24/12/2016

PALAVREADO COM DISCRETO REMATE PESSOANO - in Rosário Breve nº 486 - in O RIBATEJO de 22 de Dezembro de 2016 - www.oribatejo.pt

Palavreado com discreto remate pessoano



1 A páginas tantas da sua História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga cita um tal “Caro”. Trata-se talvez (não tenho a certeza) de Elme-Marie Caro (1826-1887), filósofo francês que escrevinhava na célebre Revue des Deux Mondes. Nesse trecho, depois de enumerar os degraus da tomada de auto-consciência da humanidade (que se desanimaliza instituindo a família, a lei da cidade, a domesticação das espécies animais e das forças da Natureza), acontece uma ressalva notável: “(…) a civilização expulsando a barbaria, mas experimentando retrocessos terríveis desta barbaria, como por uma espécie de lei de atavismo que acorda, segundo nos dizem, de tempos a tempos no homem, os instintos ferozes de avós desconhecidos.”
Anotei a passagem, que agora dou à publicidade por partilha convosco. Para mim, são palavras que vingam pela infeliz actualidade: como se os séculos XIX & XXI se mesclassem os idênticos algarismos romanos por que são nomeados. Veja-se isto da Alemanha, mesmo agora: outro camião, outro assassino, outras vítimas mortais; isto da Turquia, com um assassinato em directo à hora da janta; isto tudo da Síria há tantos anos/séculos. Há pouquito, o Vietname, El Salvador, o Iraque, o Afeganistão, Timor-Leste – e mais uma imparável carrada de etc.
Não acho nada que a religião tenha a ver com isto. Trata-se do costume: petróleo, diamantes, narcóticos & matérias-primas essenciais ao forno devorador das grandes produções e dos consumos multitudinários. Trata-se da voragem do Poder, enfim. Deus, chame-se ele Alá ou Jeová ou Manitou ou Zeus ou Júpiter ou Inti ou Rá ou o Diabo por eles todos, pouco é para aqui chamado. Não alimento quaisquer ilusões quanto a isto. E não, não vou com o Pai Natal ao circo.
2 Então vou aonde? Vou, como os marinheiros fazem ao barco, pôr ao largo o coração. Como o que matou Bruce Lee não foi a brucelose, é descontraído que atiro as passadas aeróbicas rumo à minha doença favorita: ver o mundo local com olhos de lápis. É sempre maravilhoso. Exemplo imediato: passagem do Serafim das Arrufadas a bordo de um transatlântico novo – o titanic do dia é uma brasileira egressa de Goiás que ele conheceu durante um Sporting-Arouca ali naquele alterne logo a seguir às bombas da Repsol, vocês sabem e estão mesmo a ver. Adoro ver o desplante de satisfação reverberando nas trombas do Serafim: de Rôsemére do lado direito & a tilintar do esquerdo o porta-chaves do Mercedes importado de Frankfurt em sétima-mão (como a Rôsemére, aliás – digo: a sétima-mão, não a cidade das salsichas-de-lata). A felicidade é coisa tão pouquinha de tão fácil, pois então não é? O Serafim não é desses lingrinhas dados ao verso-livre ou às maluqueiras da pintura cubista, nem ao dodecafonismo intoleravelmente atonal ou ao polemismo azedo do tal Teófilo Braga. Não. O Serafim é feliz: instituiu família (tem dois filhos da Graciete Cabeleireira e um outro de uma estagiàriazita zarolha do Centro de Emprego), domesticou quatro cães, três periquitos, dois árbitros dos Distritais & uma porca para o S. Martinho que vem, anda contente com a nova Loja do Cidadão ao cabo de cinco anos-sant’engrácios, tem pára-raios no canhão da chaminé – todo ele é, enfim, um civilizado. Não é daqueles tristes que, tendo medo da própria sombra, nem sombra de si mesmos chegam a ser. Népias disso. Como ganha a vida com um esquema de facturas-falsas que não dá trabalhinho nenhum & é sempr’àviar, é muito gajinho para singrar na política, tipo presidente-da-junta ou menos.
Quem quiser provas de que só digo a verdade, toda a verdade & nada menos que a verdade, que vá com o Serafim ao circo: mas do flanco esquerdo dele, que à direita vai a Rôsemére navegando.
E é de coração-ao-largo que navegar continua a ser preciso.


