30/04/2007

Abril Indo-se

Acaba Abril, venha o senhor mês que se segue.
Aqui arrumo, antes que seja tarde e se faça noite, mais umas textalhadas avulsas e convulsas. Os dois primeiros, Sessão Contínua (…) e Aflipto, são, respectivamente, da tarde e do entardenoitecer de 26 de Abril de 2007. Já a sequência de dezoito poemas Post Coitum (…) é coisa da tarde de 28 de Abril. Mesmo ano.




SESSÃO CONTÍNUA DE 24 FILMES
PARA UMA ÚNICA ETERNIDADE IGUAL AO RELÂMPAGO

1
Extirpados pulmões,
escurecem ao ar
as árvores.

Entre árvores e casas,
os pássaros.
Nos pátios, esperando,
os gatos.

2
Na ponderosa cozinha económica,
o casal recém-levantado do tálamo
é surpreendido pela vigência do limão.

3
Muito vermelha,
muito verde:
a vida, às vezes.

4
Deixa, por banda sonora, um amarfanho de papel.

5
Toques laterais:
o vento na janela:
o coração no peito.

6
A maravilhosa mocidade do desespero:
única eternidade.

7
Igual ao relâmpago:
a cona rasgada de alto a baixo:
a Mãe, sim.

8
Não tem o amor carteiro.

9
O sonho?
Um carro sem condutor,
tu no banco de trás.

10
Tu chamando-te tu,
eu.

11
A velha expondo o presunto
às moscas jovens.

12
Nenhuma saída
sem ser pela frente.

13
As ondas do mar, labaredas.

14
Sal queimando.

15
Visão do morto que se veste para a sexta-feira à noite.

16
Sombrio e desassombrado:
o anjo.

17
Sombrio e sombrio:
Deus.

18
Cara, remissão, piolho, luz:
palavras rápidas.

19
Aceitação e resignação podem
não rimar.

20
Aceitação e resignação podem
não remar.

21
Homens sem hexâmetros
descarregam peixes vivos
de barcos:
homens com hexâmetros.

22
O universo paralelo do funcionário
acede-lhe a pedofilia, a filatelia.

23
Loja de conveniência, uma e meia
da manhã.
Atum, vinho, arroz:
ele, ele, ele.

24
Mesmo que isto não tivesse sido,
está escrito.

…………………………………………..


AFLIPTO


In memoriam Laurinda dos Santos A.


Vigora ainda a velha pulsão redentora
do filho único de casal com muitos filhos.
Acesa ainda a lamparina que nutre e assusta
a menina de outro século, aquela que,
por tísica e química, falece ao cabo
de poucos panos mal borrados,
ao cabo de um ano a dois
com todas as noites.
É a vigência
ou a urgência
da infância
as histórias.
Este homem que pulsa,
decente, seu coração
embainhado em camisa de botão
como uma amendoeira de cabedal:
este mesmo homem que revive
para não viver?
Agora:
como fazer?
Da ínsua, o ouro tangerino
olha e molha vacâncias de menino:
na-certeza-porém
de haver estrela & musgo
e pai & mãe.
Vigora ainda o homem lácteo,
sua via
que roça,
da Lua,
um vértice
de eucalipto.
Feliz e aflipto.

…………………………………………..


POST COITUM OMNE ANIMAL TRISTE EST
(ou VAI ATENDER, QUE PODE SER O CARTEIRO)


1
O sono preto esvaziou-me bem.
Acordei na lassidão.
O outro corpo tinha já marchado.
O outro corpo tinha já deixado
ilegíveis traços: parênteses de lençol
e pontos húmidos.
Já a janela esclarecia.
Outra vez o dia.
A língua de cartão,
o amor envelhecido
em casca de carvalho.
O zipermercado
do desquitado desamor.
My place or your place
d’ailleurs e andor.
Na porta do roupeiro,
o Che do costume
em poster
idade.
No frigorífico, as salsichas,
a embalagem de salada de atum,
o champanhe suplente
como uma galera de reboque.
Um sal de jazz, nada de rock.
Na sala, como esquecido,
o terceiro do Quarteto
de Alexandria,
já outra vez a janela
o dia esclarecia.

2
É quando, antes de tudo,
tudo te parece depois.
E, mais que tudo e
sem ser por nada,
assim é; e quanto.

3
Da oliveira enegrecida perante a casa do teu amigo,
dirás ou não dirás – tanto faz.
Recolherás notas demográficas e urbanizações.
Agora esta rua é sentido proibido a subir:
na infância, não era.
Quem nasceu, quem se exilou.
Curioso, como teimam em chamar
emigração
a
exílio.
Agora é outra vez antes de tudo.
Do teu amigo enegrecerás a oliveira.

