© DA. 26 de Agosto de 2020 – 20h47m42s
202.
SAL À CHUVA
Coimbra, segunda-feira, 30 de Novembro de 2020
I
Acaba-se-nos este Novembro para sempre, as hidras farmacêuticas babam-se de antecipada fortuna ante as cifras astronómicas de vacinas a vender, vacinas que não sabemos se são ou não solução para a pandemia, nas ruas já acenderam as gambiarras natalícias, no meu tempo era chuva-em-novembro-natal-em-dezembro, agora não, o consumismo anda irritado com o confinamento, o desemprego & o subemprego & a submedíocre remuneração são manos, acaba-se-nos enfim um mês mortífero, continuam a cair como tordos os mais anosos, Dezembro parece-me já mais do mesmo, oxalá me engane – mas não parece que erre (por) muito.
II
Pelo entardenoitecer de outra idade
Homens tornando a casa ao cabo da jornada
Difusas aparições em uma era desfeita
Permanentes porém em a minha atenção.
De um deles vem a mulher ao quintal
Vem a esperá-lo em sinal de presença
Era outrora assim, agora não tanto
Agora os casais dissolvem-se como sal à chuva.
Não tem importância peculiar, enfim, nada de grave
Todo o ser se indigna de não ser eterno como o horizonte
Chega-lhe o dia em que se vê anacrónico, descartável & descartado
Esperneia em vão, feito barata-tonta de costado no chão.
É todavia verdade o retorno dos trabalhadores
Vejo-os finivesperais em sua decência útil
Esteio de tudo, casa, fábrica, bairro, cidade, pátria
Embora pátria seja pária palavra hoje.
Sei bem que nem todos eram ministros da bondade
Humanos eram em seus erros aliás recorrentes
D’então para hoje nada de tal mudou um cisco
Mas era na minha primeira luz, tudo vivia.
Se ora V. reporta tão pouca acção, tende cuidado:
Homens de trabalho tornando a casa dão segura lição
Uma rotina no cais, um cais de pedra, pontual maré
Não é de somenos valor, é tão-só efemeríssimo.
Quando na terra original subo ao campo-santo
Leio-os a todos em pedra de bidatada epígrafe
Sou mais anoso ora do que eram eles então
E a casa a que regresso nem quintal tem.
III
Construíram a casa na margem-esquerda da ribeira.
Pouco alteraram à flora indígena, nem árvores cortaram.
À primeira equipa de operários sucedeu o inverno, que suspendeu a obra. Em Março, o trabalho recomeçou em força. Foi estreada em Outubro. A realidade não tinha parado. No alto da vila, a fábrica de sapatos tornou-se armazém de químicos. A escola velha foi adaptada a cozinha-dos-pobres pela misericórdia local. João Joaquim Inácio voltou do Luxemburgo com dinheiro a granel. O casal Donato/Letícia Bregieiro morreu naquele incêndio que até cá trouxe a televisão.
2 comentários:
Boa tarde. Gosto do seu blog e do que escreve, e até já lhe roubei poemas, peço desculpa, mas não vou abusar. Boa saúde!
Obrigado pela leitura.
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