03/01/2020

CADERNETA PRETA - 26




26. Signos Maltrapilhos
    

Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2019


Quero-me hoje em certa avenida calçada a saibro, de espesso arvoredo bordada, de boa mas não exagerada geometria, com um fontanário de mármore-rosa ao fundo nascente. Trechos de relva convidam animais livres, dos alados como dos quadrúpedes. Cá estou, aqui ando. Antes, tomei o desjejum na casa-de-pasto A Moral do Século, que o casal Eduardo & Amália Esteves abre há mais de quatro décadas. Houve ovo cozido, presunto, queijo caprino, tinto, café-de-saco perfumado de suco de engaço. Trouxe a caderneta, claro.
É felizmente cedo como nascer. Laterais, cada trinta metros há bancos corridos. Delícia hodierna: bruma esfarrapa-se nos choupos. Lá ao fundo, a fontana canta prata álgida. Esparjo trinca-de-arroz pela relva, afasto-me, espero as primeiras aves.
Não forço o verso próprio. Leio, primeiro. Um tomo entesoura correspondência entre potestades (muito) diversas: do arcebispo Lang para o primeiro-ministro Baldwin; de Salazar para o Diabo. Entretenho o momento. Respirar a humidade aérea sabe-me a tomar leite transparente.
Esparso gentio vem aproveitar este trecho idílico. Não há barulho nem correrias, nada escandaliza a contenção civilizada desta solidão sem febre. Verso pode ora vir.

i

Grip’espanhola, tuberculose, quotidiana morgue
desses anos pulverizados em apagamento.
Amadeo, Sebastião, Lisboa, Cristovam:
anjos involuntários da inexorabilidade.

Fluido azul, contam, febre férrea, vil.
A moça ex-forte grei tomba, quebrada.
Estúdios, saletas, canetas, pincéis:
santuários & hissopes silenciados.

ii

Vai-se conhecendo, sofre-se tal pontual alegria,
raro o instante em que se a partilha,
todavia assim é assim, vá-se a conhecer mais,
não falta jamais papel, gente sim.

Erico, filho de Augusto & Clara Órfão,
ardente mas calado militante imperial,
deixou rasto sombrio em duras casernas,
não há porém que dizer de sua lealdade.

iii

Sexta à noite, no Bar-Concerto WZK,
ali no bairro ferroviário, rés ao rio,
houve quarteto be-bop & comediantes,
bebeu-se, fumou-se, deixou vir a Lua.

Sabe-se que Maurício veio afinal sozinho,
que Irene o deixou por alguém da capital,
mas nem por isso parecia abalado,
que até se divertiu jogando dardos.

iv

Pascoaes & Brandão, conspícuos espectros,
autores de pedras & luz, digo-o assim
à falta (minha) de mais agudo talento,
no papel vibram ’inda deles os instantes.

Esconsas vielas, ratos, tossida humidade,
veleiros no azul mais branco do mundo,
caixeiritos de retrosaria no teatro amador,
aniversário do patrão, porto & palitos-la-reine.

v

Estão disponíveis as linhas alternativas,
elas são interiores, ladram pouco para fora,
acendem lumes onde acertam o verso,
imaginam-se como deveras são: (a) sós.

Esta mão trabalha em revelação
– no sentido fotográfico, não no confessional.
Nenhuma ansiedade, q’a morte é certa.
A luz, grande pintora, recorta jardins.

vi

Deixou-lhe a casa n’aldeia, sólido lugar,
com quintal de fruta & poço bondoso,
adega fresca cheirando a maçãs,
a pedra impregnada de anos calados.

Está sepultado em vale sossegado,
vizinho de um tropa morto em África
& de uma senhora que vendia avelãs.
Definitiva herança, todas as manhãs.

vii

Vindo da praia, feliz exaustão
adoçando o corpo bebedor de brisa,
de livro todo lido, farnel devorado,
ainda sem mortos no rol do Verão:

eis Carlos Romano, colector de nadas,
que Magda estreme sem núpcias à vista.
Quarent’anos já foram, a praia lá está,
mas passou de favor o livro que leu.

viii

Entre miolos & mente é ruidosa a vizinhança,
o corpo é perplexo ante suas luzes,
pelas ruas os cheiros, clarões de janelas,
rugas, rodados, rebentações amarelas.

Distraio o olhar pelos escombros,
sobretudo os futuros já hoje marcados,
poças de chuva olhando o céu,
dali se formaram, diz a mente à noz.

ix

Roberto Primo Arroz, pescador-à-linha,
devolve às águas os bichos de prata.
Nos anos 70, ele foi testemunha
do atropelamento mortal duma criancinha.