4
(Velhice da Garota de Ipanema)

Passarás quieta sob teu dossel
de ouro vilipendiado.
De pobre presigo serás servida,
umas lascas de rançoso leitão frio,
uma colher de mandioca,
não mais.
Mas terás para sempre sido
rainha das princesas tropicais.

5
Tonto tom, ó Tom Jobim.
Tonto, sim: que só santo
soa tanto assim.

6
Lamberei a cal das paredes das últimas casas
sempre que irreversível me parecer o porvir.
Serei de novo o velho anjo gatinhando sem asas
pela cozinha onde há febra a frigir.

Se tiver ou for de corpo tenente
não a Deus temente serei pois certo
é o poço aberto em que a gente
toda tudo acaba mais decerto.

7
(Aspectos da GiNazaré – seu Típico e meu Azedume, que Detesto aquelas Peixeiras)

Mar vaginoso de lustral lombo golfinho
verás acrescido em escol natação.
Marulhação é de espuma o burburinho
(faz de pelourinho o peludo tubarão).

À praia acode histèrilizada a peixeira
tá-mar da merda não nos sobra zimmerturismo.
Resto é nudismo, resto é a bandalheira:
Porsche-pó neto, viva viva o ranchotipicismo.

8
(Falô)

Falam mal no Brasil português de Portugal.
Mas já no Brasil falam bem
a variante local da língua-mãe.

9
(Para qualquer, ou todas, Brönte)

Não zunem desse lado campos-ventos,
vasta só a devastação pluripeneda,
zimbro e urze, espargos e rebentos
raspam d’ar que nada suceda.

Nada suceda. Ô! Ô! Nada suceda.
A gota do velho squire não agordem.
Proibida lágrima de sherry lhe acudam,
antes.

Não. Não torvo, não vinho nem torvelinho
ajudem já as putas das virgens
silvestres que a pena de ganso
raspavam imaginvaginações.

Desse mal morreu muita gente
de outra cor
na Índia (salvo Goa, Damão e Diu)
e na Nova Zelândia (salvo nada).

Zunem finalmente desse lado
etc.

10
(Canção, Outra)

Triste triste triste
triste é a manhã
alegre rosada
da cor de amanhã

do cavaleiro manchego
do gordo burrical
do desassossego
e de Portugal

da magra praia acordada
como órfã filha às sopas
alta madrugada
sujas rotas roupas

vem vem de mansinho
não arda a aguardente
sopas pão e vinho
e tristeza de gente

linda linda linda
quem não foi quem não veio
olha-me ainda
‘inda qu’eu seja feio

toca da primeira
vez a vez primeira
espigas numa eira
cantigas numa feira

cantigas de recado
em cine-teatro
o diabo a quatro
zero deus contado

recupero barcos
mas de mar nenhum
violas e arcos
recupero sim

quem vem vem vem ou não vem
chega ou basta ou não vai chegar
trago recados doces de mãe
falta só telefonar

11
(Canção para o senhor Carlos Guerreiro, outra)

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal


Moimenta da Beira linda
também linda a Sertã
Linda-a-Velha mais ainda
clara do que a manhã

Vila de Rei não acabe
nunca de acontecer
já se sabe q’o Algarve
cedo ou tarde tem de ser

depois vem o Paio Pires
e o Queijo Rabaçal
qu’ele há camiões TIRes
que devassam Portugal

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal



em Peniche fixe fixe
Sabugal fixe também
fixe fixe Alcabideche
Santiago do Cacém

Mais além sonda Monsanto
Nodeirinho fica fica
arroz de tomate tanto
come a Costa à Caparica

Olhà Braga arcebispa
Guimarães lhe leva a mal
trocar verde à sardanisca
nisca nisca nisca e tal

REFRÃO
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal
Que ninguém nos leve a mal
sermos tão-só Portugal

(silêncio instrumental total; luz vermelha vertical no canto)

(Falado:)

Fala – ao menos uma vez, com a iluminação da morte.
O exemplo da morte.
A morte dos objectos que te esqueceste de coleccionar.
O pensamento do eu ou dele
na pedra fria anestesiando os mesmos intestinos a que
preside teu pobre coração batente.
Fala – ou então bate.
Mas – se bateres – bate.

REFRÃO e acaba.

