08/08/2008

Ruy Belo - 30 anos depois







Passam hoje, 8 de Agosto de 2008, trinta anos sobre a data da morte (física) do poeta Ruy Belo. O Ribatejo assinala a efeméride com uma edição especial. Eis algumas das matérias.
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A LOIÇA TODA
Ruy Belo ainda faz, 30 anos depois, tatuagens ao domicílio


Acontece a muita (afinal pouca, talvez) e a muito boa gente: Ruy Belo tatua uma pessoa.
Viveu 45 anos terrenos, durante que deixou de acreditar em deuses que não fossem da terra. Ainda andou por Roma, é certo, e até por Madrid, era vivo ainda o torcionário Franco. Deve ter amado alguma coisa ou alguém, a ponto de Diogo, Duarte e Catarina, nomes que teve de engendrar em co-autoria com Maria Teresa.
Nasceu em S. João da Ribeira, cujo cemitério tem uma torre de património. Viveu num monte chamado Abraão, topografia uma entre tantas da sua vida: Vila do Conde, Queluz, Santarém – e Natalie Wood e Marilyn Monroe, sítios também de referência, visitação e verso.
Viveu poucos anos, em cômputo por assim dizer demográfico. O gráfico é o demo, enfim (para um leitor de jornal, melhor). Mas viu acabar em foz um rio. Sabia do Cávado e de Esposende como ninguém. Ele disse umas coisas, esteve ao frio, assistiu à absolutamente inútil tentativa dos candeeiros públicos contra a noite privada.
Entretanto, dactilografou versos de que as pessoas precisam sem saber que a televisão não basta para a vida.
Nasceu no ano da ascensão de Hitler ao Reichstag. Conheceu o nome do ciclista José Maria Nicolau. Sim, ele lia jornais desportivos, que naquele tempo eram escritos em português de Portugal. Atirou a Herberto Helder aquele poema do Vat 69 que ainda hoje está para ser contrariado em língua portuguesa. Foi a Peniche com João Miguel Fernandes Jorge, a mulher Teresa subiu à contemplação da Nau dos Corvos com o outro poeta, ele ficou no carro a ter frio.
Agora a sério, a obra de Ruy Belo é perfeitamente insustentável se pensarmos ser(mos)alguma coisa em português, mesmo que suaves. Um determinado Joaquim (aliás Manuel, aliás Magalhães) isto mesmo sustentou incomparavelmente:
“A poesia deste homem caminhava entre o peso da superfície ocasional do mundo e devaneios de sentido onde o real confrontado se trespassava de mais que real, onde o mundo adivinhava e temia e recuava face a um outro mundo.
A sua poesia é o lugar do mundo, o discurso da sua palavra interior não desiste nunca de ser um diálogo com o real.”
Admiráveis palavras: um poeta suscita (sempre) admiráveis palavras a toda a gente capaz de parar para ver o movimento. E nada adianta a Joaquim Manuel Magalhães ser um poeta, ele também: Ruy já era, foi, vai ser.
Se eu fosse, por assim dizer pessoalmente, ribatejano, seria uma sombra na campina: isto é: um leitor de Ruy Belo (e de Bernardo Santareno, já agora também, que o país é curto e a manta não estica). A obra deste homem é um lapso sensorial, uma atenção à despesa dos dias e à conta da morte, que ele antecipou em versos de uma clareza que dói, até, ao olhar interior. E anterior.
Foi menino provinciano, viajou até Santarém, deve ter cheirado maçãs, a calvície afrontou-lhe o busto ósseo e alto, deve ter amado feminis figurinos, foi homem-pai de três filhos e vários livros. Não deve ter deixado mal no mundo, dívidas é que não sei, há fotografias de uma estante onde outros livros que não dele, mas dele.
Ler Ruy Belo, em Portugal, pode ser uma resistência. Uma resistência não armada. Sobretudo, não armada em parva. Até porque ele nunca foi da TV. Não escreveu TV. Não apareceu nu, cabelo ao peito, na pe-lei-bol(a) local.
A poesia de Ruy Belo, enfim, é o que não sei dizer dela. Mas é também minha, a partir do que faço a partir dela.
E só isso acredito seja a vera poesia (a ver a poesia): aquilo que se faz a partir de alguém, no caso Ruy (ou Rui), por indelével tatuagem.





