30/09/2008

SAÍDA DO SANTO SETEMBRO e outros poemas mas poucos

Viseu, entardenoitecer de 30 de Setembro de 2008




DIFERIMENTO

A minha Mãe, como a Vossa, é por vezes a claridade
mesma: quando, achando graça a um dito juvenil,
ao que ouviu celebra de riso mais ainda pueril
do que o que lhe disse algum filho, ou filha, na outonal idade.

Octogenária já, já quase cega, vê ’inda, sozinha em casa,
viventes muitos, embora mortos em outra vida.
Gosta de vê-los, a magana, e esconde-os na asa
que, tal como a casa, é já, ó Mãe, tão diferida.



DOURAÇÃO

Quase nunca doce do anis a flor da introspecção,
resulta sempre quase amarga no horto do coração.

Às vezes (muitas vezes), é por um nada:
o gume de uma esquina, uma avenida esvaziada.

Outras (muitas também), pelo mínimo tudo
de tudo ser outro e o mesmo e contudo

próprio alheio: a furtiva laranjeira noivada
de anéis mil de ouro nunca esposada,

a fatia da porosa melanc(ol)ia expedindo o Verão
e todos quantos nele são.

Fere então o sino a ave sonhadora
que vai e voga e doura e não dura.



DÍSTICOS PREPARATÓRIOS DA SAÍDA DO SANTO SETEMBRO


Se a tristeza te tocar pelas ruas como a um cão,
dá-lhe por comer a tua sombra, escuro pão.

Floridas raparigas trinam dentecristalinos sorrisos?
Atira-lhes as brandas pedras dos olhares furtivos.

Fechados em fechadas casas encerram vidas mistérios.
Outras sequer mistérios, tão-só finais limpos e sérios.

Tinta de asas usam as aves para riscar
a escrita ilegível: os poemas do ar.

(Eu vou pelos da água e do vinho:
homem que sou, só voo baixinho.)



SAÍDA DO SANTO SETEMBRO

I

Sucumbe hoje em suor de santidade o suave setembro.
Mais branda ferve no seio das árvores a seiva viva.
Pêssego e ametista é ’inda a pele pessoal dos cidadãos,
que de todo se não recobriram ’inda, dada a brandura.

Madreperla-nos já a lua futura, que outubra a gás
frio e dura prata. Nos lares, aurígneos gravetos
ourejarão o rubi e as assadas viandas, perto
de que algum tostado gato sonolento, nos pátios ventando.

Por enquanto não. De setembro as horas últimas
atiram-nos sedas e musselinas, fadas fados silvando
não estrídulos. Uma paz de vitória alguma toma
o sítio, sítio sendo ao que sombra deitamos,

nós, sombras de sombras. Tudo na cabeça me
outona folhas, falhas e filhas: matérias de pensar,
quando um setembro se me nos despede
até mais não ver, nem ser.

II

Acontece os cidadãos perderem o próprio nome,
volvendo-se furtivos animais acossados pela predação.
É pelo cair da folha: faz o coração de charco
de óptica água depressa cega da Queda.

Não digo isto com força de lei: é mais
como me sinto, urdindo o outono
dele as auriflamas decadentes.
É mais como ter frio ao sol.

De uma janela alta caem escalas de piano,
escarlatam sardinheiras quais domesticadas papoilas.
Vista de baixo, a volante pomba une os pontos
derradeiros do folhedo das tílias.

Na praça, coalham famílias
o soro que da ceia suma a hora.
Mais frio aqui dentro do que cá fora,
esqueço o meu nome, chama-me.

III

Chama-me, chama auriflama, que outoniza a vida
não ser primo nem vero: aves voando virão que verão
a ver no setembro que vai
o outubro que vem – ou não.

Nenhuma dor nisto, nem urgente euforia.
Brônzeos sinos só e sós, indiferentes
à eternidade e ao horário comercial.
Por finais de outubro, há já luzes de natal.

(Zénites, tântalos, sísifos e nadires
ouropugnam argênteas demandas.
Mais porém idos há do que há porvires:
possante é o passante rio, mas duplas as bandas.)

Resistamos um pouco ainda, ainda assim.
(Hospícios e prisões servem h’ora a sopa.)
Vistamo-nos de luz, é só mais um fim:
pérsica ametista, setembrina roupa.



ÚLTIMOS DÍSTICOS DESTE SETEMBRO

Confirmo as janelas velando a noite,
a noite volando quieta nas casas.

Confirmo a maravilha das cores, mas só de cor,
que a noite anoitece até a paleta da memória.

Confirmo a quietação escondida das aves,
nos beirais pisando estrume e cascas de sementes.

Tinta de asas usaram para pintar
a tela invisível: as pinturas do ar.

COSTA

© Josef Koudelka – De Joelhos (Irlanda, 1972)



Viseu, tarde de 30 de Setembro de 2008




Horizontais medusam pelas ruas as pessoas entre algas, altas
árvores. Transpareço eu também, fóssil morador de frases
todas por dizer, nenhuma por ouvir. Quero ir à festa, mas Deus
não recebe senão os ajoelhados. E eu deitei-me à música, o vento
arrasta já o manto da noite, essa senhora tão branca, tão
enegrecedora de litorais.

Digo mais: pátios da cidade não enclausuram já idos avós e marços,
o sol floresce de ferro na figueira doente, um fio de água põe ovos
de ar numa selha fria como um olho cego. Além, a senhora que trata
de meninos doentes enquanto as mães dos meninos registam
as mercearias do futuro nos hipermercados. Nas minhas costas, mais
pessoas deitadas passando, ondul’andando como aquáticos minerais.

As marés sargaçam sinais de trânsito, arenosa serradura duna
o chão das tabernas, em cujos porões o sangue do Senhor manda
ajoelhar as bocas ao altar do vidro e do mármore. Quanta beleza,
a destes suplicantes horizontes que nem já pedem nem podem já
senão perder o que se deu nunca
à costa.

29/09/2008

Fala a Boneca Partida

© Clarence John Laughlin - A Strange Situation, 1938





Viseu, manhã de 29 de Setembro de 2008






Às vezes consigo recordar sonhos como o de ter nascido.
Apareço nesse sonho como uma boneca partida.
O corpo vibra muito para ser uma árvore, um rio, uma coisa assim.
Desperto na luz crua, deixaram a janela do quarto aberta,
o frio entra duro pela luz como uma pedra, uma coisa assim.

As palavras musselinam-se todas nas cortinas, vestem senhoras
brancas de olhos esvaziados na cor do céu, longe como o mar.
Entro na taberna e não escrevo, quase não vejo, escuto
a história da humidade nas paredes, as garrafas de ginja,
o amor pátrio, o hálito avinagrado dos peixes deitados na morte.

Retiro as minhas conclusões e perco o sonho, o nascimento.
Envelheço na sombra física, queres-fiado-toma.
Aqui na terra não há escritores, foram todos para a Suíça.
Às vezes quero falar com alguém, mas alguém fechou a janela.
Deito-me no quarto e espero renascer, os olhos abertos no escuro.

Todos Vós


Viseu, 28 de Setembro de 2008


Agora tu dizes eu para ser um ele.
Ele é o meu homem dentro de ti.
A nossa vida toda ao mesmo tempo
neste único corpo.
Às vezes como se eu fosse alheio e nós
manchando de sombra a luz das ruas
antes e depois.

26/09/2008

Linhas de Partida

TÁBUA

I. LINHAS DE PARTIDA
Viseu, Casa de Pasto A Marisqueira, horalmoço de 26 de Setembro de 2008

II. ESTE SÍTIO DAS MANHÃS ME DESPEÇO
Viseu, Café Penedo da Sé, manhã de 26 de Setembro de 2008

III. DE BOTAS
Viseu, perto dos Correios, tarde de 18 de Setembro de 2008

IV. UM HOMEM NEM SEMPRE VÊ
Viseu, Mundial Bar, manhã de 3 de Agosto de 2008

V. OBTUSA LÍRICA DOMINICAL
Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008

VI. SETE POEMAS DE ABRIL DE 2008
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008

VII. EM TERRA DE PAI, ACORDA QUEM É FILHO
Viseu, Café Mundial, tarde de 4 de Agosto de 2008

VIII. FUNCIONAMENTO MARINHO
Viseu, fim da manhã e noite de 8 de Agosto de 2008

IX. DORMIR
De comboio, Pombal-Mangualde, tarde de 12 de Agosto de 2008

X. (NO INTERVALO DAS ÁRVORES)
Viseu e Molelos, tarde de 14 de Agosto de 2008

XI. (FADO A ATIRAR PÓ RELIGIOSO)
Viseu, manhã de 20 de Agosto de 2008

XII. CENTO E MUITOS MORTOS EM BARAJAS
Molelos, tarde de 20 de Agosto de 2008

XIII. TUDO O QUE SABES DESTE HOMEM
Viseu, Bar Estado d’ Alma, fim da manhã de 25 de Agosto de 2008

XIV. SEREI FINALMENTE FINAL
Viseu, Restaurante Colmeia, noite de 25 de Agosto de 2008

XV. GPS COM RIMAS PORTUGUESAS E OLHOS DE MULHER PRÓPRIA
Viseu, Praça do Rossio, tarde de 27 de Agosto de 2008




******




I. LINHAS DE PARTIDA
Viseu, Casa de Pasto A Marisqueira, horalmoço de 26 de Setembro de 2008

Estou de partida, vou deixar estas cónegas ruas, estas praças a este sol. Para onde vou (para onde vamos), não sei. Tenho uma ideia, mas não sei: não é isso pensar? É um ciclo que se me fecha. Gostei destas pedras. Viseu é uma cidade onde uma pessoa (ou duas), enfim. Deixo-vos hoje estas muitas linhas. Como todas as que escrevi (como todas as que li), são de partida. É certo que às vezes regressamos: a uma cidade, a um corpo, a um olhar, a uma gare rodoferroviária, a uma linha. Ainda esta manhã pensava nisto. Para não mais pensar, escrevo. Escrevo para não pensar. Serei mais sincero ainda: escrevo para não viver.

Seguem-se linhas. Elas não têm importância. Ou têm uma importância que não vale – ou um valor que não importa. O que me importa, é telefonar de vez em quando à minha Mãe, é procurar nomes de pessoas que já não há para poder nomear personagens de livros que não escrevi. Importa-me uma sardinheira numa mansarda, sobre que uma cabeça de mulher antiga e portuguesa. Importa-me o perfil de um castelo: caligrafia mineral do Tempo: e certificado de duradoura finitude.

Escrevo estas coisas com uma cara muito séria. Hoje, tive de almoçar sozinho. A mulher meteu-me uma nota no bolso, disse-me que viesse aqui comer, eu vim. Lá para onde vamos, que crepúsculos matinais parelhos nos esperarão? Os mesmos outros. Isto é todo o Tempo: estes hojes volvendo-se linhas, partidas.

À minha frente, avó e neta. Populares. A velha, de carrapito capilar apertado a malha de seda-nylon. A púbere, de óculos de plástico escuros como pisaduras. A velha, bacalhau. A nova, febra de porco. A velha, tinto. A moça, coca-cola.

Respiradouros: as linhas respiram, são como aqueles bichos que abrem buracos na onda que recolhe da areia. Respiram a invencível finitude. (Mas sei que vamos para não muito longe do mar.)