12
Olha
se a sereia não vier na lista telefónica
olha
não leves a mal
já ninguém tem telefone em casa
nem casa nem telefone
olha
já não há assim sereias por aí além
já se afundou há muito
a série do barco do amor
olha
sendo o caso de te aconteceres triste
e triste amanheceres
mesmo perto do mar
talvez por causa do mar
olha
os faróis não olham sempre sempre
a intervalos só eles piscam
olha
não olhes
olha
não olhes.

13
(com órgão)

Minha mínima condição não acontecida
eu velo ardente por ti em câmara
imagina que esta era mesmo a vida
e te estendia a egípcia tâmara

a do segundo direito divorciada
que por cultura de enciclopédia
se dizia e fazia preocupada
bem mais acima da maior média

imagina

uma coisa és tu
outra a vagina.

14
(Invocações)

Minha santa mãe
de anjo nenhum

Meu santo cão amarelo
à tua mãe dei eu trinca de arroz
com vísceras de animais
outros

Destes-me
o mesmo

ó mãe amarela
ó cão santo.

15
(José II)

Entras sem pressa na casa que dominas,
onde tudo é quase tudo a começar por ti.
Nessa casa te semeaste.
Os cachopos fremem como plátanos
ao vento e ao ti.
A mulher é um pouco estúpida, mas ferve e serve.
Morrerás ridiculamente novo e ainda
não sabes. Cinquenta anos, pá, merda
de idade: para viver como para
morrer: tenho irmãos mais velhos
do que tu, José, Avô.
Entra, vai.

16
Nunca te ofendi que eu soubesse.
Tenho, sim, esta língua, mas
olha-me a boca: sul do que te olha.

Olhamagora: uma vez só mais:
não era contigo.

Era outro.

17
Andei fora.
Quis estar dentro.
Quando quis estar dentro,
já tinha estado.
Não estou.
De modo que vou.
Andou.

18
Ninguém te enganou.
Tu sim enganaste ninguém.
Ninguém te acreditou.
Nem creditou, meu bem.

Era p’ra ser parecido com os outros.
P’ra não responder não perguntes.
Para que éguas desses potros.
E a toucinha desse bestunto.

Era para ser uma merda.
E foi.

26/04/2007

Então Ainda

Tiraram-me para fora,
tal que de vez nascesse.
Não chorei, pelo que
me cortaram o peito.
Meteram-me dentro
uma pedra vermelha:
para que bombeasse o tempo.
Então sim, chorei.

Ainda me acontece.



Caramulo, madrugada de 26 de Abril de 2007

25/04/2007

Cada Um É mais Um menos Nenhum (33 anos do 25 de Abril)

(texto composto para ser dito – e foi – na evocação do 25 de Abril e de José Afonso organizada em Vouzela pelo grupo Vozes da Terra, no cine-teatro daquele município, na noite de 24 de Abril de 2007)



É bem ou mal falar em público de um morto?
Depende do que dele se diga.
Depende da letra e da cantiga.
Mas é bem ou mal falar em público de uma morta?
Não digo de uma defunta pessoa
mas de uma morta Revolução?
O Povo não morreu
está só
embora muito
amortecido.
O Povo vive ao semestre.
Foi
aliás
um contragolpe de mestre:
seis meses no centro de desemprego
outros seis à caixa do hipermercado.
Mas canta-se o fado.
O povo unido nunca mais será contratado.
Uma só no cravo
mil e uma na ferradura:
ou é vocação de escravo
ou de cavalgadura.
Direito ao voto?
Pois muito bem.
Em quem eu boto
botam contra cinquenta e cem.
Mais a abstenção.
Mais a privatização.
Mais a globalização.
O Iraque não é aqui nem ali.
É Alá
Graças a Deus.
Assoa-te
abençoa-te
e passa.
Angola já foi mas já não é.
Moçambique e Cahora Bassa
mais o preto da Guiné
ao pé de quem nascíamos portugueses de 2ª.
Já não há anedotas nem trocadilhos.
Já nem fazemos amor
nem filhos.
A caderneta de poupança
tem um zero tão à canhota
que só pode ser cobrança
pró-aeroporto da Ota.
Ah sim! E também o TGV
p’ra irmos mais depressa
de nenhures a lado algum.
Saia um rabo de bacalhau
e uma cabeça de atum!
Como quase tudo em Portugal
(santo País etc. e tal)
até a barragem do Alqueva
chegou 33 anos atrasada:
para afogar a Revolução não
era precisa tanta água.

