anfiteatro apinhado de evangelistas brasileiros uma mulher chamada Arcanjo respira grosso – O frigorífico do bar do hotel freme como um cavalo terminal – Sentada ao crepúsculo na varanda a avó sente que se lhe engelham os dedos dos pés e as veias da cabeça – Ao telefone uma pessoa amada por nós dois soluça por causa de outra – Amanhã este caderno e a árvore do jardim-parque seguirão partilhando folhas.

24/02/2010

Perseguidores

Souto, Casa, noite de 24 de Fevereiro de 2010




Algures no tempo-espaço (sobre a neve talvez), Eugénio Lisboa leu Rui Knopfli, escreveu as palavras que lhe ocorreram em consequência de ter lido. Pessoas há que, não escrevendo nem lendo, fazem o mesmo, em palavras ditas sobre ouvidas palavras. Estas espirais são incessantes. O lobo persegue o coelho, caça-o ou não, come-o ou não, mas não consta que fale muito disso à matilha. Nós-outros somos muitas vezes como os lobos, caçamos ou não lemos, escrevemos ou não comemos. Mas perseguimos sempre, não sei o quê.

Fui à Rua Levar-me ao Lixo

Souto, Casa, noite de 24 de Fevereiro de 2010




Fui à rua levar o lixo e sofri como de costume a vocação tão atlântica e tão portuguesa de quem fica em terra na vida e depois na morte também.
A noite nova usa o antigo hábito do vento, gaze que eu gostaria de sentir à proa de um barco com nome de mulher rumo ao círculo polar mais longe disto, esta rua cujo contentor é tão escasso como a temporada cultural do município e a perspectiva de um dia o pensamento amanhecer como as maçãs amanhecem no esplendor prodigioso de ninguém olhar para elas.
Na cameleira o tempo batia todo de uma vez só e depois à volta do lixo a cameleira e o tempo haviam-se mudado uma ao outro.
O problema de em tempos ter estudado é as metáforas ocorrerem muito até numa rua destas, que é uma rua-rio como tantas outras, uma via de que o tempo se serve para mudar cameleiras e lixos e marinheiros em terra.

Prosa de Feira

Souto, Casa, madrugada de 23 de Fevereiro de 2010


Movimentos de pessoas, viaturas, ventanias, sombras – como marés enroscadas num eixo.
Olhares e pontes partilhando isto: a travessia de águas.
Coincidência de se ser sonhado fora do corpo com os já-vividos que alter(n)am a consciência – e a coincidência mesma.
Centelhas de metalúrgicos, centelhas de vulcões, paralelismos da matéria com a matéria que invalidam a teologia toda e mais alguma.
Pessoas fechadas em quase-aldeias, com armas em casa e animais prisioneiros delas súbditos.
Carreiros assoalhados de areia em pinhais íngremes para o mar.
Manhãs de mercado popular a céu aberto, profusão de queijos, batatas em sacas de rede, galerias argentinas de peixe muito fresco, tabernas de que mana um perfume forte de dobrada com feijão, carne assada, frangos crucificados em gólgotas de carvão, roxuras de vinho, braçadas húmidas de flores, segredos altifalantes, bois grandes como igrejas, cães pequenitos e rápidos como andorinhas, adolescentes art&oficiando paraísos de fuga, ceguinho com lata-ranhura ao peito, chineses silenciosos sempre a oriente, irmãzinhas conventuais orando doçarias, os dois comunistas reformados da terra batendo dominó até à vitória final, a joalharia explodida das peanhas de fruta – e em alguma casa, chegada a noite, alguém sonhar com alguém.