De modo que em breve gaivotas. Não já só pombas. Não tem importância.



II. ESTE SÍTIO DAS MANHÃS ME DESPEÇO
Viseu, Café Penedo da Sé, manhã de 26 de Setembro de 2008

Este sítio das manhãs me despeço.
Quando se a ele e elas retornarei
não sei.
Vou ver outras pombas
as mesmas decerto na minha vida mesma.
Os mesmos outros homens antigos
de chapéu-de-chuva aberto ao aberto sol
reterei
lá para onde sigo agora
como antes.



III. DE BOTAS
Viseu, perto dos Correios, tarde de 18 de Setembro de 2008

No pólo sul de uma pessoa vi esta tarde umas botas iguais às que há um ano desejo à passagem pela sapataria da Rua Direita. O melhor atavio da pessoa resultava-lhe daquelas botas. O vestuário era regular: limpo, de cor neutra, sem outra mensagem que a da neutralidade mesma. Casaco escuro, de um azul fechado. Camisa de cor e consistência de casca de ovo. Cinto de matéria sintética e fivela rectangular. Calça castanho-terra, mas de terra sobre que choveu há pouco. E então, magníficas, a sul de tudo, aquelas botas irmãs das minhas, que não tenho.

Segui-as pela cidade. Repeti-lhes os passos, o meu desejo calçando-as. Vi-as esperar enquanto a pessoa comprava um chocolate numa confeitaria que está há anos em trespasse: como todos nós. Vi-as avançando devagar na fila para entrega do boletim do euroloto. Vi-as cercadas de pombas no rossio municipal, sob uma chuva de migalhas de pão. Vi a direita esmagar sem conhecimento uma ampola perdida em frente à gare rodoviária. Depois isto passou – vai daí, era outra a manhã.



IV. UM HOMEM NEM SEMPRE VÊ
Viseu, Mundial Bar, manhã de 3 de Agosto de 2008

Um homem nem sempre vê: é lobo só quando é cego,
é uma condição até triste, só aqui entre nós
que ninguém nos ouve.
Uma mulher, não sei.
Tenho este homem para não ver.

Delicadas faianças expostas em alheias casas
marilynmonroem envelhecidos chás barbitúricos:
do que sobra, cobra
o tempo impropérios e ciprestes:
e impérios e infâncias
e roubos na região.

Ai estas estrofes obtidas a pulso!
Ai tanta malvasia mal cheia alhures!
Não me vem da pulsação qualquer gnosia!
Não me vem da noite manhã nem dia!

Um homem nem sempre é lobo.
É homem sempre um lobo bem filmado.
Sábados de manhã, nos documentários
há crianças antes, ante-têvês.

A vida foi toda tanta há tantos anos,
que uma criança num homem, sábadànoite,
nem procura remédio, nem elixires,
nem descontos especiais antoceanos.

Era ter lido mais o Raul Brandão. E o
da Lisboa em Camisa, o Gervásio Lobato.
Um lobo também precisa de ser gato
ao pé dum pires, sei,
de um império cordato para o preto.

Um cigarro bem fumado antes que os olhos
anoiteçam de todo é tudo quanto olho e peço:
muita gramática se insurgiu
a bordo de baleeiros, esfaqueando a neve

maus irlandeses e piores portugueses.
Hoje, mamas glaucas olham silicónicas
próstatas sem aposentação lupina,
adjectivo aliás mais próprio de raposa.

Eu não vejo, mas olho.



V. OBTUSA LÍRICA DOMINICAL
Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008

Abomino mais do que domino, domingo,
o mundo – e, por extensão, a minha vida.
Ainda não é porém grave, entre tanto
modo de vida que nos dominabomina.

Um pouco de Brel pensando olhar água,
a azul de azulejo na barragem, domingo.
Ficar todavia toda a vida aqui, num café quieto,
entre posters do Benfica e cartazes de bailagostos.

A verdade que procuro não é para encontrar.
Frequento por fora o comércio: o das lojas
como o das pessoas, essas boas pessoas
que repetem o fabrico e o consumo e a verdade.

A beleza e a solidão parecem-me gémeas.
O sol não evita a noite em pleno dia.
Da gare rodoviária, três ou quatro almas
inventariam a humanidade toda e arredores.

A própria banha luz na pele dos rostos.
Circumnavega a lustral emigração
da boca para o coração, se penso em ti,
se alguns dos meus mortos por mim te pensa.

Ser o positivo dá homofobia, isso que a História
arrebanha pelos arvoredos municipais.
Na América dita Latina, uma cantina
serve cantigas e sais (mas não sais) minerais.

Perpétuo ensaio clínico, a vida é laboratorial.
Somos portugueses de Portugal: so what?
What-whatson-pedra-holmes
nos lavará, uma à outra, as mãos?

Espera-me à esquina descoroçoado encruzilhar
de cebolas e almas e enforcados e lápis.
Sou todo azul no manto sideral:
orgânico e visceral e velocipedista de beaux mots.

Agora é para sempre desde que nunca mais.
Eu quero uma mágoa domesticável.
Já não presto para este coração, filhas.
Esqueci-me dos rendimentos, não dos cedros.

Gosto de ver as pessoas repetindo-se, tais
ondas do mar fossem: espumosas, claras e,
afinal, invencíveis, as boas frias pessoas
torradas pela Lua Grande deste sertão, deste

ser tão pessoa na desumanidade.
Bailes em Agosto, ele há muitos, não os irei.
Estou recolhido no co-nãodomínio da alma.
Leio ainda palimpsestos e preços da fruta.

Efabulo fracamente, aliás e a lilás.
Gosto de cores: o preto, o branco. A cinza.
Deu(s)-me para isto: ser um anjo
não voador, atento à terminação e ao romanesco.

Francas ruas, encerradas artérias: eu vejo
dos vivos a passante sereia ao farol alteada:
canoro rastilho de doenças vitomortais,
além de Proust muito dandy, muito David Suchet.

Belas palavras. Cruz ilhada bem-querença
ao desumano género que de gatos povoa Lisboa
e a Vida e arredores. Um barco, um bramir,
uma entraciclopèdiada: algum nome, duas datas.

Agora faço sobretudo escrever quadras sobre nada.
É a minha vida, Mãe.
Há-de haver um refúgio (um refugo) nisto:
uma absolvição. Se não, uma insolação.

Trago-te à trela, coração é a única coisa
que me ocorre para dizer corda.
Na Noruega, faria de preto ba(m)bilónico:
nunca, como aqui em casa me perceberiam

as quadras, a obtusa lírica dominical.
Olha a triste beleza: palavras portuguesas:
quadril, cenho, canja, espaldar, cós,
ricto, manjar, tez, borborigmo, anacoreta.

Preta opereta de lustres aurígneos: A Raposinha
Matreira, checa em branco. Reembolsa e
bolça: paga o que deves por ter nascido
de um convulso, como a tosse, amor.

Maio, algures na minha vida. Um salto colector
de margaridas, um lapso e uma elipse,
um desenho absolutamente trabalhador de
cerejas, atenta a obra civil suburpovoadora.

De quantos novembros seremos capazes, humanamente?
Estas pedras históricas, que nos olham na cidade
como oliveiras perpétuas, vitalícias despedidas
iguais a barcos que titanicam tudo

e nada? Ai eu, tu ai. As pessoas reflexas
como verbos de coçar, de caçar, de dizer adeus
a Deus, nós que não cremos nem crimos
nunca todavia e porém, entre tanto

deus-de-aluguer. E se for um cancro?
Haverá ele Segurança Social?
Miríade de telefonopoemas de um lado
(Campo de Ourique) para (Algés) outro?

Isto é tudo tão a sério, que me faz rir.
(A vírgula entre o sério e o que é normativa.)
As pessoas dão-se a não rir rios, perdem
com isso margens (de lucro).

O domingo, olha agora. Treze dias
são um minuto solar: e a Lua
concede passa-emanações de ventre,
atento o relógio das mulheres, o ponteiro dos homens.

Toda a língua quando faltar a boca.
O trânsito ribeirinho pela terra seca.
O Chiado ’té ao Rossio nos anos 30-XX,
nunca menos que trinta. E um.

As pobres bombas carbonárias.
Os mortos da Estrela.
O talhão militar pago a selos.
A estrela navegadora e o gajito magro de Santa Comba.

Disse’l’assim: Não tenho nada pa’ te dizer.
Falei mal, mas disse bem: a mulher
também é de redondos vocábulos, umas
somas agroaciprestes.

Um simples toque de dedo no cérebro molecular.
Ruas a fio proibidas de fumar: Maio-68
dá merdasquerdas pa’ teatros à direita,
o Bronx, o West-End-Ham, o Coventry

de Crystal Garden. Muita chusma, muita
mourama ama não amar Cristo & Pedro &
o Peixe-Catacumba-de-Constantino-o-Créu-
-Burro-como-as-Casas-as-constantes-

-constantinoplas-da-cultura-geral-das-
-palavras-cruzadas-do-Diário-Popular-
-entretanto-extinto: entretanto ex-
-tinto como tudo o que, domingo,

não bebe, nem vive, a vida mesma,
a morte própria: palavras portuguesas,
domingo, virgo, ferrete, álacre lacre, nanja,
canja, espaldar, mino e mina: e azul.



VI. SETE POEMAS DE ABRIL DE 2008
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008

1. Este Nosso Tempo
Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008

Este nosso tempo vivo ainda é do melhor que temos.
A noite instala seus trâmites arrefecedores, porém pomos à mesa uma fervura de caldo, um pão branco, as quatro mãos.
Laqueamos as janelas, atiramos as mantas: não recordaremos, não hoje.
Este nós vivos no tempo.



2. Câmbio
Ibidem

Já se me velaram muitas coisas, não as palavras, não ainda.
Por elas troquei a família e a vida.
Nunca me valerão quanto, e quem, troquei.



3. Fins
Ibidem

Pelo fim da tarde, pelo fim da vida,
é bom receber, da avenida,
a gorjeada luz, o som tão são
das aves que dão arribação
à melancolia, ao fim da vida e ao fim do dia.



4. Chega e Volta
Ibidem

Chegou-me a homem uma tristeza de menino
o sol raia ainda luminações melanc(o)ólicas
não sou já rapaz capaz de fazer o pino
nem o meu destino de alegrias eólicas.

Mas sinto o vento. Isso sinto. Sinto muito aliás
os funerais e as inaugurações de rotundas.
Aos domingos chego mesmo a ser audaz mas
rabo entre as pernas volto a casa por vielas imundas.

Volto. Volto sempre a casa. Ond’ela é isso não sei
que voltar volta-se sempre pelo pinhal qu’El-Rei
semeou para defender do mar a terra aonde voltar.
Uma tristeza de menino vai-me chegar.



5. A Minha L. M.
Ibidem

Isto nas minhas mãos: a minha vida.
Tão igual a um farrapo dourado, a um bilhete de comboio.
Tão como a tua precisa: e sem ambas precisão.
Isto além das minhas mãos: o meu mármore.
Isto além do meu amor: o meu nascimento.
Isto na minha vida: a minha língua manual.