Bastava bem esta nossa mágoa
este nosso desconcerto perante nós ao espelho
o lento olhar enevoado pelo primeiro cabelo branco
pelo segundo pelo terceiro pelo último.
Somos livres em silêncio.
Somos livros que ninguém lê.
Também
ninguém gosta de ler.
Ninguém escreve
a não ser SMS
que isto de ter telemóvel é o que mais apetece.
Camões fora do ensino
trocado pelo best-seller do gajo mais pequenino.
Fernando Pessoa para quê
s’a gente tem olhos mas não vê?
Eça de Queiroz?
Que estopada que impingem à indiferente criançada
à geração morango-açucarada.
Muito melhores são
o cagadonald’s e o franchising redentor
q’a gente p’ra saber inglês nem precisa de professor.

E no entanto
ó meu País
meu amor
meu dia de há minutos
minha noite de há séculos
minha luz azul na manhã de ouro
e no entanto
nós somos livres
livres como o pássaro molhado pela chuva que poisa
quando quer
e quando quer levanta voo
mesmo que para emigrar
livres como a memória fresca do inocente
a memória do ser que é a pessoa entre a demais gente.

Cada um é mais um menos nenhum.

Cada homem português.
Cada mulher portuguesa.
Cada velho devastado pela incongruência de tanto amor por ti, Portugal.
Cada criança com seu alfabeto de solidão.
Cada duas crianças com sua aritmética de solidariedade.

Somos a terra a aldeia a vila e a cidade.
Somos o País que toca música no piano do mar.
Somos ainda nós quando nos lembramos.
Talvez não sejamos bonitos
nem ágeis
nem velocipédicos
e muito menos enciclopédicos.

Somos gente.
Todos temos 33 anos.
Dizem que era a idade de Cristo.
Boa idade para uma Revolução
boa hora p’ra pensar nisto.

Somos Portugueses: gente que
às vezes
por exemplo num cine-teatro
olha para o lado e não se vê só
e conta
um cravo
dois
três
quatro.



Caramulo, tarde de 24 de Abril de 2007

23/04/2007

José Afonso

José Afonso

1
A comoção é o mais evidente sinal de que também o coração pode ser inteligente.
Se hoje (se ainda hoje) nos comovemos perante a voz, a figura e o exemplo de um tal José Afonso Cerqueira dos Santos – provavelmente, é porque nos sucede sermos portadores de um coração inteligente, de uma alma com memória e, ainda, de algo a que se pode (e deve) chamar gratidão.

2
O tal senhor chamado José Afonso Cerqueira dos Santos tornou-se no Zeca. O Zeca de todos nós. O Zeca como só ele. Nasceu em Aveiro no dia 2 de Agosto de 1929 e começou a resistir praticamente desde então. Dizem que morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987. A pessoa física, sim: morreu. O artista, o músico, o cantor, o poeta e o compositor, esses todos que ele era em um só corpo, esses não morreram. Nós somos, hoje e aqui, amanhã e acolá, a mais fundamentada prova de vida de Zeca Afonso.

3
Poucos homens e poucas mulheres podem ser recordados como tão altos. Poucas mulheres e poucos homens fizeram tão bem rimar existência com resistência. O Zeca Afonso foi sempre, é na mesma e sempre será um pássaro que nos falava de gaiolas. Um poeta do “raio de sol queimado”. Popular sem populismo, libertário sem libertinagem, consciente da dupla condição da vida: breve no corpo, perpétua na voz. Temos de aprender a ouvi-lo de novo: ele continua a dizer o dia de hoje.

4
Para o fim da vida, na última das suas casas, tinha pelas paredes o rasto gráfico do momento mais alto da sua e da nossa vida: o 25 de Abril de 1974. Foi dele que veio a madrugada cantora, a aurora marchante, os compassos morenos da primeira cidadania que, ao fim de tantos anos escuros, nos foi permitida. Zeca Afonso não era, não foi e não pode ser ouvido como a “cassete” do 25 de Abril. José Afonso é o 25 de Abril – mais alguns homens e mais algumas mulheres.


5
Das canções mais imediatas às de maior densidade semântica, o Zeca Afonso devolveu à língua cantada e à música popular aquilo que, depois dele, lhes vem sendo indecorosamente roubado: a dignidade expressiva de um coração inteligente e de um pensamento solidário. Ou seja: uma poesia e uma música que são, de facto e deveras, para todos.

