27/06/2005

Salvador

Morreu no sono, de 22 para 23 últimos, o senhor do restaurante onde sempre almoço quando estou em Leiria. Os filhos vão garantir a continuidade do negócio. Quem diz negócio, diz vida. Os filhos do defunto hoteleiro vão continuar a vida. Sempre assim foi, sempre assim será.
O conhecimento da morte daquele homem chegou-me no último dia de 2001. Um dia como outro qualquer para se reconhecer a mais antiga das notícias: a da morte. Ainda assim, simbólico: último dia, passagem, futuro, certeza, incerteza.
A última vez que o vi vivo foi pouco antes do Natal, festa que ele já não viveu. Era de compleição miúda, tisnada, atenta e obrigada. Tinha unhas antigas e amarelecidas pelo sal das décadas. Olhava como quem reconhecia.
Mandei vir alheira (só com arroz) e pedi a um dos filhos que me esclarecesse as circunstâncias do passamento. “Tranquilamente”, disse-me. Ao balcão, observei o lado de lá, onde ele reordenava o pequeno e circular mundo de meias doses, sobremesas e azeitonas. Notei a ingratidão material dos objectos, que, também eles, teimam em sobreviver ao dono.
Chamava-se Salvador e era do Sporting. Foi pai dos filhos e pai de amigos em hora de necessidade. Está guardado no interior da terra. Se hoje aqui deixo isto escrito, por outra coisa não é que pela necessidade de lhe agradecer a maneira como, com um olhar, reconhecia o cliente. E por dizer sempre “boa ideia”, fosse o que fosse que escolhêssemos para comer.
Boa ideia, digo eu, foi o senhor ter existido.



O Correio, Marinha Grande, 4 de Janeiro de 2002

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