6. Memória de um Menino Bem Comportado
Ibidem

As mulheres são os combatentes veros.
Os homens, combatidos e batidos, esperneiam gases,
intoxicações patrióticas, anemias ópticas.
As mulheres controlam o mercado.
Os homens, varridos a versos adversos, dão-se a agonias
nem sempre malfazejas: dependem da cal e das igrejas.
As mulheres buscam, caçam, prendem.
Os homens não as entendem.



7. Não É Mau é Meu
Viseu, tarde de 24 de Abril de 2008
(Pai, catorze anos sem)

I

Tenho a vida sentada no meu amor
não é mau que assim seja
sento-me aqui tomo um licor
sento-me e tomo uma cerveja
tenho o amor assente na minha vida
não toda a perderei. Assim seja.

II

O meu tempo é feito de coisas simplicíssimas
como viver e como morrer.
Nada está profundamente errado.
Tenho uma língua tenho um coração.
Não ando aqui a enganar ninguém.
Amo o que amo amo quem amo
mais desprezo do que odeio
o dia pôs-se bonito
mesmo chovendo não seria feio.

III

Escrevi há pouco um texto para a minha Mãe.
A revista estava no fecho, tinha de ser rápido.
Fui rápido a escrevê-lo, lento a senti-lo.
Era afinal um texto sobre a mulher da minha vida.



VII. EM TERRA DE PAI, ACORDA QUEM É FILHO
Viseu, Café Mundial, tarde de 4 de Agosto de 2008

Acordei esta manhã como se nasce: tarde.
Acordei tarde e iluminado pela certeza de morrer mais um pouco.
A outra vida dos móveis rumorejava no quarto, alastrando pela casa como um bolor musical.
A mulher existia a vida das mulheres: na invencível recordação para a frente.
Os retratos, que não olhei, olharam-me como cães muito cinzentos.
Um pouco de lixo e um pouco de ouro: uma casa normal: mal e norma e bem.
O carinho alimentar das gatas zunia comichões dorsais.
A língua mora-me (já-é-de-tarde) rente a um dente apodrecido.
Na madrugada, assisti aos fotogramas da concubinante solidão de Norma Jean, vulgo Marilyn, Monroe de nome de mãe.

Era outra vez isto.
Também vos digo que me pus de imediato a recolher informações: perto dos Correios, a maré láctea dos decotes das senhoras, o titubear sonífero dos toxis, a predadora navegação dos táxis, as vontades avinagradas pela existência real, um tudo ser outro, nisto, à vez.

(Eu ponho muita morte nos poemas porque o sexo me vai passando. Daqui que a minha poesia possível seja possivelmente boa para uma assexuação de bonecos sem genitália, embora o Google nos roube as filhas.)

Muito cedo na minha vida, levaram-me a Antuzede ao funeral de um senhor.
Ele tinha envelhecido tudo de repente.
Entre Deus e o cemitério, tiveram de poisá-lo como um pássaro ao sol ardente.
Recordo esse clarão.
Percebi de imediato que, quando me sucedesse o ingressar no rol de coisas a pegar, deveria ter escrevisto dotes mamários, consumpções, heroilíricas e versos.

Esta manhã, portanto, acordei em Antuzede.



VIII. FUNCIONAMENTO MARINHO
Viseu, fim da manhã e noite de 8 de Agosto de 2008

Suponho que a esta hora, alhures, o mar esteja em funcionamento.
Não o reverei hoje, tão depressa o não reaverei.
Perdi-me dele em terra que sobe pedras ao céu, esse outro mar de peixes de diamante povoado.

Outrora segui as passadas dos pássaros na areia.
Como se dirigia eles a lado nenhum, me dirigi eu a lado algum.

Ainda fecho os olhos entre pedras para frequentar os círculos deles, quando sobrevoam o mar que perdi, que não reverei nem reaverei.



IX. DORMIR
De comboio, Pombal-Mangualde, tarde de 12 de Agosto de 2008

O meu Pai está a dormir há alguns anos dentro da terra, eu estou na terra descalço.
Ele ensinou-me a atirar pedras às árvores, eu atiro pedras às árvores.

O meu Pai é um homem que está a dormir.
O meu Pai é um homem muito bonito dentro do sono, apesar de seus defeitos.

O meu Pai está a dormir dentro da terra, eu escrevo-o a ele dentro de um comboio, eu estou acordado dentro do dormir dele, pode ser que por causa de ele ter amado tanto os meninos que se descalçam na terra.

O meu Pai é um homem a dormir a partir de um retrato.

Os mortos exercem sempre uma autoridade fotográfica.

Qualquer homem num comboio tirou o bilhete para o Pai.
Ele não vem.
O comboio vai.



X. (NO INTERVALO DAS ÁRVORES)
Viseu e Molelos, tarde de 14 de Agosto de 2008

Somos as presas da floresta dos dias.
Não o semelhamos talvez, mas somo-lo decerto.
Lavamo-nos com água azul e sabão frio,
saímos a preencher os lugares (dos) cativos:
as estações gasolineiras, as dos caminhos-de-ferrro,
as dos anos: outono, inverno, outono e inverno.

O nosso mal não é nunca o menor,
o amor entre os quais principais.
Quem me dera revoar paradamente,
ter um emprego nos Correios, aceitar
as cartas das pessoas que ainda
escrevem.

É muito bom o sol nas praças, o incêndio
termonuclear das estátuas cada vez mais e mais
verdes, como nós envelhecendo, verdes.
Que bonitas são as descuidadas raparigas
melhorando o próprio leite pelas frescas
sombras da rua que desce de buganvílias

até onde o santo tocou os animais e o rio.
Ainda outro dia me aconteceu falar sozinho
perto da praça de táxis: aproveitei todas
essas frases para um poema que não pude
’inda escrever porque agora é a vez deste,
verde.

Somos o intervalo das árvores, idem do
carros. A cidade precisa de nós por razões
estratégicas, que vão da grelha estatística
à gastronomia regional: precisa de
nós para que aceitemos as reses, os planos
dormitórios, a menstruação dos vereadores.

Talvez não seja ainda hoje o dia
que a noite escolha para nos levar
a dormir perto de água-sabão azul e fria.
Estes golpes no gongo do coração,
o sangue mineral gaseificando as têmporas,
a ansiedade rondando a barriga da presa.

Os casais de turistas consumindo café com leite
e coisas com mostarda. Mas: uma álea de
pereiras-de-inverno no reverso da ideia,
a resistência floral dos ossos da cara: e a
cara quando sobe a ser rosto, norte
das nossas mãos tão portuguesas, tão bonitas.

Vamos lá a ver uma coisa: a vida, pagamo-la
com a vida – e nem troco nos dão, também
quem no-lo daria, senão nós? Viva mas é
a beleza, apesar de tudo tanta ainda: o
sol na praça onde já choveu e choverá,
os pés muito brancos das mulheres: como

se calçassem neve. Esta morrinha perpétua
de pensar a vida em vez de vivê-la, isto terá
de acabar. Calma. Com um pouco de imaginação,
é-nos possível ver alguma ponte ardendo de luz
no azul muito puro da imaginação, tão
melhor fundamentada do que a realidade.

Bitter afternoon endings were the daytime they’ve
chosen to a lesser bitter bit of a conversation,
and a drink or two or twelve – por assim
dizer, embora fora mais bem dizer
nigh’time instead. Tudo uma questão de
terminações (de anjos) – por assim dizer.

Sim, as presas somos – e, pessoas, umas
às outras presas: e predatórias.
Um derradeiro assomo de primeira lucidez
nos acode: e que é o de a língua portuguesa
ser a última oportungalinidade – por
assim dizer.

(Se me perguntasses se quero dormir,
responder-te-ia sabão e água e frio e azul.
E o rosto a norte e as mãos a sul.
E ainda assim, ó florestal, sorrir:
que a muito sobe quem a rosto aurou
quanta e cada cara olhou.)

(Uma mulher descalça e civilizada,
a seu fortuito animal pessoal domesticada:
a ela quero ainda, menino não de todo ido
às pastagens demográficas da mortal estatística.
Se um menino aprende um idioma,
a presa apreende um idioma.)

Transitamos ruas de traça medieval,
ardem auríferos os bolos de bacalhau,
os pedintes portam um boné da Selecção Nacional
por um cêntimo, mas de preferência um euro,
a senhora vereadora desce a chefe de gabinete,
são cada vez mais fáceis os divórcios e os amores.

Esta é a floresta dos dias: estes os cafés de província,
onde bigornar a poesia e a sede a duros martelos
ferradores da hora crua, estes os homens e estes
os animais e estas as mulheres como árvores de figo
dando a áspera gota de leite dulcíssimo,
onde as crianças repetem o terror e a luz.

A vida às vezes desaparece – e ficamos
só nós sós nos intervalos dela, isso a que
é possível chamar interlúdios para disfarçar.
O papel do ardendo-lhe de luz os cantos,
torrando-se os laranjais, o budismo das hortas,
um ribeiro gelando os dentes maravilhosamente.



XI. (FADO A ATIRAR PÓ RELIGIOSO)
Viseu, manhã de 20 de Agosto de 2008

Movediça comoção concorre ao som do sino
da branca torre antiga provindo.
Dá a crua manhã o dia por findo
– e a noite se devolve a destino.

Viseu, hora de almoço, última ceia.
Iscariota-se vagamente pelas vielas.
Josés piolham a areia arimateia.
Marias mui se tunicam amarelas.

Passa um camelo, um vago mago rei.
Deus sempre foi Menino p’ra isto:
operado a um tumor morre dum quisto
um padre cujo nome já nem sei.

Votiva-se a usuras relicárias
o ardente tesouro espoliado
na manhã de fés tão urticárias
quão várias as letras deste (en)fado.



XII. CENTO E MUITOS MORTOS EM BARAJAS
Molelos, tarde de 20 de Agosto de 2008

Cento e muitos mortos em Barajas, Madrid.
O avião fez-se bola de fogo ao cabo da pista.
Neste café, uma grávida fuma em plena placidez.
Há caracóis, diz-me um papel, mas tenho as moedas contadas para o gasóleo, que sempre arde menos do que a gasolina de avião.
A vida vai-se fazendo disto e desfazendo disto também.
Esta é uma sala aprazível, a dos fumadores.
Há uma lareira: boca negra que é bom ver carburar o ouro íntimo da lenha, no inverno.
Agora ainda é verão, mas isto passa.
Há muita mosca nesta altura, os televisores dos cafés estão todos ligados à TVI, não vivemos tempos fáceis.
Envelhecer pode não ser uma opção sensata, na vida.
(Digo isto mas já fumo menos, assim como quem não quer a coisa.)
Às dezanove e vinte e cinco arranco o cu da cadeira e faço-me à estrada.
Chego ao cimo da serra, ainda é dia.
Ponho a rádio naquela estação dos pianos e dos violoncelos e vou fazendo por não pensar de mais no nada do costume.
Vou com atenção à estrada e ao ponteiro do depósito.
Apesar de tudo, a vida sempre é uma coisa que merece atenção, embora nem sempre.
(Isto digo mas nunca deixo de colher a fruta que as árvores mais extremas dos quintais abandonam pelo chão, como se foram rainhas dadoras de pão.)
Já estive em Barajas duas vezes, mas uma à (v)ida e outra à vi(n)da.
Não conto lá voltar.



