Cagarreta
Era eu menino tenro, um serzinho absolutamente donzel como não mais voltarei a ser. Estava no monte do Picoto, uma elevação cuja coroa de glória era um marco geodésico da topografia militar. Uma fria tarde de vento, ergui o olhar e vi que no céu voava, açoitada pela intempérie, uma dessas aves pequeninas que sempre me fizeram pensar que também Deus gosta de brincar com miniaturas. Perguntei a um dos rapazes da bola: “Que pássaro é aquele?”. Respondeu-me ele: “É uma cagarreta”.
Nesse mesmo dia, apaixonei-me sem remissão pela língua portuguesa. Se uma avezinha pode levar na vida o tremendo nome de “cagarreta”, então todas as coisas podem chamar-se o que quisermos. Isto é: podemos atacar a realidade com os nomes que mais fundo se agitam no subconsciente. O vice-versa também é verdade: as coisas feias também são susceptíveis de lírico sinal. Por exemplo: a chaga judaico-cristão num joelho de mendigo pode chamar-se “rosa”. E um menino, donzel.
Ave e Rio, O Aveiro, 14/06/01
1 comentário:
Que texto lindoso.
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