11/01/2021

VinteVinte - 186 (conclusão: IV-VI)


É improvável que me surja por aí uma Charlize Theron





    IV

    Bunny Best & Sabine Melke estudam em Portugal. São bibliólogas em doutoramento. Melke é do Sul da Alemanha, Best é escocesa de Edinburgh. Conheceram-se cá aquando das reuniões preparatórias do primeiro semestre. Best é bolseira, pouco dinheiro tem para frivolidades. Melke é raízes abastadas, não faz gala disso mas é. Tornam-se amigas. Sabine respeita Bunny, por esta ser casada & mãe de dois adolescentes problemáticos. Mesmo assim, ei-la neste país solar, pronta para o desafio. Sabine é noiva de um homem de Nürnberg, cavalheiro de maneiras polidas mas firmes & de uma palavra só. Tudo correndo bem, apresentam tese no Outono de 2022. Marcolino Laranjeira apresentou-me a Bunny, que me apresentou a Sabine. Foi na apresentação do livro de Severo Alegre, o inenarrável Paradigmas Infocomportamentais da Nova Era (Editorial DA.DA, Janeiro do corrente), no Café Euterpe. Achei-as sábias. Best tem 52 anos; Melke, 38. Falam ambas um Português articulado, de papel-bíblia. Não lhes disse que escrevia: as minhas pataratices impacientam até o mais ferrenho Job das andanças livrescas. Na verdade, pouquíssimo lhes disse. Algumas coisas de Coimbra, alguma livralhada íncola, alguma recomendação turística, um pouco de Camilo Pessanha. Declinei o convite para jantar com elas, Marcolino, Severo & uns poucos mais que por ali mariposavam à cata de croquetes & avenas de espumoso. Depois de então, vejo uma ou outra em passagens urbanas desprovidas de mistério. Vi Sabine no Centro Comercial Maio-Flor. Vi Bunny na Tipografia Agostinho. Não sei se eram elas tomando um táxi à saída da Estação Velha, certa vez de muita chuva em que quase me roubaram o computador-portátil naquele cais. Não trocámos endereços-electrónicos, é deixar andar, vale o que vale. 

    (V) 

    (É improvável que me surja por aí uma Charlize Theron querendo partilhar estadia, mesa, roupa lavada – e cama, muito menos. Mas nada custa fingir que sim, que por que não?, isto da & na vida só a morte é certa, macacos com máquinas-de-escrever mais mal do que o Torga não fariam, concedido lhes fôra o infinito.) 

    VI 

    Zona inóspita, capaz de exaurir a vida em partículas de instante. Ainda assim, o factor humano arrisca-se a ela. Se não encontra caminho, fabrica-o. Tenda de pele com família de quatro dentro. Lume aceso em caixa de metal. Partilha-se peixe seco, farinha frita em banha. Nem é a época mais agressiva do ano – mas meia-hora lá fora pode matar-te. As duas crianças já se enrolaram para dormir. O pai conta-lhes histórias que ouviu ao próprio avô. A mãe dispõe, por uma ordem só dela, os apetrechos do amanhã. Milhas & milhas derredor, nem uma promessa de árvore. 
    Em esta minha casa, a hora é por igual de recolhimento. A noite foi perdoada: nem vento agreste nem chuva gélida sobressaltam a solidão campanária do lôgo. Pode uma pessoa dormir sem ameaça de aventura, nenhum lobisomem no bosquete vivo a poente. Ainda o candeeiro me ampara a escritura. Tomada é já a chávena de camomila, roído já o biscoito-de-aveia. Ao contrário daquela senhora do primeiro parágrafo, as minhas ferramentas para amanhã não carecem de ordem privada. Sou muito mais pobre do que ela & os seus. 




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Canzoada Assaltante