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Números e Dias de Ruy Belo
(a partir da cronologia organizada para a Editorial Presença por Joaquim Manuel Magalhães)



1933- Rui de Moura Belo nasce a 27 de Fevereiro em S. João da Ribeira, concelho de Rio Maior, distrito de Santarém.
1943-1956 - Liceu em Santarém, universidades de Coimbra e Lisboa, licenciatura em Direito.
1958 – Doutoramento em Direito Canónico (Roma).
1961 – Faculdade de Letras em Lisboa, conhecimento de Maria Teresa, futura mulher. Abandona a Opus Dei. Aquele Grande Rio Eufrates (Ática).
1962 – O Problema da Habitação – alguns aspectos (Morais Editora).
1966 – Casa com Maria Teresa. Boca Bilingue (Ática).
1967 – Licencia-se em Filologia Românica. Nasce o primeiro filho, Diogo.
1968 – Segundo filho: Duarte. Na Senda da Poesia (União Gráfica).
1970 – Homem de Palavra(s) (Publicações Dom Quixote).
1971 – Traduz Borges para a Dom Quixote. É Leitor de Português na Universidade de Madrid.
1972 – Aquele Grande Rio Eufrates (Moraes Editores). Praia da Consolação, perto de Peniche: sol e versos.
1973 – Transporte no Tempo (Moraes Editores). País Possível (Assírio e Alvim).
1974 – Nasce Catarina, dele e de Maria Teresa. A Margem da Alegria (Moraes Editores).
1976 – Toda a Terra (Moraes Editores).
1977 – Despeço-me da Terra da Alegria (Editorial Inova). Regressa de Madrid. Sem cunha partidária, vê-se sem emprego. Consegue um horário nocturno na Escola Técnica do Cacém.
1978 – Segunda edição de Homem de Palavra(s) (Presença). Morre a 8 de Agosto. Despeço-me da Terra da Alegria (Presença).



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Ruy vezes cinco

Depoimentos obtidos no dia 25 de Julho de 1996, no Teatro da Cornucópia, em Lisboa, por ocasião da ante-estreia da encenação, por Luís Miguel Cintra, do poema de Ruy Belo “A Margem da Alegria”.