6
Da renovação da balada coimbrã (a partir de novas ousadias harmónicas, melódicas e líricas) à inconfundível obra pessoal dos discos posteriores, o Zeca Afonso é sempre alguém que nos trouxe algo para puro efeito de partilha. Não há solidão na música e na poesia de José Afonso. Só há solidariedade. Até porque nenhuma multidão começa sem se estar sozinho.

7
Esquerda, extrema-esquerda, reviralho e revisionismo, direita e extrema-direita: todas as franjas do espectro político-social do nosso País, nos últimos 33 anos, continuam a ser tocadas pela graça magistral deste homem que queria tirar, do homem, o lobo do homem. A aparente facilidade da sua obra é, provavelmente, o único engano que ele nos legou: a obra dele é tudo menos fácil. Mas é de todos. Ele não ficou com ela só para ele. É nossa.

8
A glória do Zeca Afonso não é de panteão nacional. Não é uma gloríola de 10 de Junho, de verso e reverso de medalha. Não aceitou nunca ser general. Era um homem de pão, paz e pombas: era um português, como há já tão poucos. Pelos menos, com memória de sê-lo: português não aduaneiro, não missionário, não superior a ninguém. É uma estrela – certamente: mas uma estrela humilde. E pessoal. E transmissível.

9
Depois do 25 de Abril fundador da nossa Liberdade, José Afonso Cerqueira dos Santos não chegou a existir fisicamente sequer 13 anos. Resta-nos, dele, a pedra aérea, a pedra leve, a pedra definitiva dos seus versos humanistas e humanizadores. Isso e a estranha pureza da sua música nova, das suas canções em que é tão fácil reconhecer a grandeza. O legado do Zeca é o canto livre, moço, resistente e lúcido. Não é para trautear. É para cantar mesmo.

10
Não há rótulos a colar ao corpo deste operário que hoje recordamos. O Zeca está para além de qualquer autocolante. Não há gaveta onde o possamos arquivar sem risco de uma amnésia mortífera. Por isso o celebramos em vida. Dizem que morreu há duas décadas. Talvez o portador de bilhete de identidade tenha cedido à doença. O que não é possível, de modo algum, é renegar a evidência da sua presença em cada madrugada. A noite só vem se nos esquecermos. Dele e de nós.

18/04/2007

Comoventes Desumanidades - história 74 do Anoitecer ao Tom Dela



1
Esta manhã, o ar era de cera pura. Uma granada de oiro ampliava a luz. Recordei a tarde de anteontem, quando me deitei, ao sol, no banco junto à fonte. O pulmão da fonte cantava espessura transparente. Vi, de baixo, as nuvens desenhando-se umas às outras, muito lânguidas, cheias de uma comovente desumanidade.

2
Esta manhã, estive sozinho perante o parque. Não entrei no parque. Fiquei deste lado da estrada, emprenhando-me de textos rumorosos que depois são animaizinhos larvares, pretos, no papel. Peixes vermelhos num tanque sem dono – estes, por assim dizer, versos.

3
Tinha o coração na garganta. Tinha as pedras subindo do chão – como um nevoeiro de quilogramas. Os pássaros apitavam. Eu tinha uma cauda: de nomes, de noites. Vi a mulher amarela ao balcão da ponte: eu e ela, de olhos fechados. O outro homem, atrás de nós, de olhos abertos.

4
A carroça dos legumes parada em frente ao sanatório. O homem da carroça, de botas castanhas por fora das calças, apeando sacos de cenouras, caixas de couves, batatas, nabos, rabanetes. O encarregado pesando a comida numa balança estragada.

5
Mas havia o oiro – a granada. As horas passavam-se como páginas. Na estação dos Correios, três idosos recebiam a pensão de reforma. Sorriam a amargura dos pedintes. Lá em baixo, na água negra, os peixes vermelhos.

6
Toda a manhã não vi uma criança. Os pássaros desciam pelas pedras que pontuavam o ar. Vinham catar pão à terra, vinham catar larvas e palavras, vinham cantar.

7
À tarde, sentei-me no muro atrás da casa. Passavam na estrada raparigas de boca muito vermelha: como se sangrassem uma papoila pelos dentes, como se falassem de um tanque negro. Era tudo tão terrível quanto a terra ao sol.

8
Este é o tempo em que me vou sentando. Um rasto de homens (e de noites; e de nomes) escurece as folhas escritas pelas árvores. Alguns animais passam, monarquizados pelo silêncio competente dos animais – quando eles parecem pessoas que só pensam e não dizem.

9
Nunca assisti, mas garantem-me que, noutros verões, crianças se descalçavam para afogar os pés muito brancos na água vermelha de peixes negros, em baixo, no tanque. As sombras avolumavam-se nas costas das crianças.