15/12/2016

22 DEZEMBROS NA MELHOR COMPANHIA - in Rosário Breve nº 485 - in O RIBATEJO de 15 de Dezembro de 2016 - www.oribatejo.pt





22 Dezembros na melhor companhia



Mantenho desde 1995 um registo minucioso de leitura(s). A esse acervo vou de quando em volta acender lume na obscuridade do tempo que passa. Acontece-me muito, aliás, proceder a re-leituras por causa disso: como lerei nesta idade o que em outra mais moça li? Desta vez, porém, revisito o caderno para dar cabedal retrospectivo à presente crónica. Catarei apenas alguns títulos – e apenas dos 22 Dezembros entretanto acontecidos.
A 15 de Dezembro de 1995, concluí a frequência de Seis Propostas para o Próximo Milénio, do brilhantíssimo Italo Calvino – cá está uma releitura a fazer em breve.
A 12/XII/96, cheguei ao cume da Montanha Mágica, de Thomas Mann. É obra monumental, que relerei também – e sem qualquer receio de me parecer, duas épocas volvidas, menos montanhosa.
Dezembro de 1997 foi mês-Cortázar: leituras de El Examen (a 17) e de Octaedro (30), além da já então re-leitura de Blow Up e Outras Histórias (também a 17). Tal como Calvino & Mann, o grande Argentino é santo cativo do meu bibliómano altar pagão.
Dezembro/98 começou da melhor maneira: a 8, Peregrino e Estrangeiro, da maravilhosa Marguerite Yourcenar.
Na madrugada de 28/XII/1999, concluí a primeira volta integral ao magnífico Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, do nosso boníssimo Manuel António Pina.
O derradeiro mês do ano 2000 foi ocasião propícia para o usufruto de uma obra-prima: a 23, Conversa na Catedral, do peruano Mario Vargas Llosa. Livro profundíssimo, de fortíssima construção.
Na última madrugada de 2001, tive a companhia de uma Senhora. Esclareço: companhia por correspondênciaEngano Astucioso, da ladina Ruth Rendell.
Em Dezembro de 2002, li muito Maigret /Simenon.
Um ano depois, aprendi muitíssimo com um brasileiro que é para aí umas cem (ou mil) vezes melhor cronista do que eu: Luiz Fernando Veríssimo – a 4, Comédias da Vida Privada (101 Crónicas Escolhidas); a 29, Novas Comédias da Vida Privada; nos entrementes veríssimos, papei, a 21, do também brasileiro Fernando Sabino, o excelentíssimo romance O Encontro Marcado.
Acelerando ora o passo antes que o espaço se me acabe:
de Dezembro de 2004, destaco O Ente Querido, de Evelyn Waugh (a 6) e La Symphonie Pastorale (a 21), de André Gide;
XII/2005: teatro do insigne Harold Pinter – O Quarto (a 21); Feliz Aniversário (a 27); O Serviço, a 29;
XII/2006: dentre o mais, a biografia Joan Manuel Serrat, belo cantor catalão (d)escrito pelo gigante, e catalão também, Manuel Vásquez Montalbán (a 26);
XII/2007: andei mormente pelas anglografias – o fantástico (na dupla acepção do termo) E.A. Poe, mais H. Walpole, S. Warren, Prosper Mérimée, E.P. Oppenheim, A. Berkeley, juntando-se a estes insignes senhores o casal Cole (George Douglas Howard & Margaret);
na tarde de 8/XII/2008, li Sobre Não Estares, do nosso Joaquim Jorge Carvalho;
na noite de 28/XII/2009, foi a vez de O Livro da Confiança, de um senhor padre chamado Thomas de Saint Laurent;
o último livro consumido em Dezembro/2010 foi, na noite de 16, de uma estrela literária alemã, Peter Handke de sua graça: Uma Breve Carta para um Longo Adeus;
em 2011, excelentíssimo início do mês terminal: Crónicas de Fernão Lopes (escolhidas e anotadas pela sábia senhora D.ª Maria Ema Tarracha Ferreira).
[Calma, que estamos quase a chegar ao presente.]
2012, dias 4, 10, 13 & 27/XII – viajei pelo Portugal Século XX - Crónica em Imagens, com direcção de Joaquim Vieira para o Círculo de Leitores: é obra monumental que (nos) abarca como Povo de 1900 a 2000, à razão de um volume por década – finíssima síntese documental;
Dezembro de 2013 foi de altíssimo quilate – frequentei com grande proveito, se aproveitamento não, Guy de Maupassant, Brecht, D.H. Lawrence amaila densíssima senhora que houve por nome Virginia Woolf: respectivamente, Bel-Ami (a 6), Histórias de Almanaque (a 12), O Raposo (a 14) & Um Quarto que Seja Seu (a 30);
dos demais de Dezembro/2014, sublinho, do magnífico historiador francês Georges Duby (grande escritor!), As Damas do Século XII (a 12), e a Correspondência 1905-1922 do nosso Fernando Pessoa, a 17.
Já em Dezembro do ano passado, calhou a vez a um bom achado d’alfarrábio que entretanto fizera numa banca de rua (por um eurito): La Crise de la Démocratie Contemporaine, obra ominosamente saída em 1931, ou seja, no imediato pré-hitletarianismo, da autoria de um tal Joseph-Barthélemy.
No corrente mês do ano que, areia entre os dedos, se nos acaba, li finalmente de ponta a ponta Os Simples, do nosso poeta Guerra Junqueiro, lírica precedida de um precioso ensaio de Moniz Barreto intitulado A Literatura Portuguesa no Século XIX.
Hoje, quinta-feira, 15 de Dezembro de 2016, estou a ler o noss’ O Ribatejo. E tu também. 