Um Sentimento de Pertença

Souto, Casa, noite de 22 de Fevereiro de 2010


Um sentimento, apesar de tudo (que é sempre quase nada), de pertença – de pertença até à passagem. Algo assim passa pela cabeça de Coralina Reis, que aguarda o carro conduzido pelo segundo marido dela – e ela espera dele que seja o último – junto à torre do relógio que se ergue há cinco décadas ante o areal da cidade marítima. Muitos funcionários públicos se enganaram já, chamando-lhe Carolina nos documentos timbrados. Mas é Coralina – e Maria e Santos e Reis. Já foi Almeida do primeiro homem mas deixou de ser. A chuva é diagonal, mas o tejadilho da paragem de autocarros protege-a da intempérie. O entardenoitecer de Inverno não a caçou desprevenida. À saída do trabalho, tomou chá no Avenida, comprou pão para o jantar. Agora, junto à torre do relógio, sente-se pertencer. Gosta do que passa: os matrimónios reunidos em carritos iguais, os edifícios resistindo como podem à ocasional insensatez das tormentas, o vermelho-lacre do farol velho, a sebe que delimita o Tennis Club do tempo dos Ingleses, os alcoólicos sociáveis em mesas separadas na cervejaria-marisqueira. Coralina e o segundo – e esperadamente derradeiro – marido trabalham em turismo. Têm uma agência de viagens. Abriram há poucas semanas uma sucursal. É de onde há-de chegar Mário Pinto Garção Finca, homem capaz de gerar em Coralina um sentimento de pertença, mais até do que à passagem.

23/02/2010

Flores para Rosa Margarida

Pombal, manhã de 23 de Fevereiro de 2010



Falou-se na festa de jubilação da Senhora Rosa Margarida, portanto foi de flores que mais se falou. Rosa e margarida, ela fez sempre por merecer cor e perfume e frescura e símbolo e simpatia. A festa realizou-se.
O casal Santana (Carlos e Verónica) trouxe garmentas, cujo escarlate sangrou vivamente o linho muito branco da mesa principal.
O matrimónio Ventura (Fernão e Jacinta) conseguiu falópias, sempre tão raras, tão amarelas, tão frágeis e tão inesquecíveis.
O solteirão Rafael Vinco fez jus à condição singular, ao trazer uma única valústia – mas ninguém regateou ohs! à imponente aura violácea daquela coroa de ópio.
A lésbica Maria Pedro não alcançou cortar um pé do que se propusera (as incandescentes ruivosas), mas compensou-se e compensou-nos com uma leonina braçada de junifras que muitos confundimos com jacintilhas: eram junifras, porém.
Os professores Maribelo, Cesório, Jerónimo e Maria da Esperança quotizaram-se para produção de uma muito institucional e muito republicana cabeça de pólipas metastizadas de turomenhas, santabitanas, dardos-de-água, ossos-de-preto, morgadinhas, zeferinas, corpos-presentes, lactas, sofias e escanéus. Foram republicana e institucionalmente aplaudidos.
Eu e o meu companheiro em boa hora optámos pela modéstia de duas jactâncias.
O Restaurante Tapada dos Leitões ofereceu a flor do espumante.

Diferenças no Sestubear

Pombal, manhã de 23 de Fevereiro de 2010



Turquemeus piastras por 'í além
de riquexéus entiras quartelente.
Sestubear em gão é diferente:
tem tanto de poci como pocéu.


Lerditubiras rincam madrepós
em talupia-pia tertomar.
Sestubear em vão é como a gente:
tem tanto de só-si como de sós.


Junquiras rada tontam astrocéus
hacá de framboísmos retinados
e de praias-de-omaha retinentes.
Mas já quem vira-vira caducéus,
além de tertomares talupiados,
jé sestubeia sempre al-diferentes.