10
Devo ter chegado tarde – devo partir cedo. Não é aqui, ainda, a última fogueira. As manhãs ardem, é certo. É certo que as noites queimam. Os pássaros recolhem os casacos, nem duas palavras dizem à despedida. Se as direi eu? Fecho os olhos – e o dia.

Foto: Pombal, 15 de Abril de 2007
Texto: Caramulo, tarde de 17 de Abril de 2007

17/04/2007

Obrigado, Pombal

O lançamento do Licor, Sabão e Sapatos foi no sábado, 14 de Abril de 2007, em Pombal. A festa foi muito bonita por causa das pessoas que lá foram e lá estiveram. Permitam-me que não refira nomes individuais. Agradeço, comovidamente agradeço.

Próximo lançamento: Coimbra, 23h00 do dia 20 de Abril de 2007, no Massas Café-Concerto, Zona Industrial da Pedrulha, Armazém 8. Até lá, até já.

D.A.

12/04/2007

Passos em Falta




A noite é recente na manhã já alta.
O sol torra a sombra ao arvoredo.
Passos imprimem precoce falta
a quem, passando, passa por medo

da falta um dia, antes sentida,
depois cobrada dia por dia.
A vida falta à mesma vida:
noite recente, amanhecia.


Foto: Caramulo, manhã de 6 de Abril de 2007
Texto:Caramulo, manhã de 12 de Abril de 2007

11/04/2007

Mais Nada - histª 64 do Anoitecer ao Tom Dela




1
O pior que me poderia acontecer, penso eu hoje sem de facto pensar muito nisso, nem foi o que me aconteceu. Quero dizer: não há um único facto que lamente ou de que me arrependa a ponto de o meu equilíbrio mental e de a minha vida física entrarem em rota de colisão. Não. No fundo, a verdade é que me não aconteceu nada. E eu estou vivo. Eu sou vivo.

2
Recordo sem dor quase tudo o que recordo. Até já sou capaz de, a propósito disto ou daquilo, contribuir com a minha própria experiência disfarçada de princípio moral, vinheta de enciclopédia ou anedota-do-português-do-francês-&-do-inglês. Quando se fala de gajas, por exemplo. De gajas ou de empregos – dá o mesmo. Digo eu.

3
Digo eu aquela manhã fria cuja luz parecia a pele das facas, a manhã do dia em que me deram, finalmente, trabalho, foi há dois ou há vinte anos, dá o mesmo. Era para começar logo no dia seguinte, na manhã a seguir. Respondi que sim ao salário mínimo e desandei para o bar das bombas – e no bar das bombas estava aquela a que hoje chamo ainda Joana, mas era Lúcia.

4
Ela tinha, a Joana, um carro cor-de-laranja e baixo como uma salamandra. E falava alto ao balcão repleto de camionistas e de chulos da bola. É claro que tinha atraído as atenções gónadas todas. Pedi uma bifana e um copo de traçado – e fiquei a ouvi-la. Devo ter ouvido com mais olhos do que os outros, porque passado pouco tempo ela já só falava para mim. Penso eu.

5
A maior parte dos gajos era uma maior parte de fato-macaco cinzento com as nódoas de massa consistente e de óleo que fazem parte. Uns com barbas, outros com trinta e tal anos, e todos sem sítio para onde ir. Dava para ouvir a tipa que ali tinha parado, sempre era quase diferente das outras tipas e das outras paragens. Lá fora, as petrolíferas americanas diziam poucas letras mas diziam-nas com muita cor – ao contrário dela, precisamente, que falava a pretibranco mas muito.

6
Vai-não-vai, passou a hora-da-bucha para os mecânicos, ficámos ela e eu e a empregada de balcão. Pedi um café duplo e perguntei-lhe se queria alguma coisa. Queria. Que não podia conduzir em condições por causa do gesso que lhe fazia do pau do braço direito uma espécie de giz para crianças gigantes. E que precisava de alguém que lhe conduzisse a salamandra até à meia-noite. Só não disse que meia-noite de que dia. Eu disse que sim.

7
Era para ir resgatar a filha dela. O tipo que tinha a miúda dela nem era pai da garota. Tinham vivido dois anos juntos, os dois primeiros da vida da filha, logo a seguir ao nascimento da Mónica. Mónica era a filha. O pai-mesmo estava preso e acho que ainda está. Eu não. Estou só vivo.

