30/12/2012

De um anónimo pela tarde de 31 de Julho de 2012 (in LABIRINTO SIMPLES)


“EU SEMPRE FUI SOFRIDO NA MINHA
CASA, EU DOU-L’E VALOR A ELA,
MAS ELA VEIO-ME BUSCAR A
FILHA A CASA, ELA VEIO-ME
BUSCAR A FILHA A CASA MAS NÃO ME
VEIO BUSCAR A MIM, EU AINDA GOSTO
MUITO DELA MAS AGORA ISTO”

(Anónimo no Café Colonial, Leiria, tarde de 31/7/12)

Escrevedeira-das-Neves: belo nome, belo ser




Vinha ontem no CM. Foi detectada em Portugal. Nem tudo nos corre mal, portanto.

27/12/2012

Rosário Breve n.º 289 - in O RIBATEJO de 27 de Dezembro de 2012


Crónica persa

Dona Gerenciana Ávila de Montenegro sofreu, aos 87 anos de idade, a vontade peregrina de casar-se.
Virgem devota de horóscopo e condição, era senhora de seus dela haveres, plural que incluía um gato persa, um naperon português, um jarrão da China e um pastel de Tentúgal. Mais pinhais a perder vista, apartamentos na Lapa lisbonense, dois petroleiros e uma caderneta da Caixa Agrícola com mais dígitos que eu caspa. Objecto lúbrico de seu dela amor era um rapaz de breves 22 anos chamado Arnaldo. O qual era marceneiro por castigo, que desistir de estudar no 8º ano dá nisto. Alto, moreno, cabelo negro até raias de azul, espadaúdo, saudável como um pêssego e portador de beiço grosso peliculado de saliva viva, o rapaz gelatinou as deferências cardíacas de Dona Gerenciana, a pobre que pensava saber tudo da vida até que o amor a arrastou em vórtice para os arrais desta crónica. Ventando-se de nipónico leque à janela, a velha senhora esperava as nove menos cinco da manhã e os três depois das seis da tarde de cada dia todos os dias, menos domingos e meios sábados. Eram as horas a que passava Arnaldo, tão insolente como inocente, deus de motorizada a caminho de setenta contos por mês. Belo como o sol, fresco como a lua, Arnaldo lapijava, sem o saber, uma ruga nova, cada vez que passava, no rosto já pergaminhado de Dona Gerenciana. Ele não se sabia amado por toda aquela renda.  O rolo dos meses fez-se, num riscar de fósforo, dois anos. Aos 89 de idade, Dona Gerenciana desfalecia mas não falecia, posto que o amor dá rijezas inauditas a quem o sofre. Arnaldo, sempre marceneiro, sempre sem saber, passava sem saber que ficava, mais fundo ficado e fincado no coração de melancia de Dona Gerenciana. Esta história não é para rir, mas à vontade o faça quem a isto ache graça. O gato persa, bufando de mau ciúme, escalavrou de sangue as varetas varizentas de Dona Gerenciana, que estiolava de amor a uma janela que se apagava. Arnaldo acabou arranjando outro emprego, pelo que deixou de passar. Dona Gerenciana murchou como uma jardineira. As orelhas antigas fizeram-se-lhe cera translúcida. O olhar, sumido pelo abuso da luz de quase um século, amortizou-se-lhe como um resto de dívida. As sardas do peito uniram-se-lhe de negro. Os joanetes pantufados romperam pela parede, causando mossas no reboco. Até que, uma quarta-feira, Dona Gerenciana desistiu da janela. Recuou em passinhos curtos de monge budista até o sofá, onde se lhe desmoronou o amor, todo o amor. Chorou de mansinho a conta exacta de sal: se há coisa que a velhice traz, é a medida certa do pranto. Depois, a coisa passou. Todas as coisas: o rapaz, a juventude, a motorizada, a esperança, a saúde, a espera, a luz, a loucura. Passou tudo. A senhora da Assistência Social veio dar com ela atravessada no sofá, partida de tanto ter vivido sem viver. Chegou o ouvido à boca dela e ainda teve tempo de guardar um sussurro sem explicação: “Eu volto, Arnaldo”.

