31/10/2020

VinteVinte - 95 (mas tesourado)




95.

 

FOLHETO A MAL POR BEM

 

Coimbra, segunda-feira, 6 de Julho de 2020

 

(I)

 

(De manhã, a notícia do falecimento, aos 91 anos, de Ennio Morricone, o grande compositor italiano.)

 

II

 

Alice Fontes recorta do magazine-tv-cine

o rosto a-página-inteira do especial Rufus Sewell.

Não é hoje que o faz, fê-lo há alguns anos.

Alice há muito não é adolescente, mas mesmo assim.

Mesmo assim, gosta de belos rostos masculinos.

Os que, enfim, ela acha afins do que acha beleza.

Tem os rostos emoldurados pelas paredes.

John Osborne. Alan Sillitoe. Alan Delon, claro.

Alan Bates. Oliver Reed. Brian Cox. Charles Baudelaire, claro.

É uma casa sozinha de pessoas, não de rostos.

A casa está como quando os pais morreram.

O que foi mudando: mais um rosto recortado.

Salgueiro Maia. José de Castro. Antonino Solmer, claro.

Casa-galeria, sem notícia que diga aos costumes.

Alice vive de ser senhoria, várias casas arrenda.

Santos Manuel. Paulo Renato. Paul Newman, claro.

Dispõe de um automóvel azul-escuro. É dona de si

– e de uns quantos bonitos homens, por assim dizer.

 

(III)

 

(E ontem morreu, aos 81, o realizador português Alfredo Tropa.)

 

IV

 

Saí um pouco. Encontrei o que procurava no exterior: um sítio à sombra aberto à brisa. Não se está mal. Calor a mais no resto deste mundo limítrofe. Duas mulheres bebem laranjada fresca: parecem-me portadoras de folhetos-jeovás, mas pode ser que não, que sejam folhetos do Lidl. Acalmada a cal interior com uma botelhosa de Super Bock, reabro em 1888 o meu Van Gogh epistológrafo.

 

V

 

Rostos colectados por aquela senhora Alice?

Falei-Vos dela porque sim – mal, não fará.

Direis talvez a outros algo do que V. disse.

Mal nenhum nisso, disso mal algum virá.

 

Que sobra destes versos: lentilha atirada ao areal.

Que sobra dessa lentilha? Areia versejada.

E dessa areia?

Um rosto ainda não nomeado a carvão.

 

(...)


30/10/2020

VinteVinte - 94 (tesourado)


© DA – Coimbra, Bota Abaixo, às 9h33m54s de 22 de Julho de 2020





94.

 

PERMANENTE BANHO-MARIA

 

Coimbra, domingo, 5 de Julho de 2020

 

(I)

 

(O rosto de John Hurt.

O rosto de Ian Holm.

O rosto de Harry Dean Stanton.

Tenho-os a meu dispor, na matinée doméstica.

(...).)

 

II

 

O comboio desloca-se a tantos, quilómetros à hora em espaço/tempo. Numa das carruagens, a mosca voa a uma velocidade própria em espaço alternativo. Quatro dimensões em continuidade aberta a soluções. Assim, em corpo fisicamente finito, a memória parece infinita, urdindo ficção sobre o suposto Real – presente, pretérito e/ou futuro.

 

III

 

Carlos João Romantiga fez, a partir da Alemanha, viagens hoje quase esquecidas – se não ignoradas mesmo – a Espanha, Holanda, México & Itália. Edificou, para si & seus, segura fortuna no ramo da navegação mercante. O bolo fundamental está entesourado na ínvia Suíça, mormente Zurique. Não é em vão que Romantiga continua a ser designado por O Almirante-da-Mercante. É lendária a sua elegância altaneira; inimitável, o seu atavio vestimental; rutilante, o ruivo ígneo da cabeleira, que ao encanecimento pouco cede.

Tem obra patrimonial no âmbito da filantropia social. Antes de investir, por cá, em Viana do Castelo, Leixões, Figueira, Peniche & Lagos, associou-se a projectos de habitação operária de renda mínima ou nenhuma, conforme a situação de actividade laboral dos inquilinos admitidos. É sócio-emérito de diversas associações xadrezísticas do nosso litoral.