08/12/2016

FALA O CRÓNICO - in Rosário Breve nº 484 - in O RIBATEJO de 8 de Dezembro de 2016 - www.oribatejo.pt



Fala o crónico



Uma volta sem pressa nem ânsia dei por beira-rio, já a tarde declinava o latim do recolhimento de si mesma. Visto de fora, levava-me um corpo como todos: saco de vísceras atado em cima por um olhar em constante retrocesso daquilo a que os pios chamam alma mas os ímpios, lembradura. Desafeito a procurar o que seja ou a esperar o que for, não levava tema nem me traziam motivo, fito ou assunto para a crónica. Ia por ali disponível às possibilidades combinatórias do mundo local – o qual, por artes & manhas do pensamento matizado de doideiras líricas, nunca é apenas o chão que se pisa ou o céu que se não voa, nem apenas o plátano de que se partilha o ar vertical, nem tão-só a imitação de rio que cada um é porque feito quase todo de água também.
Como os doidinhos-mansos, é verdade que me fui apanhando a sorrir sem interlocutor visível, por exemplo ao ocorrer-me aquilo do ex-casamento que tanta má-língua faz salivar por edis terras de Tomar, ou aquilo do afiar-navalhas-amolar-tesouras pró-Autárquicas-2017 por bandas de Abrantes (na forja laranja mormente), ou pela fatal Santarém em que se pranteia (mais uma) degradação a céu-aberto (cf. pavilhão desportivo), ou aquele anedótico tiro-no-pé da petição anti-vinda do Papa a Fátima, ou in Cartaxo a confessa & assumida desunião que grassa entre as corporações bombeirais do distrito, ou o anacronismo da velha ponte entre a Chamusca e a Golegã mais estreita do que a minha carteira, ou o fétido cancro em que o Tejo se volve mercê de um punhado de gananciosos que se não reconhecem feitos da mesma matéria dos rios, da chuva, do mar – que formas são todas do colostro mater-universal.
A todo este rol enxotei porém como a moscas desalmadas. Se por mim o mundo se não perde, também por mim se não salva. Esperto, fui auferindo a branda brisa que em pleno voo caduco rodopi’anim’ava das árvores as folhas terminais: belo é o strip-tease outonal. Abanquei o rosto-de-baixo em uma afável & amável esplanada servida por & de raparigas. Já o entardenoitecer esp(o)alhava derredor sua sangria de açúcar colorido. Era um daqueles instantes sem data que nos maculam de nostalgia: espécie de eternitarde tardia & não-eterna. Aí te apercebes sem esforço de teres nascido sem que to perguntassem & de ires morrer sem que te respondam.
Por precaução posológica, receitei-me uma cerveja fria, de que me ungi qual cristão mui dado à comunhão da fé-33-centilitros. Fui amainando os meus cavalos íntimos até uma espécie de dormência sem pecado nem humilhação.
Um toque no ombro – fecham cedo, à semana. Paguei com as últimas moedas da terça-feira, rederivei o retorno pelas pègadas da vi(n)da, achei-me recomposto em formato de última-página: é-me crónico que a crónica acabe acontecendo.
Para minha boa-sorte, no postigo da página só se me vê o olhar, não o saco visceral que ele ata com guita de lentes bem mais progressivas do que eu. Do que eu – e do que uns quantos que em Tomar, Abrantes, Santarém, Fátima, Chamusca, Golegã & Cartaxo, de Tejo à vista, etc. etc. etc.