1. Luís Miguel Cintra (actor, encenador e director do Teatro da Cornucópia)

A poesia do Ruy Belo é muito agradável de ler. Sente-se que ele se preocupava com os sons das palavras, os ritmos, as rimas, com o jogo das sonoridades – e isso dá um prazer extra para quem está a ler. Há muito tempo que é uma poesia que me dá prazer ler em voz alta. A minha geração, que adoptou a poesia do Ruy como a sua poesia, é uma geração que está hoje nos lugares-chave, está no poder, e pensou uma quantidade de coisas que estão expressas nesta poesia. Gosto de celebrar com outras pessoas esta poesia, que é nossa. O Ruy Belo tem textos sobre a própria maneira de dizer poesia. Há uma enorme confiança nas próprias palavras que estão escritas, não é preciso enfatizá-las. Há uma espécie de contradição básica na poesia do Ruy e sobre a qual ele está sempre a trabalhar: é um poeta que está sempre a falar de alegria e sempre a falar de morte ao mesmo tempo, como se as duas ideias não fossem contraditórias e como se só o pensamento das duas ideias em conjunto fosse capaz de dar o verdadeiro sentido da vida. Creio que é um poeta que se interessa pela vida, acima de tudo, e que é através justamente do binómio alegria-morte, ou alegria-tristeza, ou amor-morte, que se constrói toda a sua poesia. A busca da alegria é uma busca que passa por um enorme sofrimento. Eu com a poesia do Ruy sinto-me muito à vontade com a poesia, de facto. É uma pessoa que conheci muito bem e com cuja poesia convivi directamente. Chegava a casa dos meus pais, quando eu ainda lá vivia, e trazia um poema que lia ao meu pai, é uma poesia que faz parte de mim muito em especial. É uma poesia que elogia a desmedida, que acho que existe no Ruy. Creio que a sociedade em que vivemos actualmente mete demasiado na cabeça das pessoas uma forma regrada de viver a que só é possível fugir como quem faz um disparate, um erro, uma coisa que é proibida por lei. A lei deveria ser a desmedida, a paixão tem de poder existir na nossa vida quotidiana, aquilo que não está previsto, aquilo que não foi ainda inventado, aquilo que mais ninguém faz, aquilo que é só nosso tem de ter possibilidade de existir na vida das pessoas. E creio que para muitos jovens isso está proibido. Não é possível ser fora daquilo que está previsto. Isto é uma coisa que eu sofro na vida quotidiana, que sinto como uma limitação que, apesar de tudo, para a minha geração, não existia, não estava previsto que a evolução fosse assim. Nós pensávamos que a vida se libertaria cada vez mais, mas duma maneira muito estranha estão a surgir e a passar para dentro da cabeça das pessoas limitações muito grandes no sentido de uma enorme “normalização” da vida. Isso não gostaria que existisse. Nós sonhamos com uma vida maior do que a que vivemos hoje. O Ruy tinha a capacidade de englobar muitos aspectos da vida, de gostar de pessoas muito diferentes, de perceber que a verdadeira importância das coisas está na atitude que se tem perante elas.

2. Nuno Júdice (poeta e adido cultural)

Julgo que há uma necessidade de contacto com a palavra. Nós, enfim, através da televisão, dos discursos e da maneira como a palavra é usada normalmente, temos uma certa perda da qualidade da palavra, do português. A poesia é uma forma que nos permite recuperar a memória da língua que todos nós temos e que nos faz viver.

3. Maria Teresa Belo (viúva de Ruy Belo)

Acho que está tudo certo: o Ruy nunca quis vender nada e eu também nunca quis vender a poesia dele. A poesia tem um lugar e neste momento já se sabe qual é. Nunca nada deve ser imposto. Qualquer obra de arte tem de ser descoberta, ninguém deve impô-la. Ele tem leitores fiéis. Há muitos rapazes e muitas raparigas que conhecem a poesia do Ruy. Fala-se nele. Acontece nas escolas, já há professores que concebem unidades didácticas só dedicadas à poesia do Ruy. Ele sabia aquilo que escrevia e acreditava nos versos que escrevia. Mas ele nunca valorizou demasiado aquilo que fez, fazia-o porque lhe dava prazer, ele brincava com as palavras como seixos na boca. Ele acreditava que a palavra tinha muita força. E as palavras podem transformar a vida, podem transformar a sociedade. Era qualquer coisa que ele tinha muito grande dentro dele, que não podia ficar dentro dele. Daí que, embora isto seja, enfim, polémico, durante os anos em que ele pertenceu à Opus Dei, ele não escreveu, havia silêncios que se impunham (e quero dizê-lo assim) e a palavra esteve silenciada. Quando ele enfim se transformou no homem que foi (em muitos homens, porque o Ruy não era um homem apenas, era muitos e foi sobretudo um miúdo crescido sempre, aliás os olhos dele, os amigos ainda hoje o dizem, o Ruy com um sorriso desarmava toda a gente, havia qualquer coisa nele de muito puro), veio cá para fora, desatou a escrever e não parou mais.