Do resto, é infinito de que mui pouco consta. Casou-se uma vez só – e para sempre. É pai há quarenta anos & avô há dezassete. Talvez seja natural de Penamacor – mas não há maneira de demonstrá-lo inequivocamente. É ele o primeiro a não ajudar. ~

 

IV

 

Em espécie de permanente banho-maria, por assim dizer, o pensamento abria constantes referências indexadas ao património. Manutenção & vigência da casa. Colheita exterior de elementos nutrientes. Manufacturação interior de cadernos capazes de, por assim dizer, diariodebordar a travessia.

No corrente Domingo, por exemplo instante, assim é tal-qual. Há bolo no forno. Os pardais foram alimentados. O próprio corpo foi à banheira desescamar-se. Água mineral gaseificada marulha sistem’adentro. Café bastante até ao entardenoitecer. Epistolografia de V. Van Gogh em pousio.

Ontem, sol em Vigo. Hoje, sol em Bilbao. Em 1979, aqueles rostos de que V. falei – mais o de Sigourney Weaver.

 

V

 

Hei notícia também de Caio Jerónimo Trajano Iroquez, que tinha nascido havia cinco anos quando a família se mudou de Bucelas para Coimbra. Era o ano 1938. Deu entrada na universidade aos dezassete anos, saiu dela médico com vinte e três. Praticou sempre nesta cidade. Poucos (muito poucos) sabiam ser ele quem se ocultava nos bastidores do pseudónimo plumitivo Germano Cruz Carreira, o esquecido autor de Volúpia Ibérica, de Samaritana Arrependida e Apóstata, de Entre Douro e Linho & de, já depois do 25, Ou Império ou Merda Alguma.

Era homem de pequena volumetria. Nunca retornou, nem por curiosidade nem por outra qualquer forma de interesse, a Bucelas. Morreu sem filhos, sem mulher & nesta página mesma.

 

(VI)

 

(E vou avançando vida pelas cartas de V. a seu irmão T. Aqui – até por se tratar das palavras de um pintor, ler é ver. Vou pelos olhos do grande Holandês. A fortuna só foi dele pela obra deixada, não pela riqueza que tantos fazem à custa da sua miséria voluntariosa. Mas a Obra…)


 

29/10/2020

VinteVinte - 93 (cortada aqui & ali)


Tudo ensina grandemente a nossa pequenez.




93.

 

ISTO ASSENTE

 

Coimbra, sexta-feira, 3 de Julho de 2020

 

I

 

De ontem para hoje, o mundo não melhorou nem grande nem pequena coisas. Pode ser que melhore logo, quando me sair o jackpot do euromilhões. Enquanto não, giro: de gerir & de girar: o dia. (...)

 

II

 

Celebro de antigos nomes a emissão ’inda luminosa.

Bosquejo íntimos sentidos que a atenção desfragmente.

Já joeirei muito, muito ’inda me falta, felizmente.

A vida que se tem, não há outra, esta é a preciosa.

 

Certas figuras configuraram em obra praticada o mundo.

Cada uma delas, cada mundo antigo renovado.

Joyce, por suíças, áustrias & franças, é Irlanda.

Lisboa é Pessoa, capital dos impérios todos.

 

Isto assente, há que continuar por Coimbra-em-acto.

Vi há pouco filmagens do Palácio da Justiça.

Recordaram-me certo domingo, certa pomba morta na rua.

As vísceras dela, comeram-lhas as irmãs, rica família.

 

Outra filmagem: d’algures-França, caminho entre montanhas.

Belíssimo ribeiro abrindo em cristal tal garganta.

A França-Natural é belíssima – e mais nunca lá fui.

Também já não devo ir, a não ser pela livralhada.

 

Vêde comigo: estiola-se sem leitura a memória.

Memória é releitura, sei bem que fantasiosa muita vez.

Mas é releitura – e portanto reescrita-em-acto.

