Esta crónica não é para ser lida por pessoas que não tomam banho. É para as outras.
O momento do duche é estranho. É como as mulheres: bom, mas estranho. No duche, acontece-me sempre pensar (a todo o vapor) na magia que é ter um corpo e ser, ao mesmo tempo, esse corpo. Ou seja: cada um de nós é, tem e é tido por uma realidade física que é "eu" e "outro" simultaneamente.
No duche, olho para baixo e verifico a continuidade de tudo aquilo que me constitui: os pés proletários, os joelhos levadiços, a barriga pneumática, o peitoral tabágico. Passo e repasso uma pátina de sabão por todas estas peças, mas em mim demora-se a má consciência de não dar às costas, por me ser impossível, o tratamento devido.
Enquanto me envolvo na toalha, compreendo que as religiões dêem mais valor à alma do que ao corpo. Porque, convenhamos, é assustadora a hipótese de que, morrendo o corpo, tudo se acabe. Infelizmente, é o que penso: acabando o corpo, acaba-se a história. O único além, para mim, é o que aparece no espelho. Sepultado ou incinerado, o corpo devolve a matéria ao mundo, para que o mundo reorganize pedras, plantas, ribeiros, passaritos, caracóis.
Isto não é forçosamente triste: é apenas assim.
Mas se o leitor tiver medo de tudo isto, resta-lhe sempre a possibilidade de não tomar banho. Pode ser que resulte.
2 comentários:
Quando há uns anos esta crónica saiu no jornal semanal que os meus pais assinavam, li-a tantas vezes que acabei por decorar partes dela...
Há uns dias, lembrei-me de pesquisar "isto nao é forçosamente triste: é apenas assim" na net e vim cá parar.
É com enorme prazer que releio esta crónica, assim como "Claridade", por exemplo. E é aqui que aproveito para agradecer o facto de ter escrito a "Duche", que tem andado na minha cabeça todos estes anos.
Melhores Cumprimentos
Obrigado, Pedro. Bem haja.
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