8
Fizemos cento e oitenta quilómetros a cento e vinte. O tipo e a miúda viviam atrás de outro café de outras bombas. Não estava ninguém na casa, que era um cubo de tijoleiras com janelas de papelão de frigoríficos. Fomos para o café e esperámos. Às seis da tarde, seis e meia, ela pirou-se. Eu fiquei no café das bombas. O tipo vinha beber aqui enquanto ela levava a menina para o carro. Eu saía do café e levava o carro com elas lá dentro.

9
Não houve tempo para nada. O tipo não veio nada beber. Parece que tratava bem da miúda. À volta do emprego e da escola, iam os dois para casa e ficavam lá até que chegasse a mulher que ele tinha arranjado depois da Joana. E ficavam lá os três e eram uma família. Só que a mulher trabalhava no café das bombas e reconheceu a Joana de fotografias e viu logo que era a Lúcia.

10
Parece que o tipo foi avisado a tempo pela mulher, que me deixou sozinho ao balcão e foi a correr para a casa traseira. Quando a Lúcia, por causa dos nervos, começou a bater com o braço de gesso na porta, o tipo já tinha arrecadado a Mónica no quarto da miúda com a mulher, que tinha entrado pelas traseiras. Depois ele matou a Lúcia com um ferro e foi preso na mesma cadeia onde está, acho eu, o pai-mesmo da miúda. A única coisa que aconteceu por causa de mim foi eu, tendo dado boleia à Joana, ter dado boleia à Lúcia. Mas mais nada.



Texto:
Caramulo, tarde de 28 de Fevereiro de 2007
Foto:
Viseu, 4 de Abril de 2007

10/04/2007

Noventa Anos

Daniel dos Santos Abrunheiro
(10 de Abril de 1917 - 24 de Abril de 1994)



Vivo, o meu Pai completaria hoje 90 anos.
Uma rosa para ti, Velhote.

09/04/2007

O Verão do Camionista Holandês - histª 69 do Anoitecer ao Tom Dela





1
O Verão de 1991 foi trágico para seis mulheres que, ao longo de quatro quilómetros de uma estrada nacional da região oeste do País, praticavam a prostituição. Uma a uma, as seis mulheres foram encontradas mortas. Os corpos eram trapos tristes. O assassino nunca foi capturado legalmente.

2
As suspeitas mais fortes da Polícia Judiciária recaíram sobre um camionista holandês de grande curso. Detido e interrogado, teve de ser posto em liberdade por escassez de provas. À saída do último interrogatório, o suspeito riu-se para os fotógrafos da imprensa.

3
As vítimas apareciam invariavelmente despidas da cintura para baixo, mas sempre calçadas. Ao pescoço, usavam o último colar: um risco de navalhada vermelhejando no alabastro. Nas carteiras, o dinheiro feito na imitação do amor estava intacto.

4
Os nomes delas traíam as idades decrescentes: Ivone, 52 anos; Ermelinda, 49; Nazaré, 45; Paula Cristina, 37; Joana Alexandra, 28; e Tatiana Vanessa, 17 anos. Todas tinham vários filhos de vários homens. Ivone, Ermelinda e Nazaré eram alcoólicas. As três mais novas eram drogadas.

5
As três mais velhas trabalhavam por conta própria: o movimento que geravam não justificava a cobertura de um empresário. Paula Cristina, Joana Alexandra e Tatiana Vanessa justificavam. Paula trabalhava por conta de um segurança de discoteca. Joana e Tatiana eram protegidas e exploradas por um brasileiro ex-jogador de futebol distrital.

6
Encontravam-se todas as manhãs, muito cedo, no bar da estação de serviço. Comiam bolos de bacalhau e bebiam vinho branco. Tatiana bebia laranjada. Por fazer anos no dia em que foi morta, tinha tomado vinho do Porto. Todas brindaram. Foi a primeira vítima do camionista holandês.

7
O camionista holandês foi morto a tiro de pistola pelo segurança de Paula Cristina. O antigo suspeito preparava-se para encerrar a temporada de Verão com a degola da que seria a sétima das suas vítimas: Maria da Luz, de 42 anos. Maria da Luz trabalhava sozinha. Passou, por gratidão, a alugar-se por conta do segurança.

8
A Polícia nunca pôde provar que o agora empresário de Maria da Luz tinha sido o anjo da vingança. Interrogou-o e libertou-o. À saída das instalações da Judiciária, o salvador não sorriu aos fotógrafos. Meteu-se no carro e, porque anoitecia e era sexta-feira, foi trabalhar.

