25/02/2016

Rosário Breve n.º 445 - in O RIBATEJO de 25 de Fevereiro de 2016

Roma 0 – Cristo 1

Não se vê uma nuvem. Manhã perfeita. Sem uma gelha. Sem um ponto-persa. Revérberos coriscam no dorso do rio. É muito bom ter, da noite, renascido meridional, atenta a graça da jornada novel. Ao arrepio de antanhos recentes, a luz é de uma pureza riscável à unha. Bêbedas de viço, as aves matinais tripulam os veios azuis, as ramas verdes, o espaço branco, o ouro impagável da totalidade natural. Respirar é uma conspiração de açúcar. Não há por aqui sevandijas, sicários, bandoleiros &/ou corsários. Há gente (não muita) que se desestarrece ao sol franco, pintalgada de joalharias coloridas. Uma dama, que vinha a seu chá-meia-torrada, comete a ontem impensável extravagância da imperial-com-tremoços-mas-é. Um cavalheiro, tido por sisudo, mete-se a graçolar com cada bebé-de-colo que lhe passe ao alcance das unhas aparadas. Fiapo de eternidade, o instante vale um coalho de cal na colina-esmeralda. Não são vaidade, hoje, as lentes-fumadas de marca tornando de mochos cegos os rostos humanos. Não são (tão) frívolas, hoje, as poses do tipo perfil-egípcio com que os leitores do Expresso alardeiam aquela cultura-post-moderna-de-saco que nunca entenderam nem vão entender. Mesmo hoje. Mas adiante. O Sábado, coleante jibóia inócua, vive & deixa viver em uma paz inocente de barbáries. A duas mesas desta sobre que se amanha a crónica pró-Ribatejanos, um miudito faz rir o pai por-causa-de-quási-nada – nada, excepto o facto tremendo de um ao outro pertencerem para sempre. O preto e o branco não dão cinzento, hoje não. Das prévias jornadas februárias, os grandes ventos & as iradas chuvadas não campeiam nem enxurram nem descabelam nem geram gemer. É um bocadito como se o senhor Adão & sua/dele dona Eva não tivessem jamais sido compelidos à reforma mutilada. Com outro bocadito (de atenção, agora), é perfeitamente possível a ressuscitação das espécies extintas pelo plástico do Homem, pelos homens-de-plástico – ou pelo Demo que os não carregou a todos. Até o Tejo (mas, hélas!, só à distância apartada) parece um moço lavado em aparato de pé-de-alferes com a Lezíria que o bebe & deixa beber. Uma pessoa semicerra por instantes as persianas ópticas – & a música, à maneira de toda esfera arredondada pela claridade total, põe-se logo a violinar vivaldismos de passarada sem caçador derredor. A Dívida-Pública? Bah! Hoje (mas só hoje, sabemo-lo bem, que já há muito comemos broa rija), consiste tão-só no que, todos & cada um, devemos ao que é de todos: o perfume das maçãs portuguesas, o patriotismo rescendente do bacalhau, os bons-dias dados como pão novo, a saciedade cervejada daquela tremoceira dama, o patusco que aqueles bebés-de-(tira)colo acham o senhor-sisudo-de-outros-dias. Torpor pasmaceiro – a termonuclear prumo, o vertical meio-dia dardeja todo este santo lirismo sem caruncho, sem génio & sem progénie: este dia é filho-único, como Aquele que sabemos. Como na vida, todavia-toda-a-vida, em instantes se faz tarde. Os telemóveis tornaram a guinchar. O patrão da pastelaria ralha desabrida & altiaudivelmente com a empregadita mai’ nova – que com as duas mais antigas não se atreve ele. O momento é chegado de nos retirarmos à la française. O exemplar do Correio da Manhã foi parar às mãos do miudito causador de patergargalhadas, que a feltros iridescentes o vai exsanguinando.
E ainda: sem uma nuvem sobre que descansar a augusta cabeça nevada, o Senhor, lá tão de cima, é obrigado a vigiar, cá tão bem baixo, Francisco – achando, como eu acho também, que o Argentino não é católico, mas sim cristão só. E sem gelha per(ver)sa, o danado do Homem.