01/12/2016

SIMPLESMENTE MARIA - (republicação) - in Rosário Breve nº 483 - in O RIBATEJO de 1 de Dezembro de 2016 - www.oribatejo.pt





Simplesmente Maria




O título desta crónica é copiado.
Era como se chamava uma fotonovela (tenebrosa como todas as foto, rádio e telenovelas) que na minha infância enfraqueceu as coronárias a muita costureira. Directamente provinda da pobreza, a Maria em questão chegava à cidade montada num burrinho delicodoce, alcançando, depois de peripécias mil ou novecentas, o clímax e o casamento. Não m’alembra o resto da história, pelo que passo a especular.
Tudo acaba quando acaba em casamento. Ou não? Dissestes vós alguma coisa? Não? Posso continuar? Enfim, agora que o meu outono particular começa amarelecendo até as folhas dos cadernos onde lapijo estas histórias irremediáveis, dou por mim pensando em Maria. Deve ser ela, hoje, mulher dos seus cinquenta e muitos. O mais certo é ter-se separado do engenheiro ou médico ou arquitecto ou advogado de sonho com quem, então, aliançou suspiros. Deve ter-se fartado das patilhas dele, do apartamento em Santo António dos Cavaleiros, das pontas arrefecidas de Ritz a boiar no laguinho triste da sanita. Talvez ele lhe tenha prometido um futuro de manteiga que com os anos se volveu margarina, simplesmente margarina. Quase aposto que ele teve e manteve amantes enquanto ela se aborrecia no cabeleireiro a erguer vasos de cabelo à senhora Knorr e à senhora Maggie e à senhora Vaqueiro e à senhora Dabri e à senhora Tokalon e à senhora Creme Byly. Mas também pode ser que, aos cinquenta e tal, se tenha ela arranjado com um rapazinho directamente provindo da pobreza para tentar na cidade uma carreira de cantor pleibeque ou coisa assim. (O bom de escrever é que tudo pode ser.)
O futuro torna-se, com o passar dos anos, menor do que o passado, essa é que é essa. O passado é o sítio mental onde as donzelas pobres, escarranchadas em burrinhos, continuam chegando à cidade pirilampada de reclamos luminosos na noite cosmopolita. E é também, bem mais bastas vezes do que gostaria, o meu sítio. Nele busco, com a ponta do lápis, as referências mais ínclitas, os mais egrégios avós, os heróis de um mar a que basta somar ia para dar Maria.
Maria que, sozinha de novo, liquida o salão de cabeleireira e regressa, não de burrinho mas de Clio, às berças natais. A taberna tornou-se snack, o padre já não é Sacramento mas Eliseu, a primária fechou por falta de crianças, o outeiro onde as cabras pastavam com lenta filosofia está agora crivado de rápidas maisons fechadas onze meses ao ano, a avó de Maria simplesmente morreu de ter noventa anos há mais de trinta, os cães já não comem broa e o pai de Maria, que lhe perdoou a fuga, lacrimeja pingentes de velho comovido à aparição da filha, cujo telemóvel começa a tocar quando ela o abraça.
Estou, sim pois, é assim, agora já não dá, não, se voltar é porque acabaste de vez com essa sirigaita, tu é que sabes, tu é que sabes, só tenho de saber que acabas de vez, é assim, isso e as beatas no laguinho triste da sanita, caso contrário não dá, Bernardo. Bernardo promete que dá.
O passado acaba sempre bem.

Canzoada Assaltante