29/12/2013

Última crónica de 2013 para O RIBATEJO - Rosário Breve n.º 339 - in www.oribatejo.pt



Aritmética de rebanho

Digo-o de cor mas não à pressa: a 8 de Março próximo, é de celebrar o primeiro século decorrido desde a magia de maravilha daquele   momento/limiar em que, acercando-se de uma cómoda alta em perfeito transe de criação, um tal Fernando Alberto Pessoa Caeiro deu à luz, e de um jacto, os poemas de O Guardador de Rebanhos.
Esse mesmo ano quatordécimo do XX foi o do rebentamento da famigerada Grande Guerra, também chamada Primeira Mundial (como se toda e qualquer guerra, por invariavelmente configurar o crime da desumanidade contra a humanidade, não fosse sempre mundial).
E foi também, já agora, o do nascimento de Alberto dos Santos Abrunheiro, meu Tio paterno e o mais perfeito exemplar da mais exemplar solidão pessoal que já me foi acontecido conhecer. Amputado aos dezanove anos de uma das pernas no mesmo ano de gangrena da ascensão de Hitler à chancelaria do Reich e da, por cá, infame Constituição salazarenta que pros(ins)tituiu a ratazanaria do Estado Novo, esse meu também Alberto atravessou a vau o almegue desolado da própria existência, a qual se lhe finou, sozinho ele como à chuva um cão sem coleira, a 14 de Agosto de 1980. Outro catorze para outro Alberto, portanto: aritmética de rebanho.
Destas águas passadas, confesso, se movem os meus moinhos, quiçá se não de mais. São, por assim dizer, a minha cinemateca portátil, pois que, surda e gestual à maneira de cinema-mudo comigo sozinho na plateia, sempre me deixa re(vi)ver o-que-lá-vai no cumprimento da ameaça de nunca mais voltar.
Entre o ano que aí vem e o que ora se nos acaba, parece-me bem (mal) que o Diabo já veio e já escolheu: mais do mesmo e p’ra pior. O contumaz e relapso desGoverno da Nação, em inquebrantável imunidade ao mais simples civismo como o daltónico ao arco-íris, tudo (des)fará em proveito do piorio.
Passos continuará sempre inapto e inepto, incapaz sempre de entender o Barão de Itaraté: “Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.”
Já o inefável Portas não há-de ter, dentre as dezenas de milhar de fotocópias que à escancarada sorrelfa esmifrou ao xerox do Ministério da Defesa, uma mera folheca A4 que lhe recorde o que Virginia Woolf recordou, que foi aquilo que fez a Lady Winchelsea escarnecer do autor de Trivia, um tal John (curiosamente) Gay: “Mais lhe competiria andar à frente da carruagem do que andar nela.”
Resta-nos, dos vigentes, o mineral Cavaco, cuja rigidez malar trai dele a propensão facínora para a lagrimeta de esguicho provinda da flor de plástico à lapela de mau cómico. Porque, de entre tantas mais coisas, a “preocupação” dele para com os reformados se resume a dois utentes: ele próprio e a própria mulher dele próprio.
Em 2013 como em 2014, tudo isto me parece ser de sem-tirar-nem-pôr, tão-só ressalvando, da geral canalhada, a rapaziada de toga-tunga do Tribunal Constitucional, benza Deus a tais santinhos deste mais estábulo do que Estado.
À guisa, enfim, de conclusão, isto está pró péssimo e não vai p’ra menos ruim. Optimismos tolos, sirva-se deles o acéfalo de serviço à porta da sopa-dos-pobres em arroubo de caridadezinha sazonal. A verdade é sermos, um a um(a), dez milhões de pategos sempr’agradecidos a Vossa Senhoria, o bonèzito estendido como língua de pano, o joelhozito dobrado em ângulo tipo-Cova-da-Iria ante a azinheira do Poder. Como é verdade também subirmos todos já a encosta nascente da Serra do Caramulo, em cujo cume pontifica o quarto sozinho e crepuscular do sanatório que os dois Albertos, o que era meu Tio e o que guardava rebanhos de tinta por veigas de papel, escolheram para, respectivamente, morrer e nascer – dois actos existenciais que o próximo ano não promete propriamente vir a saber distinguir.