20/12/2012

Rosário Breve n.º 288 - in O RIBATEJO de 20 de Dezembro de 2012




Não me leves de Audi a ver montras ou feiras

Aqui sou. Trabalho os papéis. A manhã já lá vai, não voltará. Outra por ela sim, como se nada fosse o íntimo ínfimo sentido de tudo. Um carro, além-rio, desce em solidão uma via secundária. Assim por igual cada um, não há nem é novidade. Deixo que os elementos me pensem.
Derredor, as mesas prandiais estão por recolher. Os fregueses foram às vidas, as empregadas preparam o desarme dos cacos: pratos, chávenas, talher, garrafas, papéis engordurados que ao menos serviram, como o estudo honesto da gramática, para limpar a boca.
Se me erguer daqui (ou disto) para um périplo pela Cidade, receio que as montras me convidem a adquirir, não as natalícias inutilidades douradas do costume, mas gente desvalida e relegada à subcondição de manequins de presépio franco: uma professora reduzida ao mesmo zero do horário, um enfermeiro de menos de trinta anos por dez réis de mel mal coado à hora, um agricultor de milho & batata desavindo com a seriedade da terra, um ceramista sem barro e sem saber que fazer das mãos, meia-dúzia ou uma centúria de jornalistas já não rapazes a quem resta a redacção de folhetos de hipermercado (vulgo “conteúdos”), um polícia mal aposentado que só agora descobre que andou toda a vida a (salva)guardar ladrões – e um que outro autarca apeado à roda-baixa por ter cometido a local insensatez da honestidade pública.
O meu receio é interrogativo: quem me garante que o Ano Novo não será o do relançamento das populares feiras de gado, substituída porém a cornúpeta animália pela humana fauna ex-laboral?
As moedas dão-me ’inda, todavia, para outro café, tenho do Sttau Monteiro o resto de Felizmente Há Luar! para ler (nem que só para reiterar que, entre o 1961 da edição prima da peça e o agonizante 2012 nosso, se dá uma contemporaneidade iniludível), se calhar demoro-me por aqui um pouco mais a sul do céu, que hoje é uma campânula pardacenta, grisa e de uma nublação sufocante aliviada apenas pelo zunzuar cuteleiro do vento. As próprias aves parecem atordoadas: a falta que a luz lhes faz é a mesma que a nós. Jovial excepção à sorumbática regra é a glória mijona daquele cachorro ao pneu traseiro daquele Audi preto: um príncipe vadio que, como cidadão em manif, se liberta em plena rua sem medo do bolor do ontem nem da mais que provável antiguidade do amanhã.
Tendo decidido ficar com o meu Sttau (arriscando-me embora a ter angústia para o jantar), acabo sendo remunerado pela pontual visão da passagem de uma que outra portuguesa: esta de tão elevado mérito verde à altura dos olhos com que nasceu para (vi)ver, aquela de tão perfeita turquês de pernas tão bem agasalhadas de fazenda ambarina, aqueloutra ’inda que cangurua num homem o desejo todo marsupial de lhe ir ao ventre.
Palavreado de pobre, enfim, com que remendo, remendão, o rasgão inconsútil de uma vocação de trapeiro.
E quando finalmente me decido, nem que por tíbia imitação mas glorioso arremedo, a fazer alguma coisa bem feita, descubro que o Audi preto de há parágrafos se foi embora já, pelo que só me resta uma dessas moitas devolutas que, por aí como por aqui, sempre são coisa que não falta, à falta de melhor e infelizmente ao luar.

13/12/2012

Rosário Breve n.º 287 - in O RIBATEJO de 13 de Dezembro de 2012 - www.oribatejo.pt


Enjeite-Se a Rosa mas a Laranja também

De não igual mas idêntica maneira, vai cada qual levando a vida que lhe coube e cabe. Não é porém feliz verdade essa da evidência de muitas vidas afixarem ao peito de vidro o mesmo que muitos estabelecimentos nas respectivas montras: ARRENDA-SE, TRESPASSA-SE, VENDE-SE. É o chamado fenómeno da LIQUIDAÇÃO TOTAL DA EXISTÊNCIA. Sou levado a lapijar esta demonstração algo macambúzia pela visão do acordeonista.
É um cego esmoler de esquina – e da mesma estirpe dos que Salazar, por cosmética, mandou encerrar em 1957 por ocasião da vinda a Portugal do real casal britânico. Este músico pedinte de que vos falo, não sendo igual a todos os outros, a todos os outros é idêntico: por ser, como eles outros, vivo símbolo da vileza de uma sociedade que não cuida de se ver retratada a si mesma num rosto desprovido da bênção da luz esmifrando migalhas de cobre ao pórtico dourado das agências bancárias a troco e a compasso da lágrima ferrugenta da Rosa Enjeitada.
Do presépio orneje o burro santo e muja placidamente a plácida vaca, que da caridade as palhinhas lhes darão, se não que comer, o que tasquinhar. A compasso de acordeão ceguinho, é difícil todavia que envelhecer em Portugal deixe de ser um crime, que a simples escola pública não mais seja contabilizada como um deve mas como um haver, que a saúde seja como deveria ser saudação exercida localmente como direito terreno e não como celeste privilégio de quanto é interior população, que a juventude não seja levada a alugar e a empobrecer coração, cabeça e estômago nos modernos bidonvilles da velha estranja, que o sistema judiciário se preste à justiça de ser justo por breve, idóneo, imparcial e equitativo – ou que, já agora, os cronistas de última página possam passar a tecer loas à pesca sustentada, ao direito laboral à medida do direito humano, à potenciação fruteira de um solo úbere e à redução a desafio de futsal da relação RTP-PSP.
Enquanto o cego toca, repugna-me o meu mesmo pendor por assim dizer ecuménico, que à classe possidente há-de parecer descarada comunistice e à classe despojada desperdício crasso de papel & lápis. Seja. Seja. Não posso deixar de me sentir atordoado de impotência ante o acordeonista, a quem aliás não obolei com um cêntimo que me não sobra nem vem. O meu Portugal-dos-Pequenitos não é o de crianças violadas em seminários e/ou barracas suburbanas. A minha geriatria não é a dos idosos ardendo devagar à combustão das lareiras de pardieiros. A minha utopia é a de pão-com-manteiga, não a de amanhãs que diziam cantores mas que afinal só tocam, mal, acordeão, e que só não vêem porque não querem, ou não sabem, ver.


