26. Signos Maltrapilhos
Quinta-feira, 12 de Dezembro de
2019
Quero-me
hoje em certa avenida calçada a saibro, de espesso arvoredo bordada, de boa mas
não exagerada geometria, com um fontanário de mármore-rosa ao fundo nascente.
Trechos de relva convidam animais livres, dos alados como dos quadrúpedes. Cá
estou, aqui ando. Antes, tomei o desjejum na casa-de-pasto A Moral do Século,
que o casal Eduardo & Amália Esteves abre há mais de quatro décadas. Houve
ovo cozido, presunto, queijo caprino, tinto, café-de-saco perfumado de suco de
engaço. Trouxe a caderneta, claro.
É
felizmente cedo como nascer. Laterais, cada trinta metros há bancos corridos.
Delícia hodierna: bruma esfarrapa-se nos choupos. Lá ao fundo, a fontana canta
prata álgida. Esparjo trinca-de-arroz pela relva, afasto-me, espero as
primeiras aves.
Não forço o
verso próprio. Leio, primeiro. Um tomo entesoura correspondência entre
potestades (muito) diversas: do arcebispo Lang para o primeiro-ministro
Baldwin; de Salazar para o Diabo. Entretenho o momento. Respirar a humidade
aérea sabe-me a tomar leite transparente.
Esparso
gentio vem aproveitar este trecho idílico. Não há barulho nem correrias, nada
escandaliza a contenção civilizada desta solidão sem febre. Verso pode ora vir.
i
Grip’espanhola,
tuberculose, quotidiana morgue
desses anos
pulverizados em apagamento.
Amadeo,
Sebastião, Lisboa, Cristovam:
anjos
involuntários da inexorabilidade.
Fluido
azul, contam, febre férrea, vil.
A moça
ex-forte grei tomba, quebrada.
Estúdios,
saletas, canetas, pincéis:
santuários
& hissopes silenciados.
ii
Vai-se
conhecendo, sofre-se tal pontual alegria,
raro o
instante em que se a partilha,
todavia
assim é assim, vá-se a conhecer mais,
não falta
jamais papel, gente sim.
Erico,
filho de Augusto & Clara Órfão,
ardente mas
calado militante imperial,
deixou
rasto sombrio em duras casernas,
não há
porém que dizer de sua lealdade.
iii
Sexta à
noite, no Bar-Concerto WZK,
ali no
bairro ferroviário, rés ao rio,
houve
quarteto be-bop & comediantes,
bebeu-se,
fumou-se, deixou vir a Lua.
Sabe-se que
Maurício veio afinal sozinho,
que Irene o
deixou por alguém da capital,
mas nem por
isso parecia abalado,
que até se
divertiu jogando dardos.
iv
Pascoaes
& Brandão, conspícuos espectros,
autores de
pedras & luz, digo-o assim
à falta
(minha) de mais agudo talento,
no papel
vibram ’inda deles os instantes.
Esconsas
vielas, ratos, tossida humidade,
veleiros no
azul mais branco do mundo,
caixeiritos
de retrosaria no teatro amador,
aniversário
do patrão, porto & palitos-la-reine.
v
Estão
disponíveis as linhas alternativas,
elas são
interiores, ladram pouco para fora,
acendem
lumes onde acertam o verso,
imaginam-se
como deveras são: (a) sós.
Esta mão
trabalha em revelação
– no
sentido fotográfico, não no confessional.
Nenhuma
ansiedade, q’a morte é certa.
A luz,
grande pintora, recorta jardins.
vi
Deixou-lhe
a casa n’aldeia, sólido lugar,
com quintal
de fruta & poço bondoso,
adega
fresca cheirando a maçãs,
a pedra
impregnada de anos calados.
Está
sepultado em vale sossegado,
vizinho de
um tropa morto em África
& de
uma senhora que vendia avelãs.
Definitiva
herança, todas as manhãs.
vii
Vindo da
praia, feliz exaustão
adoçando o
corpo bebedor de brisa,
de livro
todo lido, farnel devorado,
ainda sem
mortos no rol do Verão:
eis Carlos
Romano, colector de nadas,
que Magda
estreme sem núpcias à vista.
Quarent’anos
já foram, a praia lá está,
mas passou
de favor o livro que leu.
viii
Entre
miolos & mente é ruidosa a vizinhança,
o corpo é
perplexo ante suas luzes,
pelas ruas
os cheiros, clarões de janelas,
rugas,
rodados, rebentações amarelas.
Distraio o
olhar pelos escombros,
sobretudo
os futuros já hoje marcados,
poças de
chuva olhando o céu,
dali se
formaram, diz a mente à noz.
ix
Roberto
Primo Arroz, pescador-à-linha,
devolve às
águas os bichos de prata.
Nos anos
70, ele foi testemunha
do
atropelamento mortal duma criancinha.
Era Ângelo,
o menino, brincava na rua.