20/02/2016

Rosário Breve n.º 444 - in O RIBATEJO de 18 de Fevereiro de 2016

Lontra-metragem (I & II)

I
Temos aqui na parvónia um amigo que, há anos não estreitos já, passa por uma fase nada boa da e na vida: é macho, está sozinho e quanto mais anseia por fêmea, mais fede ao peixe estragado da falta de predação. Eu & o resto da pandilha passámos a tratá-lo por Laçubra, que é mimoso acrónimo para Lontra do Açude de Abrantes. É cruelzito, sabemo-lo bem – e por isso mesmo nunca mais lhe chamaremos Zé-Tó.
Ele já teve mulher, de quem se deslontrou por causa de ela ter passado de foca a leão-marinho ao cabo de parir cinco crias muito feias, muito cegas e todas desdentadas que só queriam era mamar a-vida-toda-e-mais-um-dia como as parcerias público-privadas. O ele não arranjar rocha nova em que se ponha ao sol(o), deve-se também ao facto de ele se banhar em fossas que, de tão turvas & emporcalhadas, são mais cépticas do que sépticas. Cada transição Inverno-Primavera, a coisa piora: o cio fá-lo chorar onanismos de leite derramado em vão. Nessas alturas de mor pranto, nós-os-amigalhaços nunca lhe falhamos, mimando-o & ninando-o com esta lengalenga: O Laçubra não tem quem cubra! O Laçubra não tem quem cubra! E depois fazemos como na creche: Na-na-na-nãn-nãn-na!-Na-na-na-nãn-nãn-na! E no fim rimo-nos muito dele sem ser p’ra ele e vamos beber copos para nos rirmos ainda mais e prontes.
Na mocidade, o ainda-Zé-Tó era muito bom em natação. Em águas então limpas, era gajo para nadar 4-minutos-4 seguidinhos antes de vir à tona. Agora, à tona é coisa a que ele não vai, por mais que se esganice em excruciantes uivos à lua privada das lontras. Hoje em dia, o Laçubra amostra ao mundo aquele ar de afogado roído pelos crustáceos, em vez de ser ao contrário. Seria de meter dó, caso percebêssemos alguma coisa de música.

II
Com isto tudo do Laçubra, acabei perdendo espaço para o arremedo de crónica que aqui me trazia. Era artigalhada sobre as primatas, perdão, primárias para as presidenciais dUSAmericanos de Novembro próximo. Aquele circo que opõe burros a burros e elefantes a burros. E a lontras. Sim – e a lontras.
É que, em amaricano, Zé-Tó diz-se Donald. Mas a trump é a mesma. Entre gente que se dá ao luxo & ao lixo de imitar em cegueira as crias do Laçubra ao eleger figuras como o Nixon, o Reagan e os dois Bush, a hílare Clinton ainda é capaz de não ter de que se rir – como nós temos do Zé-Tó, cujo traseiro apimentado é nosso refresco. 

11/02/2016

Rosário Breve n.º 443 - in O RIBATEJO de 11 de Fevereiro de 2016 - www.oribatejo.pt