06/12/2012

Rosário Breve n.º 286 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt


Melão ao mar

Tirando os imbecis, que nem a si mesmos entendem, julgo que toda a gente pode compreender toda a gente. A ler vamos.
Rodolfo Hilo de Astona, muito velho e quase cego, revisita, no pino do Verão, a outra cegueira: o mar. No regresso a casa, ouve o vento no sangue, o trabalho do sal na areia do coração. Pensa: “O ruído é o silêncio que não sabemos ler”. O velho mete-se em casa e cala-se para dentro. Ouve o vento repetir nos pinheiros a gravação das ondas da praia.
Maria de Jesus Taborda, vendedora de melões, dormita no abafo da sombra da barraca de canas à beira da estrada nacional. Um chinelo de borracha pinga-lhe do dedo grande. Duas moscas disputam-lhe a orelha, despertando-a. A mulher mastiga em seco, abre um olho e descobre-se viva num sopé de ouro branco: os melões por vender.
Conheci estas duas pessoas numa paragem de autocarro. A vendedora de melões ajudou o velho a subir para a viatura. Deitou-lhe a rude mão ao fraco sovaco e içou-o com inesperada delicadeza, como se erguesse do prato uma codorniz grelhada. Maria escolheu para Rodolfo um lugar à janela, sentando-se depois ao lado dele. Sentei-me atrás deles para ter que vos contar.
Ela disse: “Os malandros dos incendiários, era amarrá-los a um pinheiro e deixá-los arder.” Ele respondeu: “Moro ao pé de pinheiros. À noite, parece o mar.” Ela perguntou: “Um pinhal ao pé do mar?” Ele esclareceu: “O pinhal é o mar.” Ela: “Antes fosse e que os incendiários não soubessem nadar!” E ele: “Vejo que compreende.” Maria, feliz, disse: “Quando passar pela minha venda, dou-lhe uma peça de ouro branco, meu senhor.” Rodolfo aceita: “Adoro melões, minha senhora”.
Não é difícil perceber os outros. Difícil é termos alguma coisa para lhes dar. Nem que seja um melão. Nem que seja o mar.

04/12/2012

Mariposa (republicação de texto in O PREÇO DA CHUVA, Coimbra, 2006)



Mariposa

E então uma mariposa, grande e inóspita como um helicóptero de combate, apareceu no ar gorduroso do restaurante à cheia hora do cozido. Gerou-se de imediato um vietnam de porras, braçadas e xôs. Guardanapos anti-aéreos desfraldaram patriotismos de caça higiénica. Intrusa involuntária, e aturdida de tanto pano predador, a mariposa tentou colar o ventre à pá do heliventilador, de onde foi sacudida sem mercê por um comedor de farinheira que se tinha empoleirado com garbo e sem cautela num banco precário. Tão precário efectivamente, que deu de si, o banco, dando com ele, o da farinheira, no chão, nadir frio do zénite ventilador. Houve risadas. O tombado, caído sem querer nem remédio no ridículo, amuou e foi continuar o cozido numa mesa que não era a dele, facto que aproveitou para se reenfarinheirar a gosto e à borla.
Entretanto, a voz da razão tentava serenar os desânimos, que pela sala guardanapavam ainda com luxúria, mas tanto menos acuidade quanto mais nervo. A mariposa resistia num voo copérnico, imprevisível, desesperado e desesperador. Pertenciam, a tal voz e a tal razão, a uma senhora afinal mais esbracejadora que uma deusa hindu ou um sinaleiro lusitano, desses de antigamente que, de capacete cor-de-cueca e do alto de uma peanha de lata, desorientavam vauxhalls e NSUs a caminho do ferro-velho do destino.
De repente, já não havia mariposa. Havia, em vez dela e tão-só, um restaurante de preço popular virado de pantanas. O vinho derramado pelo chão consubstanciava um lúgubre onanismo cor de sangue, um guardanapo pendia como uma mão de velho do poster do Sporting local, duas cadeiras tombadas juntas armavam uma aranha octoplégica, tudo somado a um dono da casa perfeitamente estarrecido de desconcerto perante a evidência do prejuízo.
Mas, enfim, lá se recompuseram mesas e cadeiras, fraldas de camisa e respirações. Famílias desunidas redesuniram-se e voltaram aos enchidos, crianças de colo foram reencontradas já púberes, uma senhora amelanciou o decote farto, o telejornal foi posto em som mais alto que de costume e a ordem do mundo voltou ao mundo, o nosso mesmo mundo que só precisa de uma mariposa para soprar na gentinha o escabroso tufão da loucura. 

Canzoada Assaltante