Nos idos de 80 e picos, uma rapariga, elevando no ar um cigarro distraído e cedendo ao torpor filosófico da digestão, ciciou: “O Tempo chega sempre. O problema é que nem sempre chega a tempo…”
Sem talvez se aperceber disso, a moça emanou uma dessas verdades irresistíveis que sulcam o inconsciente colectivo. Porquê? Ora, porque uma coisa é o Tempo maiúsculo, o Tempo de caixa (muito) alta que dispara séculos a uma velocidade-luz, e outra é o tempo minúsculo, o tempo comezinho, o segundo em que se boceja, se está triste ou se pensa em ir comer qualquer coisa porque se faz tarde ou porque chove. Vestindo agora uma roupagem mais cultural, o Tempo é um dos grandes rios temáticos que irrigam o planeta da Literatura. De toda a Arte, melhor. O tempo de Ulysses, o romance de James Joyce que muitos consideram ser a grande obra do século XX, é de apenas um dia. Mas, num dia, a vida encontra tudo para ser o que é: encontro, desencontro, perda e adiamento, esperança e morte, sedução e moeda, solidão e cheiro, ruído e praia. Outra enorme obra do século é Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. O fim último da obra é o da própria anulação do Tempo. Através de que ardil? Através do ardil mágico da evocação ininterrupta (a Memória), do não cortado fio da consciência que lembra, chama, apela, conta.
Os relógios moles de Dali apontam, por aparente paradoxo, a mais rija condição: o Tempo é sólido e alimenta-se de seres vivos, aos quais gasta para sobreviver.
Porque a verdade também é esta: se ninguém houver que o conte (no duplo sentido de contar por palavras e por números), o Tempo não está, não é. Não chega.
“Sou capaz de concordar com isso”, diz, do fundo do tempo passado, a rapariga. E esmaga o cigarro no cinzeiro que o empregado trouxe mesmo a tempo.
Região de Leiria, 8 de Junho de 2000
Sem comentários:
Enviar um comentário