Era Ângelo, o menino, brincava na rua.
A mulher dum juiz vinha distraída,
travar só travou bons metros depois,
foi triste a valer, ’té veio no jornal.

x

Panorama de torres ditas sociais
em bairro feito à pressa no alto do monte.
Contrato-aprazados formigam entre lixos
que o município deixa ser alpino.

A poesia de um assim tal postal
não sobe à cátedra de borla & capelo.
Fica onde está, a lado algum vai.
Sendo lado nenhum, daqui mais não sai.

xi

Hei já tido meu tempo de falas boas,
corria Dezembro doutro ano-d.C.
Na pastel’pad’aria era doce o aroma
represo  na sala, chovendo a potes.

Dançavam os temas, bailavam os chistes,
todo o silabário brindava o encontro.
Anoiteceu depois fora de relógios.
Ora (con)verso sozinho, um homem é um homem.

xii

Certa gente subanimaleja safa-se bem.
Que frequente a igreja & que ame a mãe,
nada muda, nada emudece.
À terra tão-só falta faz – ou ao crematório.

Perdoo-lhe nada, mas aprendo com ela.
Coisa boa não é – como poderia ser.
Mas guarda-me terreno & avisa-me o dia.
Por assim dizer, é também poesia.

xiii

Em mansão do olvido rural, à noite.
Os donos da casa, Apolino & Virgínia de Sá Moraes,
recebem a jantar grada gente estudiosa,
dessa cujo mundo não arde ribaltas.

À mesa, os ditos são sóbrios, medidos
teleportam vislumbres doutra condição
à nossa alheia, da nossa diversa
por mais cimentada, segura, contente.

xiv

Gentil, quase alta, nem parece
ter sofrido já quanto sofreu:
Lúcia Brancapela, ei-la que desce
desde Santa Marta ’té o Coliseu.

Veio de Celorico da Beira, a norte,
fugida à família, que a mal-usava.
Amigou-se p’r’à vida, tem chulo consorte,
não sonha ser livre, aceita ser escrava.

xv

O sapateiro guarda os instrumentos,
a noite já é, ele está fatigado.
Leva água ao rosto, veste o casaco,
duas voltas à chave, solas à calçada.

Ao fundo da rua, depois do grande arco,
luzem ribeirinhos lampiões a gás.
Vendeu tudo o ardina, q’além assobia.
A aragem é fria, a vida vai-s’indo.

xvi

Foi na sala. As nossas alturas a lápis,
crescíamos para isto que medimos hoje,
pressa insensata, essa de crescer,
a casa porém decresceu ’té ser só chão.

Azeite nenhum & nenhuma vela
sobem luz aos traços a lápis medidos.
Roídos tapetes a ratos só servem,
nem vento lá entra, que assim é assim.

xvii

Recordo: ao pré-poente, ’scura tempestade.
’té nós vindo abrindo caminho sem peias.
Electrizado roldão vinha sufocando
a massa do ar, de repente pano.

Venerámos a dita quais pagão-profanos,
a roseira tremeu, cuidosa das filhas.
Eram vivos os velhos, vieram saber
se éramos bem, q’então ’inda sim.

xviii

Francisco, Maria Rosa, casalinho estreme.
Ela está doente, ele lida a casa.
Fora, o eucaliptal faz de catedral,
Francisco não reza, não foi doutrinado.

Segundas & sextas, vem dar uma ajuda
a sobrinha-neta de Maria Rosa.
Grácil, directa, convicta, capaz,
anima os velhos, é para eles luz.

xix

Amadeo, belas mãos, coitado, tão moço.
Pablo chegou a velho, finório, espanhol, feliz.
Coitado do Botto, pobre automitómano.
Coitado do Nobre, que queria viver.

Sinto-os pedindo esmola de mais-dias.
Releio-lhes os signos, fico em dolência.
Levo água ao rosto, visto o casaco,
não vendo jornais, sequer assobio.

xx

Maltrapilhos circenses vieram à noite,
reluziam de fome crianças-animais,
a rapariguita veio co’ chapéu,
moedas pequenas brilharam pouquito.

De manhã, tinham ido, nem rasto deixaram
até estes versos terem pena deles.
Gostaria de esquecê-los, deixá-los não-ser,
não chegar como ela a estender o chapéu.

xxi

Fortuna: Jack London nas florestas-do-norte,
o bule prenhe de chá, luz pela esquerda,
o lápis à mão, que tinta é por vezes.
E chuva no limoeiro, que range à brisa.

Miséria: esperar amanhãs áureos em vão,
ver na caridade o passaporte para Deus,
fingir sim-senhores, dar corda a medíocres,
ser evangelista de babas américas.

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Canzoada Assaltante