(Pede-me Edite que lhe ponha por escrito aquela história do pássaro caído na neve, parábola da verdadeira e da falsa amizade. Assim seja, pois, com uma vénia ao Zé, que me a contou.)
Imaginemos um montalto de serra na hora-antecâmara da madrugada. Sítio de eternidade, não faz sentido invocar a posição dos ponteiros do relógio. A noite não foi ainda desflorada pela rosácea solar, embora um livor quase verde de tão cinza (à maneira de uma oliveira de luz) vá estendendo seu alto lençol no estendal do céu.
O ar range de gelo, a esta hora desumana. A neve, cega de tão branca, mais contrasta o negrume das escarpas agrestes de em torno. São um sítio e uma hora despojados de caridade. Faz vento. Nada se ouve. Quase nada se vê.
Duas figuras
É então que (vindos porém de onde?) surgem, neste cenário ainda não magoado senão de si mesmo, duas figuras. Silhuetas torcidas da dor de existir, trata-se de um homem e de uma vaca. Pungente cromo da luta pela sobrevivência, a bicéfala imagem bifurca a ancestral unidade do humano com o bovino, hoje industriosa serviência mas outrora primevo parentesco. Siga.
Respondamos primeiro ao “(vindos porém de onde?)” de início do parágrafo anterior, que quem retoriza obscura pergunta clara resposta lhe acabe dando, a bem da Nação. Clara resposta, pois: provêm o homem e a vaca do mais subido cume da serra, onde o anémico sol da véspera (tem vésperas, sim, também ela, a eternidade) logrou a oneroso custo derreter a álgida farinha de água a que chamamos neve por economia de literatura. Só no cume possível, a magra erva foi forragem de sustento da não menos magra vaca, que agora vemos descendo, tão precária mas tão feminil, a encosta de regresso a casa. Os quartos traseiros, aparafusados fracamente no débil espinhaço alquebrado, mal suportam a gelatina das frementes tetas de senhora, por assim dizer. Regressa por igual, à vaca igual na condição, o homem, menos dela amo que dela, afinal, parceiro. O vento corta.
Posto que: madrugada cedinha, em hora obliterada de presente por força do eterno pretérito em que todo o sofrimento se volve, um homem e sua vaca regressam a casa. Dizer uma vaca e seu homem não seria piorar, mas fique como está.
(Nota: nada de preconceitos, por favor! Não é por ter sido nado e criado em tão bruta e abrupta região que o elemento humano desta parábola tenha de ser tido como abrupto e bruto. Como vereis, bem pelo contrário: suas extrema delicadeza e atitude pungente derreterão o cardiograma até do mais bestial leitor.)
Preto no branco
Imaginemos ainda que, coisa de 15/20 metros à frente do primeiro passo da vaca e do segundo do homem, uma coisa acontece. A coisa acontecida é de puro fulgor cromático: no ínclito manto de neve, cujo branco é fulminante como um sonho de cego, um minúsculo ponto preto agita a pura antítese: preto mínimo no máximo branco, o ponto rufa o insone estertor que freme a tarola da aflição. É um passarito.
Um passarito, sim. Cortado sem mercê pela cutelaria do vento invernal (‘v’ por ‘f’, infernal), a minúscula ave caiu para morrer. Mas debate-se ainda com a questão mais antiga: não morrer sem ter vivido.
Pressuroso, já comovido, inquieto já, o pastor acode a essa ansiosa topografia plumitiva. E dá com a avezinha, que se prepara para expelir o derradeiro suspiro. Combinando de pronto emoção e razão (ao jeito de António Damásio, Doutor, em ‘O Erro de Descartes’e livros seguintes), o bucólico pastor decide agir. Soergue a ave e acalentá-la tenta no bojo roxo de suas mãos postas em concha de precisa preciosa prece. Mas roxas se lhe demoram as mãos, posto que geladas.
Drama e salvação
Outra carnação aquecer com gelo carnal? Termometramente improvável. Já desespera o nosso bom pastor quando a Providência, do alto vinda como a avezinha, providencia assaz escatológica mas sensata solução: é que, nisto, a vaca dá de derramar farta bosta de estrume. Sabido que a vaca vulgar, qual ser humano, fornalha por dentro idêntica temperatura à bípede espécie, teremos que a providencial dejecção andará pelos 37,4 Cº, mais cêntimo menos cêntimo. Bendita desova: o homem, pressuroso sempre mas de todo pragmático, à bosta acode de passarinho manual. Seccionando com a sinistra a benigna descarga vacum, amorosamente nela deposita com a dextra o terno e indefeso ícaro, aconchegando depois os hemisférios digestivos em torno do desfalecido ser.
Mais não podendo suportar a incerteza do êxito (pois que a certeza do fracasso tanto obriga à vanidade do esforço), o homem afasta-se o mais cerce, retomando de casa o rumo, como quase todos nós.
Alegria! Segundos incontáveis corridos, ao humano tímpano acode esta vivaldiana interjeição primaveril: “Piu!”. É o passarito, que, acalentado pela bosta centígrada, revive. Feliz, justo nobel de si mesmo, o homem sorri para dentro e segue caminho, nem para a retaguarda olhando. Há toda a razão para supor que até a vaca mesma sorri, maternal.
Perdição e anunciação de moral
“Nem para a retaguarda olhando”, dissemos. Dissemos bem, pois que o pastor não olha para o que atrás deixa. O que o leitor vai ver, Edite lembrar e Zé anuir, infelizmente, não o verá felizmente o bondoso homem da nossa parábola. É que não apenas ao ouvido do bom pastor chegou o redivivo “piu!” do passarito. No alto ar, cortando o próprio vento, uma ave de rapina também ouviu. E se bem ouviu, melhor desceu. Outra sorte de parábola de pronto descreve, assim dando azo, muito rapace, à mesma dela sobrevivência. Quer dizer que a águia não perdoou. Fácil e vulnerável como uma costureirinha, o pequenino ponto, cuja breve salvação tanto vem de nos comover, é vítima da fome da rapinante, também ela criatura de Deus, por mais que a contrariada fé nos gema o adverso. O passarito foi papado e pronto e ponto.
Ponto? Só se for parágrafo.
Moral em partes três
Tão longo e arrastado conto deve servir-nos, ao menos, para a extracção de uma moral em três partes. Três, conta que se diz Deus fez e que por igual serviu a Júlio César na descrição da divisão da Gália Transalpina aquando da guerra que ali levou a romana hoste. Suma façamos: um pastor, uma vaca, um pássaro aflito, um gesto de auxílio, um assassínio alimentício de documentário de vida selvagem: de que moral, ou moral trindade, falamos afinal? Desta(s):
a) Nem todo aquele que te mete na merda é teu inimigo;
b) Nem todo aquele que te tira da merda é teu amigo;
E sobretudo
c) Quando estiveres na merda, nem “piu!”…
Dito e (des)Feito, Pombal, 2004
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