26/12/2013

Entrada n.º 40 de BAILE SOZINHO ou O INVERNO DE QUELUZ - noite de 10 de Maio de 2013, sexta-feira

40


                                                                                                                                               
                                                         
Aquele homem é lento por causa de uma doença
chamada idade,  acontece muito nesta Cidade.
Queimo a boca de roxo com um cigarro branco.
Apetece-me falar com um amigo, mas não tenho
saldo no telemóvel, é quase tudo 96,
na mocidade era diferente, telefonava-lhes

para casa dos pais, tudo era fixo,
talvez por isso envelhecer seja tão móvel
e tão quieto ao mesmo tempo,
a gente sabe que vai morrer,
afia um lápis mas sabe que vai morrer,
abre-se em livro e depois morre.

Sou muito atento aos ócios preocupados.
As pessoas filosofam nos Cafés a propósito
de coisas como o arroz-doce e o trigo-roxo
e a subserviência e a carreira e os impostos
mas depois na internet borram-se todas,
vê-se-lê-se logo que não sabem escrever.

Eu aqui em Leiria passo muito à porta
da casa onde viveu o Eça-Padre-Amaro,
sinto logo muita pena de mim por causa do naturalismo,
fiz na quarta-feira 49 anos,
coisa que nem o Pessoa nem o Ruy Belo fizeram
mas o Eça sim, o Eça fez tudo em apenas 55, parece mentira.

23/12/2013

Um dos momentos de ouro da Língua Portuguesa é protagonizado pela pena de João Roiz de Castelo Branco.
(E "ditos" pela divina Amália com pauta de Alan Oulman, então...)


Cantiga sua partindo-se

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Gosto ·  · Promover · 

19/12/2013

Rosário Breve n-º 338 (penúltima do ano) - in O RIBATEJO de 19 de Dezembro de 2013 - www.oribatejo.pt