XIII. TUDO O QUE SABES DESTE HOMEM
Viseu, Bar Estado d’ Alma, fim da manhã de 25 de Agosto de 2008

Tudo o que sabes deste homem cruzando a praça
não passa disto: nasceu e morrerá.

Canoras papoilas são os ruivos pássaros
que fazem chilrear as árvores municipais.

Orquestra de cordas claras é a fonte,
luminosa de água canora ela também.

Pega na minha mão, aprecia quão
pobre estrela ela é, ainda assim aberta.

Pega na mão desse homem cruzando a praça,
não passa de uma mão de homem, uma estrela.



XIV. SEREI FINALMENTE FINAL
Viseu, Restaurante Colmeia, noite de 25 de Agosto de 2008

Serei finalmente final e velho
quando o corpo de todas as mulheres
for igual ao da minha Mãe

quando já nenhuma sede
e água nenhuma.

Serei velho
então
e então
estarei prontíssimo
para morrer
ou
digamos
para renascer.



XV. GPS COM RIMAS PORTUGUESAS E OLHOS DE MULHER PRÓPRIA
Viseu, Praça do Rossio, tarde de 27 de Agosto de 2008

Rola o planeta repletamente pleno
de animais não isentos de humanidade:
a pomba económica, o cão esmoler
e um gato cujos olhos são azuis e iguais
aos da minha mulher.

Fartam-se os municípios de estoirar recursos
e reservas ecológicas com putas de aluguer:
mas gatos há neste planeta de iguais e azuis olhos
aos da minha mulher.

Muito pode a concentração das petroleiras.
Muito pode a filhassimplesdeputice.
Pouco pode Alice ante suas mesmas autistas
maravilhas (tanto Alice quanto nossas filhas).
Mas quando Alice for mulher,
há-de querer, e até crer, ter iguais olhos
aos azuis da minha mulher.

Por aqui ando, no planeta breve
do poder local, cancro pouco benigno
do poder revolucionário que mal houve em Portugal.
Passa o vereador idiotizado
por mesmerismo de televisão.
Passa o assessor, que é assessor
e cabrão – por atributo de funções,
que mais se assessora quem mais troca a
própria senhora
por colhões.

Rola o planeta plenamente repleto:
e abaixo o acordortográfico que é
um peido obsoleto.

Pela minha vida, breve tal vossa por igual,
olhos de mulher, ortografia de Portugal:
Portugal, ó pátriazinha, azul, mor(t)al
e azul e minha.

Portugal, minha pátria nossa que, quando quer,
tem iguais olhos azuis aos da minha mulher.

25/09/2008

Sonho com Ela

Esta semana, nO Ribatejo do costume, a crónica nº 70 da série Rosário Breve.

Numa freguesia perto daqui do sítio onde como as batatas, há um cão que anda a assaltar capoeiras. Trata-se de um caso de “cãojacking”. O assaltante parece que é bruto, não hesitando em trincar as partes moles a alguns habitantes da aldeola. Uma senhora, aflita proprietária de um dos galinheiros visados pelo canídeo, tem uma galinha que sobreviveu ao ataque de há um mês, mas que “ainda hoje não anda”. Parece que estou a ver daqui a penosa: sentada sobre a própria moela, o olharzito ao mesmo tempo indignado e assustadiço ante a memória do minacíssimo morso. O cachorro, uns dizem que é rafeiro, outros acham-no de caça. Parece que o saco-de-pulgas em questão assalta para comer, motivo que o justifica a meus olhos – como os assaltantes de bancos que levam o “carcanhol” sem aleijar ninguém.
De modo que aqui estou a ler breves destas no pasquim local. Vem do alto uma tarde larga, forte, de pouca brisa e muita luz. A senhora da mercearia tem a fruta à porta, o que alegra o largo. Uma mulher muito bonita contorna a esquina, sai de vista, dissolve-se no ar vespertino. Um rapaz já descriado joga brincadeiras portáteis de computador. Tenho um livro para rever para a editora, apetecia-me galinha para o jantar. Galinha-galinha, de pica-couve, não frango-chiclete de mercearia grande. Apetece-me tanto galinha, que dou por mim a coçar a orelha esquerda com patadas rápidas e rítmicas de gajo que liga a motorizada. Bocejo e deito-me à sombra da capela, enfim, mas só depois de correr atrás de um opel-corsa e de um seat-ibiza.
E quando sonho com a que me escapou, rosno dentro do sonho.

24/09/2008

Isto não é L.

Policeman in a Dockland Alley, Bermondsey. © Bill Brandt, 1938





Viseu, tarde de 18 de Setembro de 2008

Também procuro Joanna Southcott, fora do tempo mas dentro da Panacea Society, e Jack London, quando ele andou por Whitechapel, em 1902, em demanda do povo do abismo. Isto de juntar Jack, Whitechapel e London na mesma frase, pode ser mau para a população de prostitutas. Desconheço se o sargento-detective Cribb ainda vive. Alan Dobie, julgo que sim, pelo menos desde 1932. Procuro. Vou tendo umas luzes na noite.

A noite é mais diária do que o dia. Passa-se dentro da cabeça. Uma árvore ao sol deita noite por todos os poros. Uma viela, ao contrário, pode ser iluminada pelo olhar de um gato – ou pela descoberta de uma faca ensanguentada. Estou aqui e procuro. Procuro dentro. Ao princípio da tarde, estive numa pastelaria perto dos Correios. Tomei uma ginger ale e esperei. Pensei numa história sobre um par de botas, cuja redacção iniciei.

Saí para a noite eram duas da tarde. As árvores do rossio municipal vergavam-se como anjos para os reformados nos bancos de ripas verdes. O mais era a língua portuguesa suspirada entre próteses octogedentárias. Por aqui, temos também capelas brancas, mas não são Whitechapel nem para lá caminham. São capelas portuguesas, luras pós-viriáticas, mas nem por isso viáticas, posto que não esmolam nem sacramentam. A unção é porém extrema.

Senti falta de casa. Cortei à direita, subi as pedras do Major, cujo fantasma onomástico me cumprimentou de dois dedos levados ao boné de oficial. À esquerda (ou a bombordo: eu navegava já pelo Tamisa improvável do Pavia), uma mulher vestida de negro (a noite têxtil destas mulheres na tarde) tropeçava no saquito de medicamentos. Um gato livre lavava a cara junto ao contentor do lixo. Um polícia completamente português coçava-se a nádega esquerda. Estas visões extenuam-me sempre de felicidade.

Joanna Southcott era para ter parido o Messias (ou Shiloh), pela segunda vez no caso do Messias, no Natal de 1814, mas a coisa não se deu. Ou não cedeu. Morreu um ou dois dias depois, a senhora. Dizem que deixou um bilhete de lotaria na arca das revelações. Pergunto-me se também na arca de Pessoa haveria cautela.

Não é seguro que Jack London tenha morrido de alcoolismo. O John Barleycorn pode ter resultado de um empirismo, mas as mitografias não são muito de fiar. Ainda não cheguei a casa. Compro dois lápis amarelos na loja das fotocópias. Há, em baixo, um bebedouro de água. Desço a cara e recebo esse cristal frio. Já pulsa a cruz verde de uma farmácia. O crepúsculo já borda a quarta dimensão dos telhados. Olho para longe, entre dois prédios a mancha verde da serra dói-me o mar que não há. Penso noutra coisa, mas o mar lateja dentro da fuga.

O Ripper é contemporâneo do Cribb: qual dos dois ficção, não sei. Uma criança vestida como um adulto miniatural: vejo-a lambuzar-se de gelado de chocolate, sentada muito direita no banco de jardim. A mãe gritinha interjeições ao telemóvel. Um cão muito branco boceja cor-de-rosa e negro numa espectacular amplitude de mandíbulas. Involuntário melhor amigo do homem.

Não por acaso, hoje era um bom dia para chuva. Gosto de, em plena tarde, reunir os sentidos para recepção da chuva nocturna. Havendo umas moedas, podes contemplar a massa de cor dos reclamos luminosos numa montra de pastelaria, o escarlate e o verde e o amarelo estilhaçados de água, o vapor das respirações vulcanizando as palavras que as pessoas deixam cair quando entram a fechar os guarda-chuvas. Mas faz um sol lunar, uma moeda termonuclear que reverbera de níquel e mercúrio nas cabeças, também já tão pouca gente usa chapéu, os tempos mudaram muito e isto não é Londres.

17/09/2008

Anjo em Pombal

Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008, pelas 21h00, na Livraria K de Livro, em Pombal,
lançamento de
Terminação do Anjo.
Vai lá estar, também, o José Antunes Ribeiro.
Todos são bem-vindos, claro.

Entretanto, deixo-vos, infra, a crónica nº 69 (sim, 69...) da série Rosário Breve,
n' O Ribatejo do costume.

Crónica nº 69 n' O Ribatejo - www.oribatejo.pt

Tudo ligado, tudo ligado

O Sporting confirmou terça-feira, em Barcelona, o mau momento da economia portuguesa: a perder por dois, atreveu-se a esboçar um pálido sinal de recuperação, que os catalães “recompensaram” com três na pá. A culpa da crise económica e social não é, claro que não, do Paulo Bento. Lenços brancos são bons para o santuário de Fátima, não para as bancadas do Camp Nou nem para as alvaláxias da nossa mediocridade. É deixar, portanto, o rapaz em paz, que faz o mesmo que o Carlos Queiroz e por muito menos “pastel”. O que me preocupa são outras coisas, as quais, como todas as preocupações, se emaranham num novelo de causa-efeito que a tudo justapõe mas a nada põe justo. Exemplos, já a seguir a este curto intervalo.

Aquela histeria toda da falência do banco norte-americano por causa da deslocação do Benfica a Paços de Ferreira. O Graça Moura a desejar fervorosamente que o McCain faça a cama ao Obama enquanto o Bloco de Esquerda não sei quê casamentos de homens com homens e mulheres também não com homens. Moita Flores a dizer que “temos de enfrentar a criminalidade” e nós sem saber se aquele “nós” é connosco – e de que lado da pistola. Petah Tikva, cidade-satélite de Telavive, em Israel, que anda a analisar o ADN do cocó dos cães feito nas ruas para saber quem são os donos: suspeito que só os cães palestinianos serão abatidos. O Bloco de Esquerda a exigir o controlo governamental dos preços dos combustíveis, mas depois a vir com aquilo dos casamentos não sei quê. O senhor presidente da República a comparar a poesia e a figura de Manuel Alegre às de Camões e de Pessoa, quando nem o padre Melícias se arrogaria (digo eu…) a ser enfileirado na orla dos padres Cruz e Américo. A portuguesíssima razão inversa dos megajulgamentos com as micropenas tornada proporcional e directa com os processos sumários de despedimento colectivo. Os canhões de Navarone, a ponte sobre o rio Kwai, o cabelo do Miguel Veloso e a barriga do Rochemback.

Eu acho que isto anda tudo ligado. Sobretudo a avaliar por aquilo não sei quê do Bloco de Esquerda.

