05/07/2018

ADEUS, PAPEL - Rosário Breve n.º 562 e ÚLTIMO EM PAPEL in O RIBATEJO de um destes dias de Julho de 2018 - www.oribatejo.pt






Adeus, papel



Na passada segunda-feira, 2 de Julho de 2018, o telefonema de um Amigo anoiteceu-me a manhã. Reservo-me por enquanto o entristecedor motivo. Narro-Vos, todavia, o que se seguiu a tal.
Saí, a sós como toda a vida, às minhas vielas natais. Escolhi uma esplanada discreta para acampar a tristura portátil que me é própria. Perto, num largo embolorecido pelos séculos perdidos, soava o realejo electrónico de um cego esmoler tão pobre, mas tão pobre, que nem macaco tinha. No chão, a escudela de baquelite acolhia dezassete centavos, perdão, cêntimos. Demasiado porosa a estas merencórias & lacrimosas realidades, a matéria virtual da mente azedou-se-me mais ainda um bocadito. Pior: pus-me a reler Camões. Não reli muito: fechei depressa o canhenho de sonetos desse glorioso desgraçado. Viver atrapalhava-me o existir. Pus-me a assobiar baixinho. Foi então que, a páginas tantas só agora aqui escritas, passou uma senhora mais formosa ainda do que o sol de Inverno.
Deveria ser da minha idade. Não era de corpo nado mas esculpido. Aquilo nem era andar – era florescer. Ou: era flores ser. De zénite a nadir: cabelo lambido a luz, fiado aqui & ali a encanecida prata natural; olhos feitos de cinza de lareira em que refulge ainda a queimadura do ouro; nariz perfeito, cleopátrico, mortífero; boca única, de um vermelho biológico sem tinta francesa; dentes que morderam a maçã do Éden; colo de hipnótica simetria sustentando o alabastro do pescoço; braços de mármore respiratório; mãos impossíveis, com algo de aranha uma, de mariposa outra; ventre nunca tocado; pernas de cisne próspero; e pèzitos de tal insignificância volumétrica, que me causaram o desejo de ofertar, à dona deles, framboesas que não posso & versos que não sei.
As coisas, portanto & afinal, recompunham-se: a beleza alheia é paliativa da nossa íntima feiura. O meio-dia já era. Eu não almoçara ainda, nem de seguida o fiz: o pão-nosso-de-cada-dia é contra as hipersensibilidades doentias como a minha. A passagem da dita senhora tivera todavia para comigo a bondade & o condão de desempobrecer a hora amargada pelo tal telefonema do tal Amigo. Nisto, o telemóvel guinchou de novo. Era o meu mui querido sobrinho Zé Daniel. Ele fazia anos, eu mandara-lhe uma festiva lembrança de amor. Sequência & consequência: foi ele afinal a dar-me uma prenda. Esta prenda: vai ser Pai em Dezembro próximo, tornando-me tio-avô pela quinta vez na vida. Muito provavelmente, de uma menina. Quinta sobrinha-neta, aliás: os meus sobrinhos & as minhas sobrinhas parecem avessos a gerar rapazio macho. Definitivamente, a segunda-feira volvera-se-me vitoriosa, poalhada de grácil glória, nimbada mesmo de uma algo desaforada ilusão de perpetuidade.
E quanto ao tal telefonema matinal de tal Amigo? Era a dizer-me que O RIBATEJO acaba em papel a partir desta mesma edição. Mágoa & impotência: foi o que senti (e sigo sentindo). Este Jornal foi o meu mais seguro porto, o meu mais hospitaleiro abrigo – durante onze anos, um mês & nove dias (a partir, precisamente, de 25 de Maio de 2007). Um mero riscar de fósforo à chuva. De mil pequeninas mortes, enfim, se faz cada existência. Mais: o mundo não pertence aos sérios, pertence aos espertos; a realidade não se pauta pela honestidade, mas pela manha; e o tal pão-nosso-de-cada-dia não é de quem o trabalha, mas de quem o usurpa.
Em papel ao menos, O RIBATEJO acaba hoje & aqui. Só posso, agora, deixar aqui um derradeiro sinal de gratidão às pessoas que ao longo de quase 33 anos fizeram o Jornal, honrando-me profundamente ao me considerarem como uma delas. A esses grandes profissionais sou todo grato – a eles e aos/às Leitores/as, que alguns tive por & para minha boa-sorte. Saudades de Coimbra a todo o Ribatejo.
A senhora muito bela passou sem deixar nome – mas a minha novel Sobrinha-Neta nasce em Dezembro. Oxalá que a 25.



Canzoada Assaltante