Coimbra amanhã há-de ler-se hoje, que ontem escrevivi.

 

Fala-se agora do calor que aí vem.

Infeliz realidade, para mim muito infeliz.

Quarenta graus são um crime.

Se eu mandasse, decretaria dez meses invernosos por ano.

 

Não mando senão neste caderno.

Aqui posso algum refrigério contra a exterior fornalha.

Febre viral & coma calorífero?

Versos, versos & versos & mais versos.

 

Alguém há-de sobreviver.

A começar por alguns mortos, alguém há-de sobreviver.

Em quintas fechadas, alguns ingleses vínicos.

Em cabanas remotas, alguns noruegueses frígidos.

 

Lembro-me daquele homem passeando-se de cão em Th. Mann.

Daquele biólogo marinho no bairro-de-lata steinbeckiano.

Da furiosa realidade psicológica do criminoso dostoievskiano.

Da mais elegante inteligência geminada em Calvino & Cortázar.

 

(...)

 

À cabeceira da moribunda & minha Tia Maria, outrora.

Ela, por materno lado, e meu Tio Alberto, pelo paterno, caramba:

Rainha & Rei foram da mais extrema solidão arquetípica.

Modelos especulares das estrelas-cadentes, terminais.

 

Mui carinhosamente os repesco a ambos à vida possível.

Fundem-se-me muito, ela & ele, com autores venerados.

Tal mescla mente-memorial não é fantasiosa.

A solidão de Fernando Pessoa & a de meu Tio Alberto são irmãs.

 

Anoto a condição das condições limítrofes.

Algo de Van Gogh no senhor meu Pai: par’além até da pintura.

Algo de Madame Curie na inventividade da senhora minha Mãe.

Faço-o sem receio de (a)parecer ridículo a olhos ignaros.

 

Ocasiões há em que os sentidos a si mesmos festejam.

Alguma minuciosa alegria os move em harmonia.

Instantes são de uma paz inconsútil, meritória.

Entram na honra portátil da pessoa, são iluminações.

 

Faço por manter guardados os melhores bocados.

(Mas olhai que aos piores também, há que notá-lo.)

A sós no virente prado, tasquinha sem pressa o cavalo.

Eu guardo tais litografias de belos cavalos em belos prados.

 

Barroco & neo-realismo, tudo conta, faz parte tudo.

Assim também os quartos tão sós do celibatário Pessoa.

No fim, conta o que ficou escrito, gravado em pedra-papel.

É essa a herança em vigor enquanto respira(r)mos.

 

Cultores da rosa simples, almas capazes de dar os bons-dias.

Sim, alguma permanência vem sendo praticada em séculos.

Resgato da lama infecta quanta posso enquanto posso.

Não é fácil nem difícil tarefa: à sua autoridade adiro.

 

Funcionamos indivisíveis relógios pré-cadaverescos.

Todo um reino atapetamos de irremediáveis grinaldas.

Nasce-se & morre-se poluindo fraldas.

À sombra de latadas, os mais cautos ingerem refrescos.

 

Ainda há pouca meia-hora viajei por velho livro.

Pequeno, largo, pesado volume ele é - & delicioso.

Nomes & datas profusamente ele inscreve, o bem-dito.

Folheio-o ainda, enternecido como neto da avó ouvinte.

 

À claridade greco-algarvia não acedo há muito.

Tenho ficado por aquis nem sempre acertados.

Não resmungo sobre esses anos malqueimados.

Mais siso hei mudando cerce de assunto.

 

Azul azulejo cujo branco congrega toda a côr.

Palácio sem portões com galo-dos-ventos.

Raros transeuntes silhuetando o fio poente-horizontal.

Nenhuma lamúria, nenhuma vertente suicidária.

 

Este não é ainda o Quarto n.º 13 do Hotel de l’Étoile.

Isto não é Bougie, ali ao costado mediterrânico-argelino.

Teixeira Gomes venero de modo outro, em respeito.

Dele as claras linhas resgato à cegueira em que morreu.

