34. Atropelamento & Presenças
a) Sábado, 21 de Dezembro de 2019
Há coiso menos coisa de 45 anos,
deu-se aqui perto, daqui onde escrevo, um atropelamento quase mortal. Peço
escusa de indicação mais precisa da geografia – muita gente me reconhece por estas
bandas, pelo que decerto lhe não será difícil fazer o B-A-BA de nomes &
circunstâncias gravosas.
Foi pois aqui perto que um carro
colidiu com o corpo de um rapaz que usava óculos. Culpa de quem, nunca soube.
Soube sim que a vítima saiu maltratada do beijo, tendo dormido coma algumas
semanas. Ossos, quebraram-se-lhe alguns: uma perna, bacia, costelas, omoplata
do lado da perna.
O choque chocou-nos a todos, que
éramos meninos sem cadastro trágico. O rapaz não morreu nem ficou deficiente.
Recuperou devagar – mas recuperou.
Quase meio-século depois, é aqui
que venho tomar o café de sábado. Estive para não sair de casa, mas precisei de
alongar músculos, oxigenar-me um bocado de tanta literaparlapatice ensimesmada,
reconfirmar na pastelaria o carácter bovino da digestão social.
Há Portimonense-Sporting para a
Taça da Liga, ao cabo do primeiro quarto-de-hora o emblema algarvio vence por
1-0 (g.p.).
No mostrador, o pão, muito branco,
apetece. A casa é limpa, há escrúpulo de água & sabão nas coisas. O
principal índice é sempre os sanitários: se estiverem limpos, a cozinha não
há-de está-lo muito menos. Outros pardieiros que frequento, ah sim, são
porquinhos sem favor. O urinol sobe às ventas aquele fedor a peixe-piça, os
copos acumulam pele antiga nas rachas, a comida embrulha cheiros gasóleos e
fénicos, por assim dizer.
(E à primeira meia-hora, autogolo
do Sporting, dois-zero para os anfitriões. Portimão é a terra de uma Noémia
muito bonita que conheci na faculdade – e mais nada, que esse conhecer não foi bíblico.)
17h55m, já anoiteceu quase por
completo. Calor nenhum lá fora – mas também nada antárctico, convenhamos. Uma
coisa sei ter feito bem: trouxe comigo o Fialho de O País das Uvas. Gosto da adjectivação do gajo. Estou portanto
aconchegado. Há vozearia derredor: sportinguistas chateados invectivando o sôrárbitro – mas é música portuguesa, o
que dizem & o como dizem. Os não-sportinguistas, calados como freiras
maliciosas, são todos portimonenses de momento. Intervalo, a altivociferante
revolta abranda, vem cerveja, vem tinto, não há-de ser nada – como tudo na
vida. Eu – que remédio! – escrevo. Trouxe moedas q.b. Talvez leve até pão para
casa. Nada planeio. Vou fumar lá fora, perto, muito perto de onde o sangue do
rapaz F. foi promanado num estalar ósseo. No azar, acabou por ter muita sorte.
Na altura, não havia teste-do-balão, ninguém pode dizer que vinha enfrascado o
condutor. O rapaz atravessava a via, distraído talvez – mas não com smartphone que nem havia então, a deus
graças. Era filho único. Conheci-lhe o pai, que julgo ter morrido há dois anos,
estou incerto quanto a tal.
Está ali uma velha (deve ter mais
uns cinco anos do que eu) engraçada. Vestida & maquilhada de preto
modernaço, rosto & olhar tipo Nina Hagen, ar de quem já fumou muito
knorr-marroquino, chamemos-lhe assim. Rara coisa hoje em dia: em vez de
polegarizar o telecoiso, escreve, ela também, num cadernito parecido com este
meu, com uma caneta preta como a minha, embora eu mais lápis por vezes.
Estar vivo – sem ser no hospício
ou no presídio – tem por vezes seu encanto. Encanto
talvez seja exagero, mas pronto, encanto seja. Pão fresco no mostrador, perfume
cafeeiro, cerveja fria, ponche quente, bola na têvê, casal preenchendo o
euromilhões enquanto suspira sonhos de mata-mandarins, o Fialho gozando com seu
assumido decadentismo caricaturante, eu ter moedas q.b. para miudezas
reflectoras da minha própria.
2020? Não faço (nem fosso) ideia. É
aguentar os caváis. Muito livro para
& por ler – + mais algum(ns) por escrever. O costume não é mau de todo. Mau
de todo é todo o mal. O bem? Algum venha aos vizinhos de Espanha.
(O Sporting deu carambola à
negativa, acabou triunfante de 2-4. Felicidade local de irmãos & cunhados
indígenas. Mutismo granítico dos portimonenses provisórios.)
(...)
Arruamentos vãos – e pouco passa
das oito da noite. Chuva, nenhuma – tão-só um bafo frigorífico no favónio que
soergue do chão pequenos, legíveis lixos. Passo a demonstrar tal legibilidade:
: um rectângulo de papel fotocomposto. Apanho-o. É um ex-afixo mortuário.: “Estela da Conceição – 98 anos – Missa de
Corpo Presente – 11h30m – Terça-Feira – 26 de Novembro de 2019.” Guardo a
notícia para sempre – pelo menos enquanto esta caderneta se não volver em
nunca, como é natural que lhe advenha.
A horas silentes
Da pré-madrugada
Fazem-se presentes
O Tudo & o Nada.
(...)
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