Lura

Caramulo, noite de 17 de Setembro de 2008


Já faz frio, os animais recolhem cedo às luras já.
Passo à noite pelos bairros apagados, de que a luz pública amplia a devastação.
A nada cheira: o futuro era afinal esta ausência de perfume.
Há vozearia para o lado dos bares, onde os cansados rejubilam euforias de pechisbeque.
Uma altíssima papoila pulsa no céu preto, talvez um avião a jacto, talvez um rubi sem dono nem deus.
Pastelarias e bancos e farmácias e retrosarias encerraram como se cerra o coração ao não ver retribuído o bom-dia dado manhã cedo.

Vamos por aqui.
Ali ainda canta a fonte, ainda a pedra escreve um nome de casa, podemos entreter-nos a decifrar rastos, capas, mãos de cavalos que na calçada chisparam o lume da passagem.
Vê a noite concentrada nas árvores: mais negra onde o vento lhes dá.
Outros coleccionadores de ossos peroram por aqui sua mudez, suas gabardines terríveis, suas saudades de cães, seus olhos de cães.

Chegaremos em breve.
Agora é uma praça de gravilha.
Além, uma galeria entre cujas colunas os fantasmas se dão às gincanas da memória.
Já procuramos o esquecimento, essa lura.

Obtusa Lírica Dominical (fragmentos)

De trabalhos do passado mês de Agosto, estes fragmentos.

Viseu, Mundial Bar, fim da manhã de 3 de Agosto de 2008

(…)
Um pouco de Brel pensando olhar água,
a azul de azulejo na barragem, domingo.
Ficar todavia toda a vida aqui, num café quieto,
entre posters do Benfica e cartazes de bailagostos.

(…)
Gosto de ver as pessoas repetindo-se, tais
ondas do mar fossem: espumosas, claras e,
afinal, invencíveis, as boas frias pessoas
torradas pela Lua Grande deste sertão, deste

ser tão pessoa na desumanidade.
Bailes em Agosto, ele há muitos, não os irei.
Estou recolhido no co-nãodomínio da alma.
Leio ainda palimpsestos e preços da fruta.

(…)
Francas ruas, encerradas artérias: eu vejo
dos vivos a passante sereia ao farol alteada:
canoro rastilho de doenças vitomortais,
além de Proust muito dandy, muito David Suchet.

(…)
De quantos novembros seremos capazes, humanamente?
Estas pedras históricas, que nos olham na cidade
como oliveiras perpétuas, vitalícias despedidas
iguais a barcos que titanicam tudo

e nada?

16/09/2008

Canção com Sonho de Menino

Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008


Ando a trabalhar muito para ser
por assim dizer
o Tony Carreira da poesia portuguesa.
Os meus versos também estão todos a voltar p’a França.
Tenho muito mais cabelo do que o Tony
mas muito menos cabeça do que o Tony.
Se calhar, assim, vou só ser o Toy da poesia portuguesa.
Toy é Tony sem éne
por isso vale muito menos.
O Toy também faz carreira mas como não tem éne
não é Tony.
Uma pessoa para ter sucesso tem de trabalhar éne.

(Venha o meu tempo d’oiro doirado
a minha praia um dia futuro
os meus pais quase jovens quase moços
as áleas abrindo jardins
o vento dando nas pêras dançando nas laranjas
a água dos olhos e o crepúsculo particular dela,
está bem,
Tony?)

Dois Poemas: RETORNO e PARTIDA

Retorno

Viseu, tarde de 14 de Setembro de 2008

Estendidos nodosos troncos de árvore sob pele: as veias das mãos do homem velho.
Vi-o passar, mesmo, agora, o olhar noutro tempo, não no nosso, no meu sim.
Fendido lagarto dele o rosto: máscara e tempo e máscara e tempo.
Muito limpo, muito correcto: a jaqueta impoluta de terileno-creme, a calça fazendeira de vinco-tíbia, os sapatos espelhados a negro de graxa como uma sideração cósmica.
Um pardal, por assim dizer.
Eu amo a visão dos homens velhos.
Ele mostram-me como vai ser.
Eles dão-nos recados da soludissolução.
Pó ao pó, cinza à cinza: matéria estelar.
Na estela (na esteira), duas datas, um nome.
Um domingo qualquer: ter vivido tudo antes.
Gás e árvores e luz e sobremaneiras: atenta atitude comedora, a dos pombos, a dos velhos.
Uma velha vi eu hoje rechupando o carioca de café: lavada, ela também, a blusa cinza (à cinza), o ouro nas mãos.
O ouro nas duas mãos, o decote sardento, a laca imobilizadora de cançonetista anos-60.
Eu vejo dentro.
O passeio dos senhores que ao domingo.
O tempo que se prepara no cimento e na geografia.
Passamos pessoas umas pelas outras como vento-árvores.
Ramalhamos, fazemos cocó cor-de-chumbo, pipilamos vozes pede-migalhas.
Ao poema de ontem retorno para primeiras
rosas últimas.



Partida

Viseu, tarde de 13 de Setembro de 2008

Um dia colherás por último as primeiras rosas
que a manhã orvalhou na tua doença jardineira.
Esse dia será de noite, pela manhãzinha.
Terás franco acesso ao desespero, essa feira
que merca corações desavindos de peitos.
Toda a agonia é uma literatura portátil,
pessoalíssima e intransmissível.
E tu rumarás à alba-cinza-lunar.

Fala, porém, enquanto vivo, com teus mortos.
Eles te dirão a grande poesia de esquecer.
Dir-te-ão como às defuntas putas tornou a virtude.
Protege-te da chuva ácida de chorar.
Se de tal te protegeres um dia, aquele outro dia
te não doerá tanto.

Uma das fontes da cabeça marulha borborigmos:
água da intestina saudade dos vivos
que amar te foi possível, entre vidros.
Os vivos todos: as pessoas mortas, os animais
que correram por alegria à tua sombra.
O número da casa pintado em azulejo.
E a garagem onde a primeira sexualidade
te condenou ao lego da solidão.

Aquela álea de pereiras-de-inverno.
A almácega vitrificada de gelo e de sombras de rolas.
A infância: o instante total.
E este pedir-de-morrer-aos-versos.
A volta nocturno pelos bebedouros, a poesia.
O Clark Gable a diz
Frankly, my dear, I don’t give a damn.
Aquela álea de pereiras-de-inverno.

Um dia tu verás sem ter de olhar.
As mamas lubrificadas de seiva das mulheres.
A condição gansa da puberdade.
A tua e nossa Mãe mijando-se sozinha na sala.
As Obras Completas de Júlio Dinis pela Civilização Editora.
Os frascos de tinta em pó, tudo cerâmica.
O berro do parido contra os azulejos.
Tu verás quando fores cego.

Rosas pulsando verniz no vidro matinal.
Crianças rindo a felicidade estrangeira da infância.
Esta mão amarrando o coração como um estojo.
Este olhar cada árvore como a um relicário.
E este calvário.

Um dia atarás a sangria dos sonhos.
Terás livre-trânsito para o dealbar azul-frio
das manhãs dos outros, quando tiveres sido.
Serás um homem e uma mulher – e nada disso,
quando as tais terminais rosas
iniciais.

Bebé velho, ultimador de notícias,
colector de pacotes de açúcar e de azias.
Homem e mulher e cão e rosa.
Frequentador do inviolável celibato da poesia.
Músico mudo, utente de peles despidas,
amador de estrofes e de
áleas de pereiras-de-inverno, tu,
you sexy thing.

E Aquilino Ribeiro e Amelia B. Edwards,
lidos à noite quando chove no mundo.
Os lobos invernosos e o chá cardíaco.
A delícia do terror, a extrema educação.
Os barcos orlando de azul o horizonte branco.
Dar sapos vivos aos ciganos.
Cagar no Neville Chamberlain e em Munique e na Checoslováquia
1938.

Aquela álea rosas-de-inverno, quando olhares.
Quando vires os panos pretos, a grisa alba.
Quando vires a infância irrepetível dos mortos:
dos teus amores.
Quando olhares deitado a catarata,
o azul niágara dos mortos e de
Júlio Dinis pela Civilização.

E o Clark Gable e as primeiras rosas.
E a ínclita doçura dos amargos-de-boca.
E a amável infância dos cães e dos mortos.
E o poder todo-musical da poesia.
E ser de noite dia e quem no-lo diria.
E o trevo mijão acidulando a refrega do lembrar

O carácter descartável do amor.
A mulher que foi vista de azul num comboio.
E as mamas aos pares: um mal nunca vem só.
Quando recordares a frígida alegria de um decote,
tu suturado de pontos ventrais
atirando leite e remorsos.

Eu digo-te a pequena música.
Eu faço-te ver.
Tu olhas nos espelhos, nas partituras.
Há bares abertos toda a noite, todo o dia.
Tu amargo e tu também açúcares.
Tu és a pêra-de-inverno.
Tu és o cão.
Eu sou o cão.

As you lay dying
recorda as estrelas de osso das mãos dos reformados.
Os pobres falidos ricos de vida
nas merendas das casas-de-pasto.
A graça: a vida: o deitar-se.

Ao cemitério municipal de Viseu
fui eu
ver por ti a palração onomástica dos deitados:
os sargentos, as marias-das-conceições,
os bancários e os banqueiros,
os silvas e os tenreiros,
os anjos frágeis e eternos como louça,
as pétreas rosas pátrias
que pela manhã,
como sempre,
são rosas deitadas a anjos, a nomes.

Tu serás esse homem, essa mulher.
Esse nome de que a fraca tinta
guardará fragmentado nome:
riscos breves, duas datas.
(D. Duarte, El-Rei de Portugal,
1391-1438: tão pouco.)

Um sabor de raparigas rindo-se
través laranjeiras e limoeiros:
recordarás, depois,
as
you lay dying
.
As vozes dos homens da tua rua,
respeitando o comércio e a educação.
E a pele do nascido placentada no cheiro a terra chovida.
E as fábricas encerradas e J.S. Bach.

Um sabor de raparigas indo-se
na corrente das pequenas ácidas alegrias
(sabor a napa, de banco traseiro de automóvel),
luzes de Paris em doméstica
circunvalação portuguesa.
E o arrefecimento das farmácias,
suas cruzes verdes na noite como se de igrejas químicas.
E crescer para o fim.

Quero viver no teu sono.
No teu mármore olharei dentro.
O que me ofendia em criança era não ter conhecido vivos os mortos
antes de mim,
por exemplo a ti,
Manuel Mota,
nome-número mecanográfico xis e tal
da guerra colonial,
da família Mota da minha aldeia de Portugal,
os canaviais lá em baixo zunindo tensos ventos,
e tu,
senhor Manuel,
adormecido a tiro não sei se em Angola se em Moçambique,
a água dos olhos bebida pelas chilras rosas do
campo-santo.

Poesia, poesia: um dia colherás,
um dia as olharás, albas, azuis, frias:
e elas te beberão os olhos –e também serás
Manuel,
Maria da Conceição.

12/09/2008

ALVARÁ DE LICENÇA SANITÁRIA PARA CORAÇÕES E VÍSCERAS AFINS e outros poemas de lutar pela vida



Poesia é a gente andar cá dentro a lutar pela vida. Nem mais nem menos. A lutar com quem? Mais bem dito: a lutar contra quem? Contra a realidade. Há muitos anos (e para sempre) determinante na minha vida é a célebre epígrafe de Novalis que abria a também célebre colecção de poesia da Ática:

A POESIA É O AUTÊNTICO REAL
ABSOLUTO. ISTO É O CERNE DA
MINHA FILOSOFIA.
QUANTO MAIS POÉTICO, MAIS VERDADEIRO.