A mulher
dum juiz vinha distraída,
travar só
travou bons metros depois,
foi triste
a valer, ’té veio no jornal.
x
Panorama de
torres ditas sociais
em bairro
feito à pressa no alto do monte.
Contrato-aprazados
formigam entre lixos
que o
município deixa ser alpino.
A poesia de
um assim tal postal
não sobe à
cátedra de borla & capelo.
Fica onde
está, a lado algum vai.
Sendo lado
nenhum, daqui mais não sai.
xi
Hei já tido
meu tempo de falas boas,
corria
Dezembro doutro ano-d.C.
Na
pastel’pad’aria era doce o aroma
represo na sala, chovendo a potes.
Dançavam os
temas, bailavam os chistes,
todo o
silabário brindava o encontro.
Anoiteceu
depois fora de relógios.
Ora
(con)verso sozinho, um homem é um homem.
xii
Certa gente
subanimaleja safa-se bem.
Que
frequente a igreja & que ame a mãe,
nada muda,
nada emudece.
À terra
tão-só falta faz – ou ao crematório.
Perdoo-lhe
nada, mas aprendo com ela.
Coisa boa
não é – como poderia ser.
Mas
guarda-me terreno & avisa-me o dia.
Por assim
dizer, é também poesia.
xiii
Em mansão
do olvido rural, à noite.
Os donos da
casa, Apolino & Virgínia de Sá Moraes,
recebem a
jantar grada gente estudiosa,
dessa cujo
mundo não arde ribaltas.
À mesa, os
ditos são sóbrios, medidos
teleportam
vislumbres doutra condição
à nossa
alheia, da nossa diversa
por mais
cimentada, segura, contente.
xiv
Gentil,
quase alta, nem parece
ter sofrido
já quanto sofreu:
Lúcia
Brancapela, ei-la que desce
desde Santa
Marta ’té o Coliseu.
Veio de
Celorico da Beira, a norte,
fugida à
família, que a mal-usava.
Amigou-se
p’r’à vida, tem chulo consorte,
não sonha
ser livre, aceita ser escrava.
xv
O sapateiro
guarda os instrumentos,
a noite já
é, ele está fatigado.
Leva água
ao rosto, veste o casaco,
duas voltas
à chave, solas à calçada.
Ao fundo da
rua, depois do grande arco,
luzem
ribeirinhos lampiões a gás.
Vendeu tudo
o ardina, q’além assobia.
A aragem é
fria, a vida vai-s’indo.
xvi
Foi na
sala. As nossas alturas a lápis,
crescíamos
para isto que medimos hoje,
pressa
insensata, essa de crescer,
a casa
porém decresceu ’té ser só chão.
Azeite
nenhum & nenhuma vela
sobem luz
aos traços a lápis medidos.
Roídos
tapetes a ratos só servem,
nem vento
lá entra, que assim é assim.
xvii
Recordo: ao
pré-poente, ’scura tempestade.
’té nós
vindo abrindo caminho sem peias.
Electrizado
roldão vinha sufocando
a massa do
ar, de repente pano.
Venerámos a
dita quais pagão-profanos,
a roseira
tremeu, cuidosa das filhas.
Eram vivos
os velhos, vieram saber
se éramos
bem, q’então ’inda sim.
xviii
Francisco,
Maria Rosa, casalinho estreme.
Ela está
doente, ele lida a casa.
Fora, o
eucaliptal faz de catedral,
Francisco
não reza, não foi doutrinado.
Segundas
& sextas, vem dar uma ajuda
a
sobrinha-neta de Maria Rosa.
Grácil,
directa, convicta, capaz,
anima os
velhos, é para eles luz.
xix
Amadeo,
belas mãos, coitado, tão moço.
Pablo
chegou a velho, finório, espanhol, feliz.
Coitado do
Botto, pobre automitómano.
Coitado do
Nobre, que queria viver.
Sinto-os
pedindo esmola de mais-dias.
Releio-lhes
os signos, fico em dolência.
Levo água
ao rosto, visto o casaco,
não vendo
jornais, sequer assobio.
xx
Maltrapilhos
circenses vieram à noite,
reluziam de
fome crianças-animais,
a
rapariguita veio co’ chapéu,
moedas
pequenas brilharam pouquito.
De manhã,
tinham ido, nem rasto deixaram
até estes
versos terem pena deles.
Gostaria de
esquecê-los, deixá-los não-ser,
não chegar
como ela a estender o chapéu.
xxi
Fortuna:
Jack London nas florestas-do-norte,
o bule
prenhe de chá, luz pela esquerda,
o lápis à
mão, que tinta é por vezes.
E chuva no
limoeiro, que range à brisa.
Miséria:
esperar amanhãs áureos em vão,
ver na
caridade o passaporte para Deus,
fingir
sim-senhores, dar corda a medíocres,
ser
evangelista de babas américas.
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