Young Acrobat on a Ball, 1905 by Pablo Picasso


Nem o palhaço se lembrou desta da avó e da bezerra

Perto de minha casa, num vasto terreiro ermo que só os ventos de marítima origem usam franquear, acampou agora, por e para um mês, um circo. A tristeza do costume: espécie em lona de acampamento funâmbulo-cigano, é presídio de animais tristes e condenados à prisão perpétua sem qualquer culpa formada, tugúrio de artistas tisnados dourando a cárie da gargalhada postiça sem riso dentro e castiçal de bandeirolas virente-rubras tipo Euro-2004 com o mesmo resultado (da) final.
Aderindo aos maus tempos d’agora, todo o santo dia aquele pagode de pano encardido e desbotado ladra stum-stuns de bárbara cacofonia de discoteca equivalentes a descomunais arritmias cardíacas que sobressaltam a passarada num raio de dez milhas terrestres e me inviabilizam, pelo menos até 6 de Janeiro próximo, o passeio beira-fluvial do dia (que para mim é às seis da manhã, Inverno ou Verão, que começa).
Não se trata, todo este ror de repugnâncias minhas, de ter alguma coisa contra a esfarrapada nação circense. Trata-se tão-só de nada ter a favor dela, por mais que tente. Poucas coisas nesta vida me são tão instantaneamente deprimentes quão os circos. De menino que assaz me fazem mal à pituitária lírica. Na cidade marítima onde veraneávamos (sim, tempos houve já em que as famílias operárias também veraneavam – e nem era muito longe dos ricos frequentadores do casino, do ténis-clube, do hipódromo de contraplacado, do chá-dançante e das casadas com os oficiais da capitania), dizia-Vos eu então que, na cidade marítima onde veraneávamos, o circo era fatal como a morte da avó (ou da bezerra, no caso dá o mesmo).
Reparai: tenho cinco anos e recordo, como se agora fosse, as jaulas inçadas de ímpias moscas atormentando os leões mais magros, mais famélicos e mais tristes do mundo; o patriarcal elefante padecendo a insuportável humilhação do exílio e com ar de quem sonha ainda poder um dia deixar correr, ou morrer, o marfim ao mesmo campo-santo de seus livres antepassados indiano-africanos; o ar de barbeiro pelado dos chimpanzés, tão parecidos sempre com os nossos primos da Beira Alta; a lustral gordura alvinitente da gentil senhorita assistente do atirador de facas; o palhaço sem pingo de graça mas muita pinga de bagaço e de cachaça; a mulher-às-vezes-aranha-às-vezes-das-barbas lavando e pondo a estiolar ao vento marinho suas ceroulas museológicas e suas cartas de um amor antigo que se recusa a secar; o fadista internacional que nunca passou nem a norte da Mealhada, nem a sul de Portel, nem a disco gravado, a Oeste como a Leste; a arrogância toleirona do Director de Arena, esse patusco dos bigodes retorcidos em parêntesis para sussurro da frase em linha dos lábios e sempre com aquela casaca de granadeiro napoleónico que não tirava nem para tomar o banho que nunca tomou; e o lixo que cada fim de época balnear aquela malta abandonava ao dissabor eólico da praia cercana.
Por não ter eu salvaguardado ainda, ou já, o dinheiro q.b. para ir habitar o deserto, levo com o circo à porta. Isso me fez, antes de enviá-la em definitivo ao jornal, telefonar esta crónica a um Amigo a quem também os circos deprimem sem remédio. Ele fez muito que sim logo às primeiras instâncias respiratórias do primeiro parágrafo. Também ele redesceu logo a menino, logo de novo assistindo, como se agora fosse, àquilo a que pelas aldeias chamavam “comédias”: famílias andrajosas que, queimadas do frio e do mau hábito da fome, pandeiretavam e símio-realejavam por as eiras e os fontanários das paróquias as últimas maravilhas de uma ilusão que há muito deixara, já então, de ser a primeira.
E agora isto: acontecer-me que a escrita desta crónica acabasse por me cabisbaixar o brio – como se tivesse ido ao circo. Ou como se, havendo finalmente logrado adormecer, adormecido sonhasse com o leão liberto, liberto de homens e de moscas e de verões não africanos que nunca voltam a ser o de 1969, esse outra vez livre e forte rei fazendo rugir a altífona goela à aparição da gentil senhorita, também ela farta, e liberta finalmente ela também, do sacanita que lhe atirava facas.

13/12/2013

Erwin Blumenfeld - Holy Cross In hoc signo vinces - 1967


Erwin Blumenfeld - Holy Cross In hoc signo vinces - 1967

05/12/2013

Rosário Breve n.º 336 - in O RIBATEJO de 5 de Dezembro de 2013 - www.oribatejo.pt