 

Doçura crepuscular, demando-a sozinho sem pressa.

Vou apalaçando o meu deserto escorando-o de vocábulos.

Vocábulos próprios & alheios em agitada algaraviada.

Faço de amanuense, secretario lances bonitos.

 

Feios também. É passível de literatur’arte tudo.

O hediondo & o formoso. O obsceno & o lavado.

Chega a ser majestático: o alto-arbítrio (do) redactor.

Consola ser disso seguro – ao menos disso.

 

Consola por igual a bondade (herdada) para com os animais.

Humaniza muito mais do que ajoelhar na missa.

Ou do que lamber a bota ao amo ofici(n)al em vigor.

Ou, até, do que escrever versos infinitos finitamente.

 

(...)

 

Verdade que prefiro a chuva, mas não se me desdenh’ a luz.

Certo tipo de claridade refunda o ser em marcha.

Quando desço o monte de ter ido aos figos.

Quando colho espargos ou boas páginas abertas.

 

Tudo ensina grandemente a nossa pequenez.

A Poesia não é arte que se empreste, é de dar-se.

Certas rimas forçadas entravam a catarse.

O próprio azeite não escapa a certo grau de acidez.

 

Vi longes que à minha maneira volvi pertos.

Não fui em demanda de mercês, não sei aliás pedir.

Vou mais a funerais do que a baptizados.

Não tem que ver com religião, bem antes pelo contrário.

 

A palavra solta não conhece muros nem barreiras.

É preciso apenas que nos não colida a analf’ignorância.

Entre bípedes & o mim cavo a mor distância.

Sim, sei o que digo: digo palavras certeiras.

 

Desprezo profundamente ter-me dado a desbaratos.

Demorei muito tempo, mas volvi-me alfaiate.

Com giz & tesoura assino os meus mesmos fatos.

Peço pano a ninguém, esmolar é disparate.

 

(...)

 

Pois não se trata de enciclopediar comportamentos.

Comece-se antes por não poluir de lixos a terra.

Seja-se cordato na frase, limpo de unhas.

Propicie-se o aprender – e livre-curso ao prazer.

 

Eu sei que é escusado andar por aí ruybelando.

O mais certo é o pacóvio ’inda ficar ofendido.

Pode comer-se-lhe a mulher, mas não clube ou partido.

Eu sei que é escusado andar por aí perorando.

 

Depois de décadas de paroquiana TV público-única?

Vieram as chungas das cacas privadas.

Nunca as retretes foram tão ocupadas.

A merda é pertinaz & contumaz & cínica.

 

Paciência. Caligrafe-se a vida em outra direcção.

Baixinho já ao recanto rumoreja a orquestra.

O maestro faz de espaventosa abelha-mestra.

E as cordas mui zunem boa afinação.

 

Morreu Manuel Cintra este ano.

Tenho ali um livro dele.

Do pai dele também tenho.

São de riscar-se unha em pele.

 

(Sonhei com o Luís Manuel Vide Miranda.

Mês que vem, faz um ano de falecido.

Rimo-nos no sonho, não sei de que coisa miseranda.

Despertei apertado, triste & compungido.)

 

(O meu Gato espreguiça-se, é bonito de ver-se.

Boceja sem fundo, de paz saciado.

Pisca só de um olho, todo a derreter-se.

 

É como se renascera, pronto & preparado.)

 

(...)

 

Quando lia o Enoch Garden, certa perdida sexta-feira?

Isso foi há tempo, rés a uma mesa de ingleses.

As misses tomavam, curando bebedeiras,

lusas águas minerais, que eu também tomo por vezes.

 

Já os misters abocavam porto & cerveja

sem ter nada ar de frequentar a igreja.

Louros rubicundos, eram sobranceiros:

preferi-lhes o Tennyson dos versos porreiros.

 

Isso passou. Tenho depois nove anos, vou com o Armando.

Era na Vinha do Faria, mui antes dos prédios serem ali feitos.

É agora tudo depois de tudo, prédios & tudo.

Menos de amanhã. 


 

Canzoada Assaltante