Posto isto, trago às vossas mãos e aos vossos corações e ao vosso olhar estas coisas seguintes, que de muito atrás (de muito dentro) vêm. (O melhor da festa sendo, naturalmente, a fotografia, que é da minha Sandra Bernardo, foi obtida a 27 de Agosto de 2008 em Viseu e é a nona da série Casa de Pasto. Chama-se Retrato de Senhora - Aristocracia do Povo.)

(E sim, a
“pomba ferida (…) aos pés da Sé” de um dos poemas é real. Era realíssima, ontem mesmo, senhor Novalis.)



Tábua

I. O ROSTO DA NOSSA MULHER É
Viseu, tarde de 7 de Setembro de 2008

II. ALVARÁ DE LICENÇA SANITÁRIA PARA CORAÇÕES E VÍSCERAS AFINS
Viseu, manhã de 12 de Setembro de 2008

III. APRESENTAÇÕES
Viseu, tarde de 7 de Setembro de 2008

IV. FERIMENTO MORTAL DE POMBA E HOMENS
Viseu, manhã de 11 de Setembro de 2008




I. O ROSTO DA NOSSA MULHER É
Viseu, tarde de 7 de Setembro de 2008

O rosto da minha mulher
é como o rosto do teu homem,
ambos o país profundo da nossa vida
a partir da cor dos olhos dela-dele,
se bem que azul, verde, castanha ou negra
não interessem, interessam-nos (d)eles os rostos,
o meu homem,
a tua mulher.

Ouve-me aqui um pouco: não temos
de perder tudo, só um pouco a razão,
a vaza dos domingos, sim-isso-também,
mas lembra-te da nossa mulher,
do teu homem, dos filhos que construíste
para que de novas ruínas disponham o mundo
e a arqueologia
– e o mesmo dia.

O chilro sabor do sangue na boca
como um café vermelho.
Os rostos dela-dele.
A funda tosse orgânica dos sonhos:
e a rebentação do mar adiado
a que prometemos as vidas.
E a água totalmente perturbada
da cor dos olhos
– ela mesma adiada.

Constróis um filho, constróis um cadáver:
a ama religiosa de todas as doenças
é o apanágio do amor, não o do por aquele
(aquela) com quem se fode, mas do que vai
nascer: a doença, o bebé, o cadáver.
Ouve-me aqui um pouco:
eu serei o bebé de alguém
que morreu já
mas ’inda a versos pertence
– como um rosto.

A quem poderia algum de nós
dedicar telefonemas
como telepoemas?
Pergunta-se pela saúde, comenta-se o tempo:
e a vaguíssima perdição dos outros nossa se torna.

Ombros nus de mulheres como laqueações de alabastro.
É domingo, o mundo dá suas maneiras.
Reporta a têvê seu fidelcastro.
No café só há daqui as bebedeiras.

Como laquear o riso próprio?
Como mesmerizar a pomba adulta?
Como integrar o trafic’ópio?
Como não ser uma pessoa estulta?

O rosto da minha cara é como o teu homem,
mulher.



II. ALVARÁ DE LICENÇA SANITÁRIA PARA CORAÇÕES E VÍSCERAS AFINS
(plagiado de documento municipal verdadeiro fixo em parede de restaurante viseense de minha frequência diária excepto aos sábados, quando encerra para descanso do pessoal)

Viseu, manhã de 12 de Setembro de 2008

O coração deverá ser mantido no mais rigoroso estado de asseio, não sendo permitida a varredura a seco mas sim com pano húmido ou, havendo-a ele, o coração, aspiração. Usar-se-ão os meios necessários para resguardá-lo a ele, coração, da poeira, das moscas e de outros lixos, como por exemplo a memória, essa mosca. O emprego de redes metálicas é permitido e, até, recomendado, pois que o coração é um pássaro de gaiola. É permitido o uso de copos falhados. De louças rachadas também é: a arqueologia é sinónima de cardiologia por alguma razão. A fácil deterioração dos géneros obriga a uma contenção frigorífica dos impulsos e dos bombardeamentos característicos da nostalgia, do luto e do amor.

Quanto mais hermético, melhor.



III. APRESENTAÇÕES
Viseu, tarde de 7 de Setembro de 2008

Rosa Maria, a nossa vizinha,
discreta viúva, talvez trinta anos:
é ela que passa passando a vidinha,
que o marido dela sulcou oceanos.

José, cara de galgo, barriga breve.
Camisola sujita de mostarda.
Um ar de cor no olhar leve.
Um andarilho antes que tudo arda.

De Cíntia o nordeste triste e frio.
O alterne que carambola de cona.
Mas na lembrança um pai e um rio.
E do rio a água, o pai à tona.

Ofélia remordendo malmequeres.
Restitutas volantes perdições.
Um credo só-te-dou-se-tu-me-deres.
Extintas rosas-bravas, carnações.

Francisco, curto e preto seu olhar.
Vigilância que doura o amargume.
Do risco de amar riscou ciúme,
Francisco, isco que se vê passar.

E Dália, que é mulher de popelina,
menina que ameaçou os casados,
há mais de quarenta que é menina,
quase quarenta e tais bem-mal passados.

E, dos créditos simples, o medo a cães,
que Juliana partilha com a filha,
reverte para lá de Guimarães
e de Cuba, que é país e que é ilha.

(Se nas associações recreativas houver sessões,
ficam, Mãe, feitas as apresentações.)



IV. FERIMENTO MORTAL DE POMBA E HOMENS
Viseu, manhã de 11 de Setembro de 2008

Também a manhã, que de um nasce, em um outro
crepúsculo morre.
De muitos crepúsculos é um dia feito, assim
uma vida de poucos dias é.

Guarda a pomba ferida o homem velho
que a descobriu aos pés da Sé.
Vela-a, nada podendo senão fazer por ela
vivê-la: velá-la.

Abrem a tarde comendo bacalhau outros
homens magníficos, de roupa iluminada
de escombros da cal: operários
que refazem a casa que foi de outros homens.

Outros homens entretanto feridos e não
guardados pelo da pomba, na manhã
terminal e terminada, como é usança
dos crepúsculos, um só, afinal.

"Editorial"

© Bill Brandt, Early Morning in Hyde Park


“Editorial”
Crónica nº 68 da Série Rosário Breve, in O Ribatejo – www.oribatejo.pt

Os jornais (nem todos, é certo) continuam com a toleima de publicar notícias. Alguns (poucos, é certo) até pesquisam os factos antes de os dar à luz (da publicidade). Que seita! Os jornalistas que assim procedem nunca hão-de chegar, sequer, a assessores de “comunicação” dum alarve qualquer guindado a capataz autárquico.
A minha opinião é que os jornais só deveriam ter opinião. Opinião e muitas fotos. Notícias, nunca. Quando muito, poderiam publicar “conteúdos”. Mas factos, é mau uso, péssima prática e pior costume. É, é.
Veja-se o caso dos assaltos às estações de abastecimento de combustíveis. Acontecer, acontecem: mas que é que isso interessa? Ao menos que, quando e se se noticiasse um assalto a umas bombas, que, em “caixa”, se dissesse também quanto é que tal gasolineira tem andado a roubar ao automobilista.
Outro caso: o dos desastres. Um furacãozito lá longe (Haiti, Cuba, Miami) até dá, por assim dizer, cabedal internacionalista à página. Dá, dá. Mas cá, não dá. Para acabar de vez com os incêndios, comece-se por molhar a caixa de fósforos do jornalista.
Inundações? Cá? Estás a regar. Violência doméstica? Então e elas também não batem na gente? Bairros étnico-sociais? É tudo hip-hop em flamenco-pimba.
Peço, pois, aos jornais que se deixem destas tretas que tornam feia a realidade. Nada de desastres (nem de viação, nem Manuela Ferreira Leite). A realidade é para ser teleguiada de Lisboa. De vez em quando, pelo Carnaval e pela Pascoela, respectivamente, podemos saber de Alberto João Jardim e de Rui Rio. Valentim Loureiro é que já é abusar. Fátima Felgueiras também, que é muito boa senhora, sobretudo quando estava no Brasil. O coiso de Marco de Canaveses também é giro, pode ser. E Mariza e Toy, que nos enchem de (g)orgulho o arroz cançonetacional.
A realidade pode ser feliz. A realidade pode ser feliz como uma criança pobre: desde que os jornais não refiram a existência de crianças pobres. As crianças pobres são boas mas é para reproduções de feira. Gosto sobretudo daquele menino a chorar, porque me dá ganas de rir. E os jornais deveriam ser para rir. Alguns já são. Nem todos, é certo.

11/09/2008

11 de setembro uma merda, digam 10

EM PORTUGUÊS, 11 DE SETEMBRO DIZ-SE 10 DE SETEMBRO
ou
MANIFESTO NACIONAL “SOCIALISTA”
ou
enumeração tecnológica para meninos-de-ouro


Viseu, fim da manhã de 11 de Setembro de 2008

1. – Manuel Ribeiro, 50 anos.
2. – Armindo Pereira, 53 anos.
3. – Augusto Barbosa, 57 anos.
4. – António Cortinhas, 51 anos.

1.1 – De Arcozelo.
2.1 – De Moreira de Lima.
3.1 – De Marco de Canaveses.
4.1 – De Larinho.

1.2 – Morto a 10 de Setembro de 2008.
2.2 – Morto a 10 de Setembro de 2008.
3.2 – Morto a 10 de Setembro de 2008.
4.2 – Morto a 10 de Setembro de 2008.

1.3 – De desabamento em pedreira sita em Arcozelo, Ponte de Lima.
2.3 – De desabamento em pedreira sita em Arcozelo, Ponte de Lima.
3.3 – De queda de retroescavadora em saneamento sito em Lazarim, Baião.
4.3 – De queda de cerca de três metros em construção de casa sita em Urros, Torre de Moncorvo.

1.4 – E de “socialismo”.
2.4 – E de “socialismo”.
3.4 – E de “socialismo”.
4.4 – E de “socialismo”.

10/09/2008

Faia tal que a vida durma

Viseu, tarde de 10 de Setembro de 2008



O brando outono nos queima já de vida o sono,
sobre a mesa do chão revoa o pão das folhas.
É antes do sono a vida feita de escolhas,
depois tão-só sono brando ao brando outono.

Escarlate ouropel tinge a subida faia,
perene é assim dela a caduca condição.
Tudo o que vivo sobe, morto cai ao chão:
o pão das folhas, ouro que desmaia.

Desmaio é não mais maio ser a vida,
que outubro a vigia de nascença.
Pessoa é quem pensou, não quem se pensa.
Aind’ assim ouro e sono – e faia enrubescida.

Além, urzes de áspera roupa emaranham
a doçura lenta dos animais de regresso.
Ao lume do lar, mulheres amanham
peixes e aves das idades do começo.

Nem chuva ainda – e sol já não.
Depois e antes – tudo durante.
É extinto o ínclito verão.
Ter-se-á – ou não – inverno à vante.