22/02/2010

De uma Junção de Rios

© Sandra Bernardo (7 de Fevereiro de 2010)







Souto, Casa, tarde de 22 de Fevereiro de 2010




Sei de uma junção de rios de delicados areais.
Penso por vezes nela e neles como em pessoas reais.
Alternam a jornada de sol e a de nuvens.
Por vezes, o céu desce a tocar-se nas águas.
Não é muito fervor, o fragor das correntes.
Por vezes, parecem linhas de seda, os rios.
Nasceram da mesma mãe sem pai, os rios.
Encontram-se ali, onde os escrevo.
Há a possibilidade de renomear tudo.
As pedras que marulham os leitos são:
litânias, xerozes, gualdipas, riconêmeas.
As árvores que emolduram as águas ao ar são:
capélias, albacentes, polimitos, jesusmarias.
As aves que se atiram de cor às cores são:
felícias, aquineves, urmelitas, bocasdoces.
As pessoas que poucas vezes por aqui há, são:
Mem Gomes, Jura Bosque, Vata Só, Cordia Luz.
Os peixes dos juntos rios são:
revogas, xarépios, acordinos, merussípias.
Os rios são: Rio Senhor e Rio Senhora.
Todas as manhãs acordam ao mesmo instante,
de mãos dadas já e ainda, cruzadas as linhas
de seda.

Ribeira Negra Areia Brava

Souto, Casa, noite de 20 de Fevereiro de 2010





Viver é uma espécie de temporal assolando a região pensativa,
derrocadas previstas cedo ou menos cedo desabam
fés, dogmas, certezas, parentes,
cinturões fabris consomem a luz dos olhos e a seiva das mãos, nem todas
as pessoas ligam muito à insolvência invernosa do coração, algumas
ainda assim fazem pela vida poupando lenha e conservas e azeite e farinha,
andorinhas de barro negrejam ainda desabitadas empenas de cal avoenga,
pelourinhos sinalizam a cárie dos séculos,
as crianças patinham no paraíso depois lama,
às vinte e sete trinta e dois mortos confirmados na Madeira,
pobres cápsulas ex-cristãs e ex-viventes e ex-votos e ex-tudo,
isto só pode ser obra de um tal deus,
obra da resignada impotência edificadora da
santa-sopa-dos-pobres,
como fazem na Finlândia não sei,
aqui segue-se pela televisão a tragicomédia popular
de tão pouco Cristo para tanto cristão,
isto só pode ser obra de haver tão poucos praticantes,
tantas ribeiras doidas ao cabo de cinco minutos de chuva intensa,
em Peniche quatro pescadores foram tragados pelo mar,
a dor humana cerra as mãos e não aperta nada,
areia parece confirmar-se a nossa mais íntima vocação sideral,
enquanto o Sol não arrefece de vez,
enquanto o peido de prata da Lua não acaba de ser dado,
protecção civil, especialistas meteorólogos,
caprichos termodinâmicos,
assusta-nos o risco dos nossos filhos,
envernizadas laranjeiras sofrem o vento cervical,
transidos gatos e cães encolhidos suportam o frio glacial
da efemeridade,
nos cafés o patrão e a patroa contam sombras de moscas,
as tabuletas metálicas guincham ferrugens reumáticas,
não é fácil convocar a estesia do temporal,
não quando os mortos despojam as ruas,
não quando as ribeiras se desaforam marítimas,
que palavras agora para as famílias
dos trinta e dois mais dez da Madeira,
para as dos quatro de Peniche,
a impunidade do tal deus é soez
como soezes são as imolações que ele papa
ao chàzinho da puta da eternidade,
Ribeira Brava tão brava,
Areia Branca tão negra,
sapadores desorientados à salsugem,
geral consternação de pivôs e convidados,
entre mortos e feridos os mentirosos piedosos
alinhavam costuras lamentosas,
amanhã chove, depois de amanhã fará sol,
então veremos ou não.