9
À hora da morte, Joana Alexandra estava grávida. O pai biológico do feto não foi determinado. Não era o holandês nem o brasileiro. A questão e o filho morreram com ela.

10
Por causa da auto-estrada nova, a estrada municipal ensombrada pelos crimes do Verão de 1991 perdeu muita da antiga circulação. Disso se queixam as mulheres vivas que substituíram as degoladas. Disso se queixa também o jovem concessionário do bar das bombas, que, à data dos crimes, era mais novo até do que Tatiana Vanessa.



Foto: Caramulo, noite de 17 de Março de 2007
Texto: Caramulo, tarde de 28 de Março de 2007

01/04/2007

Sabadesíodo – Trabalho e Dia




I. Sete Sétimas Naturais

Esquecimento controlado é o que devemos exercer
sobre o passado. O mesmo quanto ao futuro,
que só duro pode ser – e há-de ser.
Sábado à tarde, no barbeiro, o espelho
tosquiava-me excessos nascidos da cabeça: e
eu muito desejo fazer o mesmo ao meu mesmo
tempo, à minha vida mesma.

Toda a estima me é preciosa.
Em viagem, a estrada é que vem.
Nublam-se os olhos bastas vezes de lágrimas
lembradas. Não agora, que sétimas
componho para circo e pão de minha
vida de antedomingo.
Que quando chove também pingo.

Uma alegria escura – desde que me lembro
de lembrar-me. Quando tudo era coevo
do mesmo corpo que eu habitava,
no próprio tempo habitava
um rapaz do meu nome para
outro futuro, não este.
Mas é este, este.

Defesas-centrais contra a memória,
os olhos pontapeiam, ríspidos, rápidos.
Marilyn Monroe no Niagara,
o velho Popov palhaçando medalhas
de campeão de colheres caindo em malgas
soviéticas.
Mais o corso das estéticas.

Falamos, vivendo, duas línguas
– que é feito, minha Mãe, da tradução?
Distingui-las, sim, eu distingo-as:
como já disse numa gravação.
Os comedores de farinha obedecem ao sábado
das pastelarias. As tardes ’inda são frias,
dias e trabalhos, trabalhos e dias.

E noites. Trabalhos e noites. Luares arrendados
em crochés de secas mãos avoengas,
um vento de tules dançando sem corpo
nas salas de abandonados sanatórios
sonhados pelo terror do menino
incapaz de esquecer em frente, por
mais sétimas.

Mansões bruxuleiam azeites católicos.
Santinhos arrefecidos de encruzilhada
vêem cruzar-se lobos e bandoleiros.
Pés roxos anelam unhas ígneas.
Perde-se a menina mandada a recado
– no bosque ou em Lisboa.
Um rio corre além, trás de seu mesmo esquecimento.



II. Cinco Quintas Memoriais

As mulheres guardavam sabonetes e tranças de mortas
nos roupeiros de pinho envernizado a castanho.
Os sabonetes eram de estrelas-de-cinema.
As tranças eram das mães das mulheres – ou
de alguma filha.

Os rapazes de 14 anos, não tardava, faziam 60.
Subia no frio o algodão tóxico das fábricas.
Estudavam contabilidade à noite com bics
de escrita fina e lápis nº 2 da Viarco.
Tossiam sexualmente filhos muito cedo.

Rubis de plástico adornavam bocas de viola.
Cantava-se um pouco contra a própria vida.
Pintores de paredes garganteavam cerveja
por luxo mandador do dono da obra.
As tranças cheiravam a sabonetes falecidos.

Sobre cómodas e psychés lumbravam retratos
que não lembravam a vida mas o passamento.
Tudo era tão católico, mesmo sem Deus.
O Benfica vigorava, no estio o Verão
ardia de frio, vou ser campeão.

Tenho estas lembranças. E mais, por teatro,
confesso ter nascido só em 64.
Mas a coisa ’inda era: tão triste e tão pura,
que o ontem parece ser coisa futura.
Um homem sozinho, sozinho se atura.



III. Três Tercetos, Não Mais

A boca é uma romã horizontal.
Acontece a grainha morder o fatal.
Fatal não é o involuntário.

Fatal é a escolha que não escolhe.
O mar que te seque, a chuva te não molhe.
A transparência anil do abecedário.

Um homem enxuto, da carne e do osso,
sobe o coração a maçã de pescoço.
A angústia feliz tem escrito muitos versos.

Foto: © Sandra Bernardo, 27 de Março de 2007
Texto: Caramulo, tarde de 31 de Março de 2007

Canzoada Assaltante