De nós mesmos mariposas, à luz que fenece
oramos tão-só nos salve-e-guarde
da fenecida vida que a morte não tarde:
mariposamos tão-só tal outonal prece.

Não maio mais. Mais que meio, o viver
outona canduras antes insuspeitas:
um expirar de sono, à hora a que deitas
aos pés de ou(tub)ro ouro ser.

Saudades do mar, ao cabo, como de uma pessoa enorme.
Lembrança, a mais fulva, ter sido para ser, noutra vida.
Sobe em ouro a vermelha faia enrubescida.
E adormecida (vivida), de sonoutono a vida dorme.

07/09/2008

LADO



Fotografia: DO OUTRO LADO, © Sandra Bernardo, Aveiro, 30 de Agosto de 2008
Texto: Viseu, tarde de 6 de Setembro de 2008


Era o que vai ser ainda: a vida quieta de repente.
O ar enquadrado de casas que sei (que ele sabe) vazias, em cujos dentros os móveis e os despojos continuam a emitir memória.

A praça primeira do périplo arde verde na estátua do Rei, que trepou a um pedestal a fazer de homem quieto – como a vida quieto.
Além, uma velha sentada em pedra tira lixo de um dente, seu antepenúltimo farpão.
Um homem de cadeira-de-rodas e um menino num carrinho: a similitude, a ininterrupta facsimilação.

Vê: um homem andou (andarei) pelas ruas despovoadas.
Conhece: é um homem do futuro
(pois que mais futuro pode ser que uma casa vazia?).

Tudo isto já foi.
As pessoas fogem como gases.
Ramalham para ninguém as árvores:
meia dúzia de pássaros, se tanto.

Viseu, um sábado pela tarde.
Uma volta de evanescente corpo.
Têxteis, encadernações, enchidos, loções pós-barba.
Gangas, letras, cartazes, tábuas.
Degraus, toalhas, santos, S. Paulo por todo o lado.
A noite aproxima-se.

E este rumor imanente à condição molar das coisas.
Este por assim dizer gemido das coisas.
Quanta beleza, sinceramente.

Uma senhora configura o Cavalo em andamento.
Outra atira um lençol à luz do primeiro andar.
Uma criança babuja solfejo trinado a solilóquio.
Um rapaz de óculos escuros vai de verde e azul.
Mas vazias estão as ruas e são as casas,
eu sei, ele.

Mas de uma criança os pés nus
são a substanciação da luz.

Isto será o rasto de um trabalho: um ter-vivido-depois.
Elas urdem, elas zunem, barafustam, calam:
as palavras.
E eles: os trabalhos.

E se este homem, uma vez na vida, pudesse convocar não digo os seus espelhos mas as máquinas que imaginam coisas como espelhos e homens.

Então, em vez de este apenas-sábado e de esta apenas-cidade, então todo um rodízio de imagens benignas: as crianças, a nudez luminotécnica dos pés das crianças, os têxteis diversos, as colchas, as toalhas, os lençóis, as mulheres à janela e as janelas exportando o vazio dos móveis que os mortos deixaram para ser retratos emissores.

Antes que tudo arda,
(d)enunciar o que a água fez.

E antes da noite, não muito antes mas antes, a hora a que os homens, quatro a quatro, entram nas casas-de-pasto e ordenam sardinhas fritas e jarros de vinho negro como a noite, mas antes dela.

Ou então permitir que a realidade entre em casa (o corpo) por aspectos de linguagem: conversar de açorda alentejana com reformados ao pé de uma floreira de ferro fundido; desconsiderar a escumalha norte-americana; sonhar sonos entre cedros, numa floresta rumorosa de beira-rio; conjugar um verbo inventado como precariar.

Tudo isto e o nosso (dele, dela) futuro, mescla prévia de passado com olvido e com memória: como móveis numa casa despovoada.

Viseu ou Oslo, no fundo iguais, uma parelha de centelhas de gelo, um riscar de ouro e rubis, os carros na noite anunciada, a anunciar logo, desde antes e para sempre.

Ou isto ou um homem a escrever na tarde que declina – como se declina(ra) um verbo, ou uma luz, ou uma progressiva escassez dela.

E se outro homem (outro ele) diz a este homem (outro eu) que não tem televisor porque não tem casa, porque é num quarto que mora, sessenta e não sei (não diz) quantos anos, então o homem (um qualquer dos dois) há-de olhar portadas que dão ao vento madeiras bandeirantes – e um trecho de rio lunando em solidão, própria e alheia e a mesma.

O trabalho é procurar a palavra que diga o mesmo à vida: qualquer vida, onde for. A palavra é o rasto (é o rosto, é o resto) do trabalho: a criança que começa pelos pés para ser luz.

Uma vez na vida, este homem não quer a fuga, mas o retorno. Não a evasão, mas o encontro. Nem sequer a autognose, mas a montra (têxteis, encadernações, enchidos, loções pós-barba).

Ou Nuremberga – ou Moimenta da Beira: algures os homens que esvaziam as ruas, que enchem de vazio as casas extintas, dando de bandeiras madeiras ao vento negro que cresce do mar de dentro – ou uma beira-rio brincando aos comboios e aos ciganos e aos reclamos luminosos que entontecem o olhar como miríades de diamantes pluviais.

E uma revoada de nomes sem corpo pauta o silêncio gentil: Horácio, Porfírio, Antunes, Cleto, Serafim; Maria, Luísa, Emília, Saraiva, Dolores.
E a cidade: imo de aldeias sem filhos, na cidade perdidos.

Décadas.
E o cimo do sino do sono do sonho do sim.
Somos? Fomos.

E se como aves outonais revoarem frases antigas,
o futuro todo se mexerá neste mesmo papel,
neste sábado mesmo. Haja dignidade, senhores,
porém: que a tristeza é digna, insigne até.

Também ninguém tem de falsear os signos:
eles são viver e morrer. E talvez nascer:
amanhã-antes (os pés de luz).

A evidência dos bebés, a dignidade dos animais (o Cavalo, o Cão, o Gato):
as facsimilações.

E esse tempo que o homem gastou a amar, relojoeiro de seus instantes dérmicos, suas mínimas atenções panificadoras, seu ter-sido-filho-agora-pai: ser um adulto dentro da criança
moritura,
Jesus.

Outras vidas, de tão anteriores, farão futuro:
a linha de corredores correndo gasolineiras;
os que tomaram tambores em manhãs armistícias;
a manhã de amanhã dos tocadores, dos ladrões.

Volta o canteiro de rosas no reverso,
experimenta fazê-lo: os cabogramas
de nossos pais-irmãos-filhos militares,
África, 1961-1974.
Volta a língua, corta as barbas grandes
(loções-pós-barba-marca-444).
Ouve Supertramp e Tony de Matos.
O homem que esvazia de simimesmo
uma mesma casa é homem: e é ar.

Num toque raro, os nomes cemitérios
são semi-sérios: rir metade é possível,
ante as ausendas, os borges, os almeidas,
as deolindas. Ou:

HORÁCIO; PORFÍRIO; ANTUNES; CLETO; SERAFIM;
MARIA; LUÍSA; EMÍLIA; SARAIVA; DOLORES.

Viseu, um sábado à tarde na noite de Oslo.
A grandiloquência do silêncio, os ramalhetes de secas papoilas.
Os retratos de Oslo, os dos que vão viver pós-mortos (como os nossos progenitores), nas casas vazio-viseias.
’tás a ver?

O toque do dia todo: uma pessoa ser só de si
própria e mesma e antes como depois, em bronze
como D. Duarte, o verde, o azul, o palavroso – e
idiomático: e estranho,
já agora,
iniciático de périplos e de pèzinhos de luminocrianças.

Tocam os sinos sua brônzea noite interior, a pátria não egrégia se igreja. Cai o veludo da noite em gaseadas veludações.
Quem tem homomulher a mulheromem beija.
Ele há labiações, ele há colhões.

Perdão!

Ele há homens sozinhos em ruas
vazias cheias de gente vazia.
E depois como antes o mesmo outro dia.

06/09/2008

DOIS POEMAS: VI DUAS ROSAS e DA TERRÍVEL INDÚSTRIA

I. VI DUAS ROSAS

Viseu, tarde de 30 de Agosto de 2008

(escrito para a D. Luci na primeira tarde do mundo sem ela)


Vi duas rosas sangrando a luz da tarde:
o sangue queima, a luz arde.

Eram duas rosas altas sobre verde na cinzura.
Tomámos café num sítio qualquer, na qualquer cidade
da nossa vida.

Em cem anos, fizeram muitas estradas, muitas casas:
e viveram e morreram e querem renascer.

Amontoam os carros, os sacos de compras, os pentes,
as unhas lacradas a verniz, as distracções.

Estou perante eles, sou como eles, que vós sois.
Frente a um prédio, duas rosas, uma pastelaria.

É verdade que continuamos almocreves, descalços
ao pó dos caminhos, gaseados na flandres em folha
do céu em cinza.

As novidades chegam velhas ao mercado,
vale-me a contemplação não cinegética da
grande beleza das mulheres, das rosas.



II. DA TERRÍVEL INDÚSTRIA

Viseu, tarde de 28 de Agosto de 2008

O que nos distingue
é sermos animais de coração bilingue:
falamos a vida e dizemos a morte.

E tudo está perfeitamente connosco
deste lado do rio.

Portamos certa graça morena,
certa negra graça lunar.

Varremos outonos que acabam de repente
cheios de água do país dos olhos.

Distingue-nos sim esta última saciedade ínfima:
este morrer tanto todo o dia para nascer um pouco

amanhã.

As varizes da varredora doméstica;
a grácil frivolidade do cabelo pintado dela;
a cozinheira esbranquiçada como uma galinha assustada;
o velho alcoólico atirando o aramaico da infância;
o jovem já calvo que vai a enterrar o pai;
a música interior das casas fechadas;
a nossa Mãe no cinema octogenário;
as nossas amadas árvores crivadas de pássaros e de indústrias labiais;
a seta de uma palavra certa no nosso coração;
o nosso Pai no nosso nome octogenário;
a terrível indústria que fabrica quartos fechados;
essas pessoas nesses quartos fechados;
a palavra morte ser tão viva;
as ancas das raparigas èguando as ruas;
nascemos um pouco amanhã, depois já não;
a coudelaria do anoitecer montada de fantasmas;
um peixe nadando nos sonhos;
o meu amor aferventado em leite-maria;
as ruas amarelas levando ao nenhures do pensamento;
as rosas também amarelas educando efemeridade ao ouro;
o nosso Pai tornando-se nosso irmão, depois nosso filho;
a nossa Mãe sozinha num quarto fechado;
e tudo connoscamente perfeito, deste lado do rio;
os padres que pelas ruas congregam as sombras;
uma ideia de Cristo na ânsia erótica;
a paz outonal que sucede ao desespero;
a ortografia portuguesa completa como um cristal;
o som dos sonos repercutindo cordas de bronze no coração;
e na cabeça e no estômago e no Camilo Castelo Branco;
a sardanisca que risca verde no muro solar, branco;
a nossa morena graça;
no relicário das noites, a jóia dourada das nossas cabeças;
as nossas mãos estrelando a terra;
nós aos pés do mar, fotografados agora;
o sangue feito voz escarlate (ou duas rosas lucilantes);
o chamamento dos mortos, surdino;
a memória desfazendo-se em água cor-de-terra;
a glória e a violência do amor alheio;
os pés das mulheres branqueando o chão;
o viço éreo das estátuas à chuva;
um homem de chapéu recusando o século;
uma merenda de fruta sob a latada;
o riso de uma senhora como um jorro de água;
a pulsação autofágica nas veias dos olhos;
o tempo de tirar as calças, a liquefacção das virilhas;
a palavra correcta que uma mão aberta é;
o restaurante afamado rondado de putas;
a doçura quase insuportável das partidas;
um barco denunciando a água;
o rio e o mar – e este lado de ambos;
este lado de ambos ser o coração;
o carácter vitríolo do Tempo;
a siderada condição sideral da incompreensão;
um arroz de frango comido a uma terça-feira;
a vocação elitista que faz fazer filhos;
um emprego deitado fora como um pedaço de pão;
uma colecção de versos capaz de leitor até aqui;
a sangria desatada de nós;
o poder autárquico cagando epigramas;
a boniteza perpétua de um painelazuldepaiazulejos;
uma casa branca como uma dentição amiga;
certos sábados à noite, em o antigamente ou 1981;
e as bilingues cor e acção.