21/02/2010

Mais Escrevisões

Souto, Casa, madrugada de 18 de Fevereiro de 2010





Tive a visão de uma sala de aula de dactilografia. Era o fim da sessão, dois terços da classe tinham já saído. O professor assinava o livro-de-ponto sentado à secretária de madeira velha. Seis alunas acabavam de cobrir as máquinas-de-escrever com as lonas que tinham escrito Underwood. Depois, deixei de ver isto. Estive uma meia hora sem ver nada para além da minha própria sala. Então, vi um parque de estacionamento no estrangeiro. Finlândia ou Noruega. Noite alta, poucos carros e muita neve. Candeeiros pálidos, lívidos, quatro. Depois, aquilo dissipou-se em proveito de um quarto de motel muito decadente. A cama por abrir, a luz da casa-de-banho coada pela porta entreaberta, movimentos de silhueta de sexo indeterminado tomando duche. Som do telefone na mesinha-de-cabeceira. Antes que o ou a ocupante do quarto atendesse, a visão acabou. Fez-se manhã. Acordei como se nascesse já com uma língua. Era diferente da primeira vez – ou do que me contaram do primeiro nascimento. O quarto erguia-se pela luz inicial. Era muito cedo, antes ainda das sete. Se não tivesse anotado alguma coisa, teria perdido a silhueta no motel, as alunas-dactilógrafas, os carros noruegueses ou finlandeses. Não teria perdido a sala. A sala está ali sempre, não aparece nas visões – mas à vista desarmada.

Eutretanto em Frugal Imensidão: o Pão de cada Dia e as Estrelas de cada Noite

© CD Robert Doisneau – Coco (Paris, 1952)



Souto, Casa, e Café Ripa, Pombal, entardenoitecer e noite de 16 de Fevereiro de 2010