Do fundão do mar

Em recente madrugada álgida e petrificada de cristal, como é da época e de lei, derivando eu não acompanhado pela avenida deserta das seis da manhã, aconteceu um fragmento de folha de jornal vir, à maneira de famélico cão perdido, aninhar-se-me aos pés. Toda a vida tenho tropeçado em lixo (do humano inclusive), pelo que não liguei e segui em frente, rumo ao Café onde diariamente procedo ao desjejum de cafeína, nicotina & versos.
– Olhe o senhor Daniel que traz aí qualquer coisa agarrada às canelas – avisou-me, maternal como sempre, a D.ª Lena, como sempre reiterada pelo olhar da senhora Ermelinda, que quando olha para os homens nem é para as canelas que olha.
Toda a vida tenho olhado para baixo (mas não quando é gente que olho), pelo que accionei a grua do pescoço no ângulo descendente: era o pedaço de jornal. Rezava assim:
“(…) revelaram tratar-se de uma pessoa com ‘superficialidade afectiva, ausência de remorsos, manipuladora e com elevado grau de reincidência’”. Mais nada.
Reli o trecho não sei quantas enésimas vezes: “revelaram tratar-se de uma pessoa” enquanto tilintava a colherinha no rebordo da chávena; “com superficialidade afectiva” enquanto abafava na faringe o delic(i)ado arrotinho a açúcar torrado; “ausência de remorsos” enquanto buscava e rebuscava o nómada do isqueiro em todos os bolsos menos no certo; “manipuladora” enquanto fumegava a melhor passa do Camel de enrolar, por ser a primeira do dia; “e com elevado grau de reincidência” como este mesm’O Ribatejo, periódico que, à imagem dos melhores casamentos de longo curso e média duração, ainda se dá uma (vez) por semana.
Por padecer da incontornável e irredimível mania de me ver como espécie de escritor, fiquei perplexo de propósito ante tal papelucho. Qui-lo ominoso. Qui-lo código de qualquer coisa mística, como a besta do Dan Brown, o inenarrável Paulo Coelho e essa fotocópia sem toner de ambos chamada Zé Rodrigues dos Santos. Fiz até de conta que às canelas se me tinha vindo prostrar o pedacículo que faltava aos Manuscritos do Mar Morto. Ou que era, mais grave e mais especiosamente ainda, a única genuína evidência documental da entrada “Miguel Sousa Tavares” no Dicionário da Não-Literatura Portuguesa dos Tristes Editoriais Dias da Contemporaneidade. Ou, ainda, que se tratava de alguém a dizer mal de alguém só para ter alguém de quem dizer mal a ponto de ser também considerado alguém, coisa que sempre me repugnou, como é disso cavalar prova cabal esta crónica mesma. Decidi indagar.
Paguei a bica a prestações, esmaguei a segunda metade do cigarro e, sempre de papeleta nas unhas roídas por causa dos nervos, rumei ao quiosque jornaleiro do meu distinto e anónimo Amigo, que se chama Gervásio e não se distingue. Herdou do pai a banca e, como o pai, lê todos os dias, à frente de toda a gente, aquela porra toda, menos as revistas com gajas de mamas expostas ao sol e à chuva porque a Sé é ali mesmo ao lado da traquitana dele – e já se sabe que isto de sexo & religião é como álcool & condução. (Dizem eles, como abaixo se não verá.) Mas adiante. Eu assim para ele:
– Ó Gervásio, de que jornal, de que data e sobre quem há-de ser este bocado de prosa?
E ele assim p’ra mim:
– Há-de ser, não: já foi. Se está escrito, já foi. Só há-de ser p’ra sempre se estiver bem escrito e for bem lido. Deixa cá ler.
Eu deixei. Ele leu. Então o Gervásio, que é uma maravilha de óculos como ele há poucas, que devia mas era ser director da Biblioteca Nacional como o foi aquele Carlos Reis professor que nos lixou a todos com a bênção do abort’ortográfico, o Gervásio, dizia eu, disse-m’assim:
– Diário de Notícias, 3.ª feira, 3 de Dezembro de 2013, pág.ª 4, Ano 149, n.º 52 829, 1,10 €.
E então eu, aflito de propósito e numa ânsia de investigadorzeco à maneira do Jaime Coiso do Montalbánzito de cá, vulgo Chico-Zé Viegas, eu então assim:
– ‘tá bem, pá, mas isso é sobre quem?
E ele, esvurmando-me as ganas que eu tinha de que fosse o Passos, o Portas, o Cavaco, o Sonasol ou o SuperPop, sentenciou:
– Pá, tem pouco interesse, é o costume, um padre e crianças masculinas tudo-ao-molho-e-fé-em-Deus, é só a avaliação psiquiátrico-pericial daquele que era vice-reitor do Seminário do Fundão e abusou de meninos.
Fiz finca-pé cá na minha:
– ‘tá bem, ó Gervásio, ‘tá muito bem, mas o gajo, por viol’ipendiar crianças, apanha dez anos. Já os outros (o SuperPop e o Sonasol) de que te falei, os superficialmente afectivos, os sem pinga de remorso, os manipuladores e altamente reincidentes, nem um ano apanham por abusarem de dez milhões.
E não apanham, como eu do chão apanhei um pedaço de jornal que, dizendo pouco afinal, afinal tudo diz – tanto do “fundão” como do mar-morto em que este País deixou que o tornassem.


Canzoada Assaltante