05/09/2008

Telemóvel e crónica

Meus queridos e mui queridas amigas: estragou-se-me o telemóvel, pelo que tempos e águas correrão sob as pontes até que novo número me seja possível. Continuo, porém, disponível (e atento) em daniel.abrunheiro@gmail.com. Em jeito de compensação pelo vago incómodo, deixo-vos a crónica desta semana n'O Ribatejo do costume (http://www.oribatejo.pt/).
******
Rapidez em nome de Conceição

Falei com ela e ela disse-me que não, que hoje não, que hoje nunca e que nunca ela será hoje para mim jamais, eu sou Manuel Baptista, ela é Conceição Silva, para ela ela nunca se há-de ver como Conceição Baptista, enquanto eu eu até Manuel Silva, em nome de Conceição, palavra de honra. Está bem que trabalho na sapataria desde que deixei de ser fiel, isto é, de armazém, e ela é uma infiel de outros armazéns, ela é Conceição e eu sou Manuel e isto vamos ser sempre assim, Conceição ela, Manuel eu, baptistérias silvas e silvícolos baptismos à parte. As histórias de amor só são amorosas e históricas se tristes, e isto é uma tristeza para mim, que Manuel sou, não para ela, que é Conceição. Digo-vos isto à pressa por causa da brevidade da vida e por causa da brevidade que os directores de jornais impõem aos cronistas. Estou na sapataria e descalço senhoras, só que nenhuma delas é Conceição, enquanto eu continuo Manuel. Manuel e fiel, não de armazém embora. Até acabo de arrumar à pressa esta caixa de sapatos de pelica cromada a purpurina para que nas mãos, ante vós, me não sobre senão o coração: o coração ante o senão de Conceição. Como ela me foi, me não tendo vindo? Vo-lo digo: cabelo cor-de-trigo, tostadas espáduas de saliente ossatura, peitoril hirto e firme de pura morangura, bacia-baía de arenas promessas e, ainda, esse par de pernas que levitar a fazia, sendo depois Conceição de ter sido Maria.
Não. Não caso com ela, que ela disse-me não, mas eu falei com ela.

03/09/2008

Faduncho para N., V. e T.

Viseu, esplanada do Restaurante Colmeia,
manhã de 3 de Setembro de 2008


Quarta-feira, manhã nova.
Cedo saio a of’recer
pão do velho às pombas novas
que o gostam de comer.

Torno à praça sideral.
D. Duarte olha p’ra mim.
Ele foi rei de Portugal,
hoje nada, é mesmo assim.

Ruazitas levam gente
pobrezita pela calha.
É uma gente indigente
que vive do que trabalha.

A manhã nubla o sentir,
’inda o sol nos não tomou.
O passado está por vir
e o porvir nos não chegou.

Quero a flor da laranjeira
perfumando o teu olhar.
Pode ser a vida inteira,
desde que mui devagar.

São antigas como o mundo
as senhoras viuvinhas
que trocam ali ao fundo
as receitas e as mèzinhas.

Passa o rico par de mamas
de uma vaca vertical
que num alterne de damas
champanha a cento e tal.

Dou-te esta rosa pungente
como as rosas todas são.
Só que esta rosa é gente
por ser o meu coração.

Ó senhora dos aflitos
transidos de agonia,
ó minha lua de gritos,
ó meu silêncio de dia:

ensina-me a pintar,
desaprende-m’ o’ screver,
que o verso me faz calar
o que a tinta quer dizer.

Estás sozinha, Genciana?
E tu, Lurdes, estás também?
É a vida tal semana,
terça mal, domingo bem.

Subscreve o assinado,
assassinado almocreve,
e escreve e põe de lado
o fado que não se atreve

a ser fado e destino
à portuguesa maneira:
garganta não cordilheira,
sol no chão e lua a pino.

Ali na charcutaria
de mui galantes morcelas,
há senhoras todo o dia
sonhando coisas com elas.

Ladra um cãozito de louça,
voz de barro em chacota
(e que aqui ninguém nos ouça,
é um som de terracota).

Por credo e anestesia,
ele ’ind’ há quem creia em Deus.
Mas o Diabo vigia
todos os créus que faz seus.

Numa igreja aqui perto,
há lírios de plasticina.
Foi o padre (que é esperto)
quem dourou a purpurina.

Genuflecte a velha sonsa,
se estatela o beberrão.
Ela lava a mitra esconsa,
ele faz de sacristão.

(Mas, olha!, de sol um raio
vem ora solarizar.
Quanto iço, quanto caio,
nascer, viver, terminar.)

(Nascer, viver, terminar.)


X Estrofes para Aprender a Pintar

Molelos (I a IV), entardenoitecer de 2 de Setembro de 2008 e
Viseu (V a X), noite idem



I

Porque não sei pintar retratos, comprei espelhos. Às pessoas que me visitam, peço que fiquem quietas perante eles. É então que elas compreendem os seus mesmos fantasmas, que seriam os meus se os soubesse pintar.

II

Sim, a vida ainda me adeja como um vento de bandeiras. Ainda sou o madeiro que meus pais atiraram à praia antes de voltarem para o mar. Agora, confirmai-o comigo: contra o mar adejamos, a que voltaremos, ao vento.

III

É um cinzeiro amplo, de barro negro. Tem cinco bocas (dez lábios) para suporte dos cigarros. Pouso o cigarro numa (dois lábios) e fico a vê-lo ardendo sozinho. Quando não fumo, faço o mesmo ante a minha vida.

IV

Estou sentado sozinho nesta sala. As paredes são de pedra: bons muros: claros signos da eternidade escura. Há um móvel que guarda vidros e louças. Há um televisor desligado. E a minha mão deita tinta de sombra ao papel, que a tinta e mão recebe e transforma em vidro, louça e escuros signos não eternos.

V

Sempre gostei de ser tocado pela graça da tristeza em anoitecidos cafés de província. Palavra de honra que sim. É uma tristeza que, de imediato, reciclo em esta pouco secreta alegria da poesia.

VI

Os nossos mortos vivem a nossa vida. Podemos confirmá-lo na cortina que como uma pálpebra estremece à brisa que não há. A mesma coisa quando se nos interrompe a vigília e damos por nós especados perante uma chávena, uma tabuleta, um animal que passa e não vemos passar. E eles dentro de nós, mais do que nós vivos.

VII

Costumo parar na rua para ler as ementas expostas das casas-de-pasto. Parecem-me poemas, aquelas linhas que não chegam ao fim. (Até pus uma personagem de Terminação do Anjo a sentir que sim, que são poemas, as ementas. Uma pessoa pode não viver de coisas assim, mas para coisas assim. Eu vivo.)

VIII

Hoje, acordei extenuado por um sonho que envolvia a minha Mãe e o meu irmão Carlos. Tive de obrigar-me logo a pensar em coisas boas da vida. Digo-vos algumas na estrofe nº IX.

IX

Os romances de Henry James.
As mulheres quando se riem.
As mulheres quando nos perdoam.
Os romances de Henry James.

X

Agora vou para casa, tenho a mulher à espera. Uma mulher à espera é que é a casa, se a soubermos pintar.

02/09/2008

Bom Dia, Noite! - um poema para voz -

Viseu, manhã de 2 de Setembro de 2008



Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!


Eu quero alcando(u)rar-me à luz grácil,
que vai escuro o tempo e a vida, frágil.

Também quero ter-te dest’arte em maneira
que me pertença ser-te eu e ser teu a vida inteira.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!


De minha prístina retina retiro o olhar-te,
em cansada e doce e humana arte.

Do rosto das casas, um olhar de janelas
te vê branca ao sol mais bela das belas.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!


Os fatigados pés da corredora gente
refazem a rua em rua diferente.

Se um bambino chora, tal cãozito vadio,
é o inverno em setembro, é a morte do estio.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!


Toca-me. Não me deixes sem toque,
que um coração também usa o escroque.

Mamila-me. Não me desmames nunca,
que a vida é casa, não é espelunca.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!

Olha, ainda há andorinhas:
reticências ao sol e tão pequeninas!

Mira, ’inda agora nasci:
e fui renascer sempre que morri.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!


A terrena palavra do torrão natal
voa e reboa, telúrica, sideral.

Belezas arbóreas, marmóreas faces:
expostas a cru aos dias rapaces.

Bom dia, ó branco sol reiterador de matinas!
Bons dias, senhores! Bons dias, meninas!

Boa noite, argêntea lua dos fados comovidos!
Boas noites, senhoras, maila seus maridos!

Três Desejos - mais uma fotografia de Sandra Bernardo para o Povo



Três Desejos
© Sandra Bernardo.
Viseu, 31 de Agosto de 2008.
(clicar nesta e em todas as outras fotos da minha Senhora para ver à maneirex)

Cai, Sai, Vai

Viseu, entardenoitecer de 23 de Abril de 2008



Cai o dia, caem com ele as suaves palavras cansadas.
Ao perfil das igrejas assomam declinantes aves negras.
Um dia foi a morte, um dia será ela de novo, nada nos
contará nem importará, quando for, quando foi.
Subiu um pouco a temperatura, desceu a chuva um pouco.
Tenho um rosto para esconder no sono, para revelar na fala.
Não é importante, importam nada e nada contam os rostos.
Cai o dia.

Sai a noite a tomar dela as praças.
Sinto um rio correr: talvez o meu sangue.
Talvez o meu tempo caindo no chão como cartas
recebidas – ou de jogar – ou geográficas.
Crepusculam as aves derradeirando o dia.
São bonitas e inúteis, elas aves, como os nossos olhos.
Não é importante já a beleza, anoitece.
Cai a noite.

Vai a manhã, nem todos a reverão nem virão.
Ainda hoje o meu vizinho, o senhor Monteiro.
Estava a dar de comer à gata, vi pela janela a carreta.
A manhã roxa, a manhã corpo-presente, as velas.
Oitenta e sete anos, tudo pago. Era um senhor
nas minhas escadas, pedia desculpa por atrapalhar
o tráfego, a vida dos outros: como os poetas.
Vai a manhã.

Canzoada Assaltante