Nada para além da palavra, como nada além há e é do infinito. Consolação mínima como máxima. Dança-se sozinho ao luar. Não há outro baile. Ainda alguém connosco há no nascimento. Na morte, não, ninguém. Antes, pois, da corrupção e da desordem fisiológicas, teorizá-las em verso. É o mínimo e é o máximo. A consciência? Desde sua primeira hora (em português, Aurora) debate-se com o paradoxo da frugal imensidão. Digo: o pão de cada dia e as estrelas de cada noite. Néon de café de província em noite invernosa: condição cósmica possível. Não há magia. Lamento, mas não há magia. Há gestos engraçados, totémicos. Mas renego a escudela de esmolas: budista, cristã, whatever. Acredito no íntimo, singular, inócuo encanto ante a desarmada rosa, de espinhos continente embora, da manhã. Não se trata, no entanto, desse acreditar para não morrer de todo da fé. Trata-se de fruto (a rosa) e usufruto (o olhá-la). Escrever isso num café de província. Rosto encarnados como fundo de barbas encanecidas: bebedores de café de província. Infusão, profusão, fusão, confusão. Difusão. O Parque da Pena, a Arrábida de Osório, Alfarelos, Baltimore. Ou talvez não. Talvez só o íntimo Paquistão da exótica guerra de cada um contra si mesmo. O meganada do Mundo. As mulheres da minha infância suportando bilhas na cabeça sobre rodilhas de pano. O cabelo delas amarrado em cosmogónica caracólica espiral na curva posterior da cabeça. A violada a vinho púbis maternal delas. Por onde isto vai. A Aurora, às vezes nome de mulher velha, de dia novo sempre porém. Calafetar a memória com o pez possível: a poesia, o prosaico verso pobre. Sem manias tristes, se possível. Sem armas. Como a rosa, sem tristezas e sem manias. Isto é: não conceder à merencória portugalidade a obscena banalidade da telemerda brasileira. Ir por outro lado a outra parte. I-lo em português eficacíssimo. Espírito da água. Sem magia e sem espiritualismo, espírito mágico da água. Esta noite, passos volvendo través escuras ruas iluminadas sem fama de laranjeiras vivas, aquilo não era chuva, mas diamantina poalha quebradiça de água pupilando miríades candeeiras: molha-tolos, como por o Rectângulo Pátrio se diz. Molhada olhada maravilha: e palatais lh(es) lh(as) (i)lh(as) que (o)lh(as). Sedutores sons. A consciência? Isto em minha idade: gentesdantesdepois. Ou seja: eutretanto. O Volga. A Valsa. Trotsky no México, Marley no Central Park, a Swanson ao alto cí(s)nico (de cisne e de cão grego) das escadarias-crepúsculo-dos-deuses, a pobre Garland morta de tanto álcoOz. As vidas do Mundo iguaizinhas às deste bairro esta noite este carnaval. Fugacíssima peremptória merencória ilusória condição vocabular: infinitude provável e provada, monstruosa e demonstrada. Como aprendi isto? Como se ensina isto? Recordo um auxiliar de pintura de paredes comendo um pêssego ao ocaso de um dia de trabalho. Estava sentado no mais alto dos três degraus da cozinha para o quintal. Tinha ganhado o dia e o pêssego. Repousava ante a cumplicidade das laranjeiras, das couves, do poço, da lenha rasgada como imprestável poesia. A força desta recordação: ser já este mármore. Mármore? Mar m(ai)or. Risco absolutamente gráfico de andorinha. O problema dos cadáveres físicos, físicos absolutamente, vistos na infância. Às vezes de gente, outras de pássaros: a igualdade frígida da Morte. O espectáculo todo-o-terreno-todo-o-teatro dos velórios. O gosto do Tempo: areia-na-boca. Não só isso na boca, mas en passant. Viver é a eliminatória máxima. O nascimento é a grande final. Não há quartos – e escusado é rezar terços. Palavras, palavras: presilhas do que cinto. Vila Real, Vila Virtual. Transconspiração. Precisar de anjos, derradeira pobreza. Litígio polenizado de flores-machos. A ominosa (opticamente falando) lagarta-dos-pinheiros. A infantilização da velhice. Sim, o suicídio da boca – pela boca. Sete anos. Vinte e nove anos. Seis séculos. Uma noite. Tudo tão parecido. Que depois pode ser oferecido aos bordados que as velhas abandonam por passamento? A Praia da Consolação de 2010 é a mesma – ou não pode ser a mesma – de 1971? Um cigarro branco na minha boca preta – onde a minha criança geradora de crianças? A marca do sangue, o estigma da cultura, a sabedoria toda lexical – ou fecal: dá (n)o mesmo. Vitória vibrante da imanente alegria. Construída psicose – e deliciada mercearia vocabular. Entrega a isto. À erva que rompe a pedra xadrezística dos calceteiros. Vichy. Gerês. Santarém. Bochum. Oliveira de: Azeméis, Hospital, Bairro, Frades etc. Narvik. Vinagres. Ceuta. Governos. Tânger. Soure. Oslo. Ourique. Zurique. Manique. Munique. Annaburg, a sul de Berlin. Kabul, Delhi, Calcutá, Bogotá, tudo longe da vista. Rudolf Hartog. Capetown, Madagáscar, Tóquio – e o Sabugal. Whitewood, Saskatchewan (Helen Morgan). Janakkala e Tuusula, Finlândia. O pão de cada dia. A luz de cada pão. Os ciganos distraídos com o futebol dos Outros. A peca beca. Costacurta. Albertini. Ambrosini. Tardelli. Altobelli. Zola. Zenga. Riva. Calvino. Alvaro. Sciascia. Soldati. Morávia. Levi. Montale. Sítios de gente. Piscina sim, piscina talvez não. O preto que enlouqueceu. O branco que também. O que não. O que também não. O aquário da televisão. Rápida fustigação ocular, prisma, caleidoscópio. Em que universo(s)? Ou em que verso(s)? Assim-estes:

Gigante ignomínia é não ter querido
ao que for ou foi ou tenha sido.
Enquanto ente, sê-lo igual e diferente.
O mais, o mais é apenas gente.