Isto se eu fingisse lembrar-me, disfarçasse saber do que falo

1. Das minhas felizes surtidas cometidas às terras de arriba-Tejo, uma assaz recorrente gravura que em retenção memorial se me impõe – é essa de o céu ser mais alto do que em outras (p)aragens do meu País inicial & terminal – vulgo Portugal. É mais alto, esse céu das lezírias subido. Ou mais chã, de diversos chãos, a perspectiva. Outro lance: o da lezíria de húmus-água-verde formosamente perlada a negro pelo touro ainda não chacinado em nome da barbárie chamada “tradição” tão característica de marialvas-monárquicos sem um livro na vida. Outra: as colunas de silêncio vertical subindo o imo da Igreja de Santa Clara, ali à santarena Avenida-de-Gago-Coutinho-e-Sacadura-Cabral, em tri-nave clarissa-gótico-mendicante. Sim: a memória dá-se-me a arquivoltas & a colunelos de rosácea. O esquecimento não usa pintura, nem usa azulejaria, nem sabe o que talha seja – por isso mesmo que a Morte, que nos não esquece, só ao Diabo lembra. Uma retenção mais, com V.ª licença: a de auferir, ao menos, metade da máxima doméstico-epigráfico-heráldica do senhor José Relvas (1858-1929), que “Glória e Vinhos” era. Fico-me pela segunda parte, incapaz da primeira. Assim seja, que assim é. Incontornável lembrança de subido cénico aparato é, ainda, a do Castelo de Almourol (Almorolan em 1129). Dele, as nove torres arredondam outros tantos aparatos de lançamento rumo-espacial – e tantos séculos antes do Cabo Canaveral dUSAmericanos.
(Intervalo agora para nótula romântica: Foi na nabantina Ilhota onde roda a madeira hidráulica do Mouchão que de amor se mutuamente irrigaram & irroraram o senhor Arménio Tomé & sua doravante gentil senhora Lucrécia Vasques. Foi em 1950. Ela era de boa-família, não sendo má a dele. Casaram-se de electrodoméstica vontade, pós o inócuo ósculo semiamorangado de beiços virginalíssimos, na Igreja de Santa Maria dos Olivais que, nos Mil-Centos-&-Tais, Gualdim Pais de propósito reconstruiu para eles-Lucrécia-&-Arménio. O preto-e-branco das fotos esponsais perpetua a mocidade do amor emoldurado pelo pétreo veludo do púlpito de Quinhentos, pelo sorriso transparente de Nossa Senhora da Anunciação & pela sacristia manuelinamente ajanelada. E foram felizes para sempre – durante o sempre até 1981, ano da morte dele, e 1982, marca terminal dela, que sem ele podia mas não queria nem quis.)
2. De Abrantes (a recordação não é minha, é tomada de empréstimo a um pater-avoengo meu, vivo no Ano n.º 130 a.C., que era de gaio nome Caio como o poeta Valério Catulo e que integrou a horda milícia de Décimo Júnio, geralcentudecurião Bruto a valer), isto: o castro lusitano que então Roma tomou à força valia o chão do Castelo abrantino subsequente. A tais politeístas de excelente Língua & Direito forte sucedeu o monofásico Cristianismo, dedicando a Cidade à égide de Vicente & João, santos, as igrejas maiores do rincão.
3. No retorno a Norte (a que sou obrigado por falta de carcanhóis que me permitam aquisição de choupana palafita nas avieiras Caneiras), passo pela Batalha. Já Ribatejo não é, eu sei. Mas é: se arriba, tágide há-de ’inda ser a musa escrita. Ou assim: assim a morte de Mestre Afonso Domingues causa, por obra suplente do catalão Huguet, a derivação de mendicante para flamejante do soberbo estilo gótico, ora já sem Clarissas como no Louriçal. Mas é que já escrevi(vi) sobre essa epifania. Fi-lo assim:
4. - A Secreta Vitória
Fazem as pequenas pedras os grandes edifícios. E pequenos, por igual ideia, parecem os homens que organizam as ditas pedras de modo a que a História encontre marcos no tempo que passa. Que passa para as pessoas, não para os monumentos.
A Batalha, toda ela, vila e mosteiro de Santa Maria da Vitória, evoca essa comparação. Não é possível, perante a beleza descomunal daquela pedra, evitar a íntima inquietude de sermos, nós pessoas, ínfima areia. E que só ela, junta e trabalhada pedra, é eterna.
Ainda assim, retenhamos de uma visita à Batalha (que é, como em tantos outros casos de amor, uma revisita) a noção de que a alma colectiva existe. E que olhando nós o que invisíveis e dissipadas mãos ergueram, também mãos damos ao que eles quiseram olhar por dentro e de frente: a alma da História, a nave do Tempo, as abcissas da Memória.
Visitada, revisitada, nunca esquecida, a Batalha exalta deste modo uma vitória mais secreta que a de Portugueses sobre Castelhanos: o triunfo da arquitectura sobre o esquecimento. Ou a morte da Morte, por assim dizer.


04/02/2016

Rosário Breve n.º 442 - in O RIBATEJO de 4 de Fevereiro de 2016 - www.oribatejo.pt





O siluro não tem futuro
(sermão aos peixes sem Santo António ao barulho)