4. Eduardo Prado Coelho (professor, ensaísta e crítico literário, falecido a 25 de Agosto de 2007)

Ruy Belo é um grande poeta da literatura portuguesa. É um grande poeta da minha geração, conheci-o na faculdade. Era uma figura que nos deixa a todos uma ligação muito forte. Sinto muito a poesia do Ruy Belo como uma poesia que me atravessa a mim e à minha geração por dentro com tudo o que ela tem de positivo e de negativo. O Ruy Belo disse algumas coisas essenciais para esta geração. E, como acontece com aqueles poetas que morrem cedo, isso dá-lhes uma marca de destino da qual nos sentimos cúmplices e que queremos prolongar. Queremos estar à altura do que se interrompeu na vida deles e no discurso deles. O Ruy Belo é um dos grandes poetas portugueses do século XX, como o Herberto Helder e o Gastão Cruz são. De certo modo, o Herberto levou até um limite e criou uma espécie de lenda em torno dele, até pela sua não presença nos meios de comunicação, nas entrevistas etc., isso ajuda, evidentemente, cria uma força, e a sua obra é de facto excepcional. Mas temos o Eugénio, temos a Sophia, temos o Carlos de Oliveira, temos o Ramos Rosa, temos o David Mourão-Ferreira, tantos…



5. Arnaldo Saraiva (professor, ensaísta e crítico literário)

A poesia do Ruy Belo é de uma qualidade excepcional. Tenho saudades dos tempos em que havia recitais de poemas, hoje há-os muito menos, saudade dos tempos em que o público afluía a sessões de leitura de poesia, às vezes pelos próprios poetas (que nem sempre dizem bem…). Eu acredito na força da comunicação da poesia, mesmo até da poesia que não é toda entendida. A poesia não tem de ser toda entendida para que tenha algum efeito sobre quem a ouve. Ligaram-me a Ruy Belo laços de profunda amizade: era meu compadre. Suponho ter sido a primeira pessoa a saudar publicamente a poesia do Ruy Belo, a qualidade, a profundidade, a comunicabilidade, da humanidade da poesia do Ruy.

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FALA O SENHOR DE S. JOÃO DA RIBEIRA

(Re) citando Ruy Belo com palavra(s) de homem

“Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos (…)”.

“Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz (…)”.

“Numa sociedade onde quase todos, pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências, nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou nas patrióticas organizações.”

“No entanto, a minha suprema ambição (…) é a de um simples mineral, com a sua impassibilidade e a sua adesão à terra, a que acabarei por voltar não só por condição como por desejo profundamente, longamente sentido e só satisfeito no dia em que a minha voz passar a ser a voz da terra, mais importante, no fundo, do que todas as palavras que me houver sido dado proferir à sua superfície (…)”.

“(…) a poesia é, ao fim e ao cabo, uma aventura de linguagem, por muito que os significantes possam significar. A arte pode não ir muito longe, mas de qualquer maneira, sempre oferecerá maior resistência ao tempo do que as ideologias, expressas sem irmos mais longe no credo da Santa Madre Igreja ou no hino da General Motors.”

“(…) morte, deus, folhas, homem, árvore, estações, primavera, pássaros, mar (…)”.

“não costumo por norma dizer o que sinto
mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa”.

4 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Daniel,

Assim aqui com o Ruy Belo...quero dizer que ele era não só um grande poeta, mas também aquele que amava os livros e...a vida, mesmo se ela lhe foi madrasta! No dia da sua morte eu estava frente ao mar na ilha da Culatra e só me lembro de chorar como um menino. Talvez um mês antes tinha estado com ele...veio ele ter comigo e deixou-me três poemas longos e disse-me: "publicas isto quando eu morrer." Não fui eu a publicá-los...
O Ruy continua bem vivo!
Obrigado, Daniel. Um abraço!

Nuno Dempster disse...

Uma homenagem excelente a um poeta maior do séc. XX português, para mim com outros dois. Um deles foi-se mês e meio antes, o outro havia quase cinquenta e três anos.

Anónimo disse...

Daniel, belíssima recolha, belíssimo texto (teu). Vou roubar-te o depoimento do Luís Miguel Cintra, de tão actual que está.
Obrigado. Um abraço.

Daniel Abrunheiro disse...

Amigo Noel, dispõe sempre.

Canzoada Assaltante