Perceber a diligente teimosia: a dos que edificam estrofes como a dos que estrofam edifícios. Ir de motorizada aos bailes da ginja e do capilé. Recuar o futuro: ficar escrito. Sem magia, sem merdas: recuar o escrito, ficando futuro. Praias da Normandia. Vídeo-nazismo: metralha e Dia-D e Hora-H. Busca lepidóptera de anais. Cozinhas tristes, águas geladas varridas em outras vidas. Cominação. Verdurismo. Celibatente. Eucaliptância. Cerbeveração. Rictoalismo. Buenaveridir. Sorumbátixação. Camiões sem Luiz Vaz ao volante. Que pena, perder-se a magia de si mesma quando a criança acorda para a aurora púbere. Que pouca coisa, não foram os versos. Que quais? Assim-estes:

Rio-rei de água-tempo,
cordial sublimação
d’alegria d’um momento
a tempo da perdição.

Singra correntes perdidas
quem os não navega recto.
Dar o corpo ao manifesto
é sangrar correntes vidas.

Solta de uma vez por todas
as amarras corroídas.
É sangrar correntes vidas,
é sangrar, nem que te fodas.

Sem risco – sem risco é que não. Toda a vida como cartada. Ser agora: antes ainda conta, mas depois já não dá tempo. Sono infante – sem sonhos, merecidamente sem. Ao outro dia (a Aurora), esse renascimento civil que preside à inocência dos agricultores, à culpa católica dos pescadores, à monótona tristeza dos professores – e à higiene das putas. O orvalho que a noite chora tal que matutina ruborize a rosa. O senhor Marcelino merceeiro esplanando caixas de frutas & legumes como um catedrático, teorias (e tão preciosa é, verbal, esta vírgula entre catedrático e teorias, sim?). A força amorosa da nossa Mãe ter sido primacialmente (Deus!) sexual. O descer. O ter subido. As poucas (mas tão formosas!) alegrias desta vida sem passaporte para outra. Os filhos do empregado-de-café tão iguais aos nossos, mas não, oh nunca!, como os nossos. A fornada aromática do pão, tu sabes? A camada, por assim dizer existencial, do nevão. A ígnea beleza de isqueiro das raposas, esses clarões de pêlo e de repente. O Inverno em Baltimore. Quando nós éramos mais velhos do que este Outon’apenas. A celebração champanhosa da ortografia nenhuma. Mas os pedreiros dizem “afagar” quando suavizam a pátina de cimento no rosto vertical da parede, do muro, do chão até. A falta que à nossa vida faz, às vezes, um defesa-esquerdo, o que fizesse a ala do coração. Favónia brisa acorrendo ao mesmo coração num transe choupalino, fluvial, de matinal manhã dominical isenta do cancro do futuro. Corpo contra corpo, corno contra corno. Gaivotas e andorinhas, pardais e albatrozes e atrozes alvas adultas. Cuidado! Circular o menos possível pela esquerda. Tomar café e a vida em doses moderadas pela meteorologia. Ser obscuro na literatura, mas educado sempre na rua. Filmar com os olhos de dentro. Suportar com dignidade o susto do nascimento. Conceder minutos às árvores-de-fruto. Horas de água às planícies viajadas. Ter uma grafia por modo de vida. Um cão leal. Ser leal a um cão ressuscitado em duas gatas ao mesmo tempo. Nada para além, porém, Mãe!, da palavra. Esse ter tido (ou sido) 18 anos. Este demorar avoengo nas catacumbas genealógicas. Uma sepultura de ripas de berço é quanto queremos de amparo aos pais a enterrar, sim, não? Volta morosa e amorosa do querer-ficar-ainda, apesar de tantas totais pentotais provas em contrário. Este remanescer querido do coração, esta volta de putas brasileiras por cinco tostões de português, este ter-razão-cá-dentro-contra-nada. Lume. Agora, um pouco de lume: há quantas vidas nos faz o Sol o mesmo, pão de cada dia, mais diurna estrela da nossa noite?

Canzoada Assaltante