1. Tenho para mim & por certo que não é cabal a designação de siluro-europeu para a nova praga que assola o imundiciado Tejo da nossa vida tágico-trágica. Não é que esteja errada. É que está incompleta. Falta-lhe especificidade. Siluro-alemão. Assim é que está bem: siluro com alemão a seguir. É peixe tipo gato que come carne? É alemão. Come os espécimenes mais pequenos? É alemão. Nem às avezinhas beira-fluviais permite sossego? É alemão. Até o seu cocó é tóxico quando em aglomerado cardume? É alemão. Tenho provas de que é alemão. Uma metàforazinha me serve de inegável & indesmentível evidência. Esta aqui: O Tejo é Portugal.
2. Portugal é o Tejo. Tal como o Rio sofre de poluentes (olá, Vila Velha de Ródão!; olá, Mação – sim ou não?; olá, Abrantes!; olá, Constância!); tal como o Rio se abaixa de caudal; tal como o Rio é entravado & bloqueado artificialmente por enrediços exploradores desalmados; tal como tudo isto – assim Portugal sofre de ofensas cumulativas ao seu ecossistema financeiro; assim Portugal se abaixa de cócoras para enfermar de atentados incessantes à sua biodiversidade económica; assim à ocidental praia lusitana acode a maré-negra em formato de orca-de-água-não-doce made in Berlim & desovada em Bruxelas com o beneplácito viático de Estrasburgo & de Wall Street.
3. Os Portugueses fazem de sável, de savelha, de saboga, de barbo – mesmo os cuniculófilos. O eixo Berlim-Bruxelas faz de silurus-glanis, que é o nome latino usado para disfarçar aquilo que vos disse: que o siluro é mas é alemão. Mas, ó pessoal piscícola meu compátrio, nota bem que o siluro só é siluro por enquanto. Para nossa haliêutica desgraça, e caso nos obstinemos em democraticamente seguir pela Esquerda, a voraz avantesma há-de passar ao formato do bem pior & famigerado lúcio-perca. Perca a gente a determinação, que assim desgraçadamente será como a gente se perderá.
4. Há muito que a máscara do espantalho teutónico caiu já. Aquela bocarra grande é mesmo para nos comer, à maneira do pedófilo lobo do capuchinho (precisamente, precisamente) vermelho. Ao arrepio da nossa Constituição & ao atropelo da nossa Soberania, o siluro-alemão quer (mais ainda) atirar dentuça omnívora via “alteração estrutural a nível (ou aníbal…) do rigor orçamental”, que é como se diz em economês “mais roubalheira com fartura, que a gente é que sabe, pode e manda”. O lúcio-alemão quer mesmo irrevogáveis (sem ser à PP) as medidas que nos foram coelhamente mentidas como temporárias. O bicho não descansa enquanto nos não infestar a Função Pública e nos não superhipermegagigataxar o IRS. A furtiva besta de fundão fluvial há-de dejectar quanto puder quando em cardume. Há-de continuamente alinhavar equipas técnicas (olá, Octávio Machado!) infamemente capazes de menosprezar quanto vale, sem ser em dinheiro, um centro de saúde, uma escola, um tribunal, uma ponte, um investigador, um enfermeiro, um operário da Rical, um reformado, uma criança.
5. Dispomos todavia de uma esperança sensata. Até leva, ou traz em si, o nome da nossa Capital. Refiro-me à maneirinha boga-de-boca-arqueada-de-Lisboa. É criatura lusitana, tem bebido uns copos e feito umas piscinas ali pelas Ribeiras de Muge e de Almoster, parecendo que no Rio Trancão também. Ora, é minha firme crença e minha férrea disposição que a boga não tem de ter medo do siluro. O siluro é tosco, é gordo, é pesado, é aleijado, é grotesco, é contranatura. O siluro-alemão rima com aberração. A boguinha nossa, não. É miudinha mas é nossa. É quase irrelevante mas é (d)a gente. A semelhança morfológica dela para com afins espécies ciprinídeas é a nossa própria semelhança para connosco mesmos. A boga deve pôr-se em voga. A única modificação que se lhe/nos pede, é esta aqui: que em vez de mandar(mos) bocas arqueadas, mande(mos) mas é o vozeirão a direito. A boga não pode esquecer-se de que duas vezes no século XX o siluro-alemão se armou em super-espécie invasora – e que duas foram as vezes em que foi arpoado à maneira na corneta. A boga deve acreditar que às três só é de vez quando o peixe se deixa morrer pela boca. Ou quando não passa de carapau-de-corrida.
Ora, a maneira que temos de interditar o futuro ao siluro é fazer-lhe ver, e de vez, que, para quem somos, bacalhau já não basta.

Canzoada Assaltante