25/06/2005

Coimbra

Toda a gente já muito naturalmente se esqueceu daquilo de o Natal ser quando um homem quiser. Também, quem raio se lembraria disso em pleno fogo de Junho? O céu destes dias é uma fogueira alta. As tardes são alentejos longos. A praia, o campo e o rio são a santíssima trindade da estação corrente. Natal? Espírito solidário? Paz no mundo? O melhor é ir chatear as almas de outra freguesia. Está bem, eu vou.
A minha terra é Coimbra. Coimbra é a cidade sem futebol de primeira. Há por lá muitos estudantes. São mais ou menos um por cada dez garrafas de cerveja. A universidade lá está em cima, alta, altaneira, atrasada, doutoral, salsicheira, caduca. A velha Torre produz mais e mais desempregados com habilitações. Diz-se, porém, que nela andou Camões.
Sou de Coimbra, disse, mas Coimbra não é minha. Coimbra pertence aos barbados que tratam das vereações, das infinitas rotundas, do abate de árvores lindas e antigas. Coimbra pertence aos especuladores da habitação. Comprar casa em Coimbra é quase o mesmo que dar entrada para as águas-furtadas do Taj Mahal. Coimbra também é dos tristes homens-sexuais que bordam a marginal do rio à cata de rapazitos de aluguer. Soberana, catedrática, a cidade vende e compra hot dogs e hamburgers até às seis da manhã. Quando passa, o carro do lixo leva consigo a memória dos adormecidos.
Apesar de tudo, Coimbra é uma aguarela combinada a partir do verde-escuro do Choupal, do azul-faca do Mondego e do ouro-citrino das laranjas da Lapa dos Esteios. Do miradouro do Vale do Inferno, a cidade aparece em clarão postal: linda, humana, intemporal.
Faltam seis meses para o Natal, eu sei. Mas por causa do calor ou da melancolia física que o calor traz, lembrei-me de dar o presente deste beijo ácido à minha terra.
Sou de Coimbra, essa estranha terra adormecida à sombra da Torre da Universidade. Chamavam-lha a Lusa Atenas. Para muitos, é lusa, apenas. Lá, a cultura é quase sempre uma coisa de doutores. Lá, raros são os doutores com alguma cultura. A coisa dá mais para rotundas, abate de árvores, parques de estacionamento, capas e batinas, tapas e latrinas. Tenho pena, mas é verdade.
Apesar de tudo, gosto da minha cidade. Tem ruas bonitas e tristes. Há lá uma qualidade do entardecer só legível por quem lá respirou o ar de raparigas fluviais, o ar de laranjas boiando nas antigas cheias do Bolão, o ar das ciganas com um rancho de filhos a caminho da mata. Coimbra ainda é a cidade onde o meu pai e a minha mãe encetaram uma linhagem de pesquisadores de um ouro que talvez não haja.

O Eco (Pombal), 25 de Junho de 